Como um feminismo embranquecido sobre “escolha” subestima a resistência das mulheres da Índia

Mariana Amaral
QG Feminista
Published in
12 min readDec 19, 2017

Post original

Brigada Vermelha da Índia. Fundado por Usha Vishwakarma, em calças brancas. Fonte: Guardian

“Eu sei que o estupro acontece em todos os lugares,” advogada sênior da Suprema Corte Indiana, Indira Jaising, disse recentemente à Al Jazeera, “mas você não vê o tipo de impunidade para o estupro como acontece na Índia.” Mulheres ao redor da Índia estão lutando contra o estupro por meio de grupos de defesa pessoal e escolas femininas — e trabalhando para desmontar as instituições criadas para manter as mulheres como bens sexuais subordinados.

Usha Vishwakarma comanda a Brigada Vermelha, que protesta contra o estupro epidêmico e ensina táticas de defesa pessoal para garotas e mulheres. Ruchira Gupta comanda a Apne Aap, uma organização anti-tráfico que também coordena uma escola para meninas que são visadas para o tráfico sexual. Vijayalaxmi Sharma luta contra o casamento infantil, Masooma Ranalvi faz resistência à mutilação genital, e Manju Yadav organiza protestos contra os véus que mulheres são pressionadas a usar em sua comunidade. Supriya Sonar e Mumtaz Shaikh criaram uma petição para o presidente Ramnath Kovind pedindo pelo Direito de Urinar, para a criação de banheiros públicos de uso exclusivo para mulheres.

Ao ouvir essas mulheres, podemos perceber o quão profundamente elas são traídas pelo “feminismo” individualista do Ocidente. Muitas feministas ocidentais vão reconhecer que para elas, se tornar feminista nunca foi exatamente uma “escolha”: confrontar realidades como a cultura do estupro e desigualdade salarial enquanto uma realidade social e pessoal, simplesmente necessita de uma resposta feminista. Ainda assim, quando o assunto é casamento, uso de véu, prostituição, barriga de aluguel e até a própria ideia de gênero — feministas Ocidentais preferem argumentar que esses aspectos são “escolhas” que mulheres fazem de acordo com suas próprias vontades.

Como o movimento de mulheres, construído pela necessidade, começou a analisar tudo como sendo uma “escolha” desde os anos 1990 é algo que tem sido questionado por feministas de Sheila Jeffreys até Robin Morgan, Susanne Kappeler, e Julie Bindel. As implicações de um feminismo pela “escolha” são muito claras quando olhamos para o caso da Índia. A políticas baseadas no argumento da “escolha” não são apenas cegas à violações inescapáveis, desde o casamento infantil até a barriga de aluguel forçada e a mutilação genital, que mulheres indianas são obrigadas a enfrentar– essas políticas reforçam essas indústrias, instituições e papéis sexuais em que elas se baseiam.

Na Índia, os papéis sexuais são anunciados: o casamento infantil, por exemplo, atrai meninas para abandonarem suas famílias e estudos e as vende para homens com o dobro da idade, para encararem a gravidez na adolescência. O dote que as famílias são obrigadas a oferecer junto com suas filhas, significa que as meninas são vistas como um peso econômico, e o infanticídio de meninas é alto — particularmente na aérea infame chamada de “cinturão do suicídio”, em que as famílias rurais se sobrecarregam em dívidas em um setor agrário corporatizado.

Vijayalaxmi Sharma. Fonte: The Better India

Vijayalaxmi Sharma luta contra o casamento infantil. Sharma nasceu em Rajasthan quando sua mãe tinha apenas 14 anos — quando completou 13 anos, a melhor amiga de Sharma se casou, mas morreu no ano seguinte durante o parto. Sharma começou a protestar em casa, dizendo a seus pais que ela não queria se casar. Depois de anos trabalhando para ganhar apoio da família, ela começou a fazer campanha de porta em porta. Depois disso ela começou a organizar peças de teatro e de fantoches — e previniu mais de 50 casamentos infantis. No contexto do feminismo Ocidental, o casamento continua a ser celebrado e romantizado.

Garotas na Índia geralmente se casam cedo por conta da demanda, da pobreza, e dotes mais baixos para garotas jovens — e uma insistência de que noivas sejam virgens. Globalmente, uma das instituições criadas para garantir a virgindade das mulheres foi a mutilação genital feminina (MGF) — a remoção violenta dos lábios e clítoris das meninas.

Masooma Ranalvi foi sujeita a essa prática na infância, e agora trabalha para assegurar que sua filha não seja, e faz campanha por meio da Speak Out on FGM. “Ao menos 80 porcento das garotas em Bohra são sujeitas a esse ato de violência,” ela diz. “Nós estamos erguendo nossas vozes há muito tempo mas essas práticas continuam. Houve pouca mudança em nível geral, uma vez que o governo não respondeu à nenhuma de nossas demandas de forma alguma.”

Masooma Ranalvi. Fonte: BBC

As feministas do Ocidente poderiam apoiar o trabalho de grupos como o Speak Out on FGM, mas Ranalvi diz que há pouca movimentação por aqui. A noção ocidental popular que gênero é uma questão de identidade auto-proclamada não ajuda. Não apenas ela ignora a natureza inescapável da opressão baseada no sexo para mulheres como Ranalvi, como faz campanha para normalizar uma cirurgia genital financiada pelo Estado em nome dessa “escolha”. Esse tipo de ativismo é promovido pelo Ocidente apesar do fato de que a medicalização da mutilação genital é algo que ativistas que se opõem à mutilação genital e terapia de conversão de homossexuais deveriam trabalhar para se opor.

O status de mulheres e meninas enquanto bens sexuais, institucionalizado por práticas como a mutilação genital e o casamento infantil, condiz com as baixas taxas de alfabetização entre mulheres. Usha Vishwakarma é apaixonada pela alfabetização e educação para meninas, em um país em que a educação feminina é significativamente mais baixa do que a educação dos homens. Ela já dava aula aos 18 anos — quando um colega professor tentou estuprá-la. Vishwakarma ficou traumatizada depois de ser demitida e desacreditada — mas em 2009, ela montou uma escola para garotas da região em uma pequena dependência próxima a casa de sua família. O abuso sexual epidêmico ainda ameaçava as chances de suas alunas.

A Brigada Vermelha se estabeleceu em 2011, e cresceu de um pequeno grupo central de quinze meninas para um movimento forte com 100 membras iniciado por Vishwakarma. A Brigada Vermelha protesta contra a epidemia de violência contra as mulheres, treina as mulheres em defesa pessoal, fazem visitas de aviso para perpetradores, encoraja a polícia a lidar com incidentes de abuso — e marcham.

De acordo com Vishwakarma, “Está na mente dos homens que garotas são objetos e que sempre foi assim… A religião mostra as mulheres como sem poder e que quem quer tenha poder pode fazer o que quiser.” A Brigada Vermelha luta contra uma cultura de misoginia e violência masculina que Vishwakarma relaciona com a religião e os papéis sexuais enraizados, e com a normalização da pornografia. “Na era eletrônica existem imagens por todos os lados de mulheres sendo tratadas como objetos,” ela diz.

Ruchira Gupta. Foto de Fahim Siddiqi/White Star.

A pornografia, uma indústria que as “feministas da escolha” defendem com vigor, prospera com o tráfico sexual. Ruchira Gupta da Apne Aap ajuda a comandar escolas para garotas vulneráveis à predação do tráfico sexual, em um país com o maior número de meninas na prostituição. “Uma mulher Perna,” diz Gupta, “nasce na pobreza e em uma casta marginalizada, e ela é fêmea — então ela é oprimida três vezes..”

O quanto antes ela entre na puberdade, ela se casa, e depois do primeiro filho, o marido passa a prostituir sua esposa. E ela não pode resistir — tudo que ela tem é essa comunidade. Ela sente que não há caminho para escapar. Ela é consumida por 8 ou 10 anos e depois a exigem que ela ponha sua própria filha na prostituição.

Gupta também coordena uma escola para meninas na comunidade Nat — e esse trabalho é árduo. “Muitas gente pensa: ‘Oh, trazer crianças para a escola,’” ela diz. “Mas manter essa criança na escola é mais difícil ainda.”

Entre as batalhas que Sharma, Ranalvi, Vishwakarma e Gupta encaram diariamente é noção de escolha. Parveen Khan relembra que aos 12 anos, ela estava “feliz de ser uma noiva. Eu estava vestida com um vestido vermelho cintilante e usei batom vermelho.” Ela começou a apanhar regularmente poucas semanas depois do casamento. Em New Delhi, Sita, forçada a se prostituir nas rodovias durante a noite, conta “É minha escolha”. Mulheres fazem esse tipo de afirmação sobre todas as indústrias que nos oprimem.

Não são nossas escolhas racionais, no entanto, que estão em questão; mas a ideia patriarcal e sexista de que “as mulheres querem”. A prática do sati — queimar viúvas depois da morte de seus maridos — foi banida na Índia entre as legislações de 1829 e 1987. Mas ainda assim acontece, e em 2006 uma mulher Vidyawati de 35 anos pulou na pira funerária de seu marido em Uttar Pradesh. Um capítulo no livro de Mary Daly Gyn/Ecology mostra como a sati foi culturalmente promovida como algo que as mulheres queriam — com um texto proclamando como as mulheres supostamente caminham “para dentro do fogo orgulhosamente e por escolha própria. Essa era a sua maneira de mostrar a profundidade de seu afeto, sua devoção e fidelidade.”

Tais narrativas sobre “escolha” são também frequentemente usadas para justificar o uso do véu, que Sheila Jeffreys explica como sendo um indicador primário do baixo status social das mulheres em seu livro Man’s Dominion. Manju Yadav protesta contra o lenço — ghoonghat — que são a norma em sua comunidade em Haryana, Índia. “Para nos manter sob controle, os homens mandam cobrir nossos rostos,” ela conta. “Mande um homem cobrir seu rosto por um dia, ele não conseguiria.” Yadav vê o ghoonghat como uma forma de reforçar a dominância masculina.

Manju Yadav. Fonte: BBC

No centro de todas as batalhas travadas por todas essas ativistas feminista está nada mais do que uma guerra contra o próprio gênero— um sistema opressivo de discriminação baseada no sexo. Ainda assim, de acordo com as feministas ocidentais, gênero é também uma “escolha”: é uma identidade que é subjetiva para o indivíduo. Baseadas nesse argumento, escolas exclusivas para meninas, times esportivos e banheiros estão sendo sacrificados por serem considerados “exclusivos demais”.

Na Nova Zelândia, Marlborough Girls’ College e a Kāpiti College abriram seus banheiros exclusivos para mulheres para aqueles de “todos os gêneros”. Epsom Girls’ Grammar considerou mudar seu nome se baseando na ideia de que gênero é auto-definido, uma ideia que Gupta e Vishwakarma — ambas mulheres que coordenam escolas para garotas na Índia — achariam piada. Gavin Hubbard foi recentemente qualificado para competir na classe feminina de levantamento de peso da Nova Zelândia, depois de tirar a medalha de ouro da competidora samoana Iunniara Sipaia; um professor da Lincoln University acha que esportes exclusivos de mulheres não são necessários.

Ainda assim na Índia, a luta pelas escolas e banheiros exclusivos para meninas continua. Mulheres que fazem campanha pelo Direito de Urinar, incluindo Supriya Sonar, apresentaram ao presidente da Índia um mapa em forma de colagem de todos os pontos de defecação aberta da cidade de Maharashtra. A falta de acesso à banheiros que sejam higiênicos, privados e seguros da violência masculina faz da questão de saneamento uma questão feminista. Como muitas outras questões feministas, essa questão em particular é ridicularizada, e Sonar e suas colegas são corajosas em continuar sua campanha. É uma questão crucial e intrínseca à educação e participação social das mulheres.

Supriya Sonar. Fonte: Coro India

No ocidente, a primeira onda feminista lutou pelos banheiros exclusivos de mulheres sob o mesmo argumento — é só que a gente esqueceu. Nossa política da “escolha” facilita uma amnésia histórica, uma vez que a escolha é subjetiva e qualquer análise que chegue nesse ponto é essencialmente sem base. Ela faz tão pouco para combater o apagamento das mulheres da história tradicional, quanto para combater o embranquecimento da política e do jornalismo. Ela deixa o que Susan Hawthorne chamou de “estupidez da cultura dominante” completamente intacta.

Isso nos torna inimigas mesmo uma das outras, uma vez que até nossas campanhas mais populares não compreendem a questão. Discussões sobre a desigualdade salarial geralmente nos levam a acreditar que as mulheres mais injustiçadas são as engenheiras ou contadoras cujos contracheques são os menores em relação aos homens da firma. De acordo com nosso cálculos, essas são as mulheres que mais se sacrificam, por períodos de tempo mais longo, aos interesses masculinos.

Realidades como as das trabalhadoras mão-de-obra das fábricas são raramente mencionadas nas discussões sobre “desigualdade salarial”, porque o recorte não nos permite apontar exatamente para a exploração que acontece nesses trabalhos — quanto mais a prostituição, ou casamento — e o que ela representa. Como reportado no The Guardian, muitos trabalhadores das fábricas na Índia “ganham tão pouco que um mês de seu trabalho não é suficiente para comprar os itens que eles produzem.” Mulheres constituem, de longe, a grande maioria dos trabalhadores de fábrica do mundo, e para entender esse fato, necessita-se de uma análise ampla da pobreza sistêmica entre mulheres que resulta diretamente na nossa mercantilização em bens sexuais.

Enquanto nós nos recusarmos a olhar para a desigualdade salarial dentro de um contexto global de violência masculina institucionalizada e escravidão sexual, nós viramos as costas para o trabalho de mulheres como Anannya Bhattacharjee, que organiza mulheres trabalhadoras do setor de produção de peças íntimas na Índia — ligue os pontos. “Eu percebi que é muito difícil para mulheres estarem longe da violência, a não ser que ela seja economicamente independente, então ter um ofício se tornou parte do meu trabalho.” Para Bhattacharjee, o trabalho das mulheres é inseparável da questão da violência masculina.

Outra indústria que a conversa domesticada sobre desigualdade salarial não pode confrontar, juntamente com o casamento infantil, prostituição e trabalhos em fábricas, é a questão das “barrigas de aluguel”. A gestação por substituição é outra indústria misógina promovida no Ocidente como “escolha”, em nome dos direitos dos homossexuais. Na Índia, Gujarat é a “capital da barriga de aluguel” — o documentário Google Baby mostra uma realidade angustiante das mulheres nessas clínicas. Feministas como Kasja Ekis Ekman, Julie Bindel e Renate Klein continuam a fazer campanha contra essa indústria violenta em meio a afirmações de outras “feministas” de que as mulheres escolhem por isso e que pessoas gays tem esse direito.

Até nossas discussões sobre direitos reprodutivos são limitadas pela promoção do aborto como uma “escolha”, uma ideia que não fez sentido para mim quando eu mesma fiz o procedimento aspiração uterina. Aborto é um direito da mulher, é claro — mas uma posição “pró-escolha” não examina o contexto de violência que faz de tantos abortos necessários, sejam eles criminalizados ou não. Ao invés, o argumento da escolha alivia os homens de sua parte da responsabilidade, que passa a ser de estabelecimentos médicos que nunca operaram em favor dos interesses das mulheres. Uma coisa que as instituições médicas gostavam de fazer desde o tempo de J. Marion Sims, por exemplo, era usar mulheres negras para experimentação e testes, sem seu consentimento — algo que deveria nos sensibilizar antes de engolir noções racializadas e ocidentais sobre “identidade de gênero”.

Uma abordagem “pró-escolha” também ignora a questão dos abortos seletivos. Entre 1991 e 2011, a proporção entre os sexos na Índia caiu para 914 meninas para cada 1.000 meninos nascidos. A estimativa é que a cada 12 segundos, um feto feminino é abortado, e mais garotas são mortas pelo infanticídio — meninas de zero a quatro anos são assassinadas por meio de afogamentos e desnutrição. Nenhum outro exemplo demonstra tão claramente como o aborto não pode ser reduzido a uma questão de “escolha”. Na Índia, como na China, a baixa proporção entre os sexos fornece uma justificativa para o tráfico de meninas para o casamento e prostituição.

As “políticas da escolha” são uma forma de domesticação. Ela impede que mesmo as mulheres com as vozes mais ativas tenham a acesso a uma base para se construir a solidariedade, especialmente com aqueles vivendo nas piores condições, e portanto, impede qualquer influência feminista real. Elas nos dão a ilusão de poder enquanto traem as mulheres ao normalizar o apoio a instituições patriarcais como a prostituição, o casamento, gravidez por substituição, mutilação genital, terapias de conversão e o uso do véu. Essas políticas nos tornam hipócritas — para que ter um movimento sobre direitos, quando não há nada além da desigualdade salarial, sob nossos olhos, que constitua uma violação real?

O trabalho de Usha Vishwakarma, Ruchira Gupta, Vijayalaxmi Sharma, Masooma Ranalvi, Manju Yadav, Supriya Sonar — e a própria resistência das mulheres ao redor da Índia — faz mais do que construir uma forma de escape da violência para as mulheres, eles causam uma dor de cabeça para a dominação masculina. Ele apresenta um desafio para todos os seguidores do tipo de “feminismo” altamente individualizado do Ocidente: se você sabe que você não é feminista por escolha, mas pelas circunstâncias — o que você acha que ele significa para aquelas que estão tendo que lutar bem mais do que você?

Aplauda! Clique em quantos aplausos (de 1 a 50) você acha que ele merece e deixe seu comentário!

Quer mais? Segue a gente:

Medium

Facebook

Twitter

Instagram

--

--