“Ele não faria uma coisa dessas”

Os crimes sexuais e o estereótipo do monstro.

Maya Falks
QG Feminista
4 min readDec 11, 2018

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Cada vez mais as mulheres estão tomando coragem de levantar a voz e denunciar assédios, abusos e estupros, e cada denúncia chega ao público com um misto de incredulidade e necessidade de justificar os atos dos denunciados se estes forem queridos ou admirados por alguma razão.

Vemos com grande frequência fãs de agressores denunciados solicitando a separação entre homem e criminoso — ou artista e abusador — como se o realizador do crime fosse alguma entidade que não pertence ao corpo e personalidade daquele outrora admirado. Mas pertence.

Não é fácil reconhecer não apenas que aqueles que admiramos é falho, mas também potencialmente perigoso, e isso se deve não somente pela cegueira que o fanatismo ocasiona, mas principalmente pela ideia estereotipada de que o criminoso é um monstro completamente incapaz de se passar por um bom cidadão diante da sociedade.

Na vida real, longe dos estereótipos, a situação é completamente a oposta: quanto mais perverso o criminoso, mais facilidade ele tem de se passar por uma boa pessoa. A perversidade do indivíduo, inclusive, não é de forma alguma impeditivo para que este seja bom para algumas pessoas e monstruoso para outras; esse maniqueísmo que defende a existência de seres totalmente bons ou totalmente maus é uma construção de contos de fadas que não encontra apoio na realidade material.

A mais recente denúncia recaiu sobre o médium João de Deus (artigo escrito em 10 de dezembro de 2018), um agente espírita que atrai centenas de turistas, inclusive estrangeiros, à sua cidade sob a promessa de cura espiritual. Ao mesmo tempo em que dezenas de mulheres estão vindo a público relatar sua experiência de abuso, outros tantos contestam as denúncias usando seu caso de cura pelas mãos do médium. A questão é que uma coisa não exclui a outra.

A própria doutrina espírita defende que estamos na Terra para evoluir; ou seja, pessoas consideradas “perfeitas” não retornam à vida terrena por não ter mais necessidade de viver essa experiência. Isso significa que João de Deus, independentemente de suas ligações com o mundo espiritual (para quem crê na doutrina, obviamente), ainda é um homem; e, como tal, está sujeito aos mesmos erros de qualquer outro ser humano, a depender de seu próprio livre arbítrio.

O que acontece no caso de João de Deus — aclamado por muitos como um homem santo capaz de curar através da fé — escancara o que acontece com qualquer agressor sexual e reflete de forma incisiva onde reside a maior dificuldade das mulheres em denunciar: a crença nos estereótipos.

Vivemos em um país que condena somente em média 2% dos estupradores denunciados, e isso se deve à ideia de que “homens bons” não estupram. A noção do que é ser bom ou não é deturpada por uma série de signos sociais, tornando mais provável que um homem pobre negro seja condenado por um estupro que não cometeu do que um homem branco e rico pague pelo crime efetivamente cometido.

Quanto mais distante do estereótipo de “bandido” estiver o denunciado, maiores são as chances de a vítima ter seu nome e reputação arrastados na lama e ser vista ela como a vilã da história. Muitas vezes, mesmo com abundância de provas contra um “cidadão de bem”, é comum encontrar pessoas dispostas a defende-lo, seja na descrença do crime — “estão armando contra ele, ele é muito educado e gentil, jamais faria algo assim” — ou na busca de justificativas e concessão de um perdão instantâneo e irrestrito — “todo mundo erra”, “ele está passando por um momento delicado”, “não dá pra condenar sem um julgamento justo”. A mesma disposição não acontece quando não há nenhuma ligação emocional com o agressor, e principalmente quando o mesmo foge do estereótipo do bom cidadão.

Não apenas para homens acusados de agressão sexual, mas para qualquer pessoa serve a certeza de que cometer crimes não impede o criminoso de ser uma boa pessoa por outros, e vice-versa. No caso de João de Deus e os crimes denunciados contra ele — e aqui vale minha ética jornalista de não afirmar sua culpa antes do trânsito em julgado — é plenamente possível que ele tenha efetivamente cometido os crimes e, ao mesmo tempo, curado e ajudado muitas pessoas.

Não existem monstros, existem pessoas que são capazes de amar, proteger, odiar e agredir outros, tudo ao mesmo tempo. É difícil reconhecer que pessoas que amamos ou admiramos sejam capazes de grandes crueldades, mas muitas de fato são. Não é necessário deixar de amar ou admirar (embora seja estranho), mas é imprescindível não ser conivente ou cúmplice dos crimes.

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Maya Falks
QG Feminista

Escritora, publicitária, jornalista e caçadora de nuvens.