Eu odeio que aborto seja um crime

Melina Bassoli
QG Feminista
Published in
5 min readJun 22, 2023
Imagem base por Freepik, modificada por mim.

É domingo à noite, estou preparada pra dormir, e aparece a mensagem de uma amiga, uma moça nova, de uns 20 anos. A mensagem era sobre uma desconhecida, que encontrou a página feminista dela na internet e mandou um pedido de ajuda para abortar. Minha amiga queria que eu a ajudasse a ajudar a mulher.

Infelizmente, a resposta que eu tive para dar me corta o coração: não ajude.

Nesses anos de militância, eu já perdi as contas de quantas mulheres desconhecidas na internet me pediram o mesmo. São tantos casos diferentes e mulheres de toda parte, de toda sorte… Teve o da jovem universitária que mal tinha saído da casa dos pais e agora estava sozinha e perdida; o de uma mulher que já tinha 5 filhos, e ainda amamentava, e engravidou porque o parceiro mentiu pra ela sobre ter feito vasectomia. Foram tantos casos…

Alguns casos configuram estupro inclusive, o que, segundo a lei, permitiria o aborto. Mas sabemos que não é tão simples, mesmo o aborto legal é dificultado pelos aparatos institucionais.

Quando a gente atua no espaço físico, por mais que cheguem mulheres desconhecidas, elas estão ali falando cara a cara com você, conheceremos necessariamente o nome e a pessoa; no mundo virtual, não. Eu atuava dentro de uma coletiva bastante conhecida na internet e usava o perfil da coletiva. As pessoas que chegavam até mim não sabiam meu rosto nem meu nome.

Eu fico pensando em como é triste ter que pedir ajuda a pessoas totalmente desconhecidas. Que sensação de desamparo tão imenso que devem ter. E daí surgem as perguntas: Por que mulheres precisam pedir ajuda a totais desconhecidas? Por que as pessoas à volta delas não inspiram confiança suficiente?

A interrupção de uma gravidez indesejada é algo habitual, tão frequente que 1 em cada 4 brasileiras já fizeram esse procedimento. Estatisticamente todos nós conhecemos mulheres que abortaram, várias até, a gente só não fica sabendo. Você conhece quantas mulheres? Quantas delas abortaram? Quantas te contaram? Por que não te contaram? Por que contaram para desconhecidas?

Eu acredito do fundo do meu coração que aborto é um direito das mulheres. Então, daí surge outra pergunta: por que eu disse para minha amiga não ajudar a desconhecida?

Quando comecei a ficar mais ativa nas redes virtuais feministas, fiquei surpresa com o tanto de mulheres desconhecidas que aparecem para te pedir ajuda. São casos de todos os tipos. Além das gravidezes indesejadas, aparece violência doméstica, relacionamentos abusivos, assédio moral e físico, estupro, como escapar da situação de prostituição etc. Por mais que a gente gostaria de ajudar todas essas mulheres, a gente não ganha superpoderes ao virar feminista.

Eu quero ajudar uma mulher que deseja interromper a gravidez, mas o aborto no meu país é um crime.

E o que é um crime? Um crime é algo que é tipificado como crime. Não é algo que necessariamente seja mau para a sociedade, tampouco é algo natural ou tão concreto. Na história da humanidade, a noção do que é um crime muda. Muda no tempo e no espaço. E neste tempo e neste espaço em que vivo, o aborto é um crime. Considerar o aborto um crime é um atentado aos direitos humanos das mulheres. É errado, moralmente errado. Eu luto continuamente para que essa noção mude, mas é assim que as coisas são por enquanto.

Então, quando alguém vem pedir ajuda na internet para abortar, não temos como ter certeza se é realmente uma mulher que necessita de ajuda ou se é um golpista.

Já aconteceu com feministas que conheço de caírem nessa armadilha, porque todas nós queremos ajudar uma mulher que precisa. Todas nós acreditamos que o aborto é um direito das mulheres. E querendo ajudar, às vezes nos colocamos em situações de perigo. Feministas são odiadas e, infelizmente, muitas pessoas querem nos incriminar. Por isso temos que ser muito cuidadosas em nossas ações. Nos proteger também é parte da militância.

E por mais que eu queira ajudar cada uma das mulheres que chegam com esse pedido de socorro para a interrupção da gravidez, eu não posso. Isso me divide, me parte o coração. Eu odeio que aborto seja um crime. Me faz mal. Mas faz muito mais mal às mulheres que o desejam e às crianças em geral.

Eu não queria que esse texto pudesse trazer apenas medo de compartilhar formas de conseguir misoprostol ou acesso a outros métodos abortivos seguros, então eu termino dando uma dica às mulheres que chegaram até aqui porque buscavam ajuda: em volta de você tem mulheres que já abortaram, pergunte como elas fizeram. Em volta de você tem mulheres que sabem como conseguir misoprostol. Eu sei que você tem medo e sei que tem receio de não te entenderem, eu sei que é difícil saber em quem confiar, mas as mulheres têm se ajudado nesse assunto há milênios, tanto em sociedades que o permitem quanto nas que criminalizam a prática. Sempre tem uma tia, uma professora, uma prima, uma amiga… Se mesmo assim você tiver um círculo muito fechado e não tem ninguém que acha que possa confiar, procure um grupo de mulheres que atua na sua cidade. De preferência um coletivo feminista.

Além do mais, certifique-se que o caso da sua gravidez não configura um caso de aborto legal. Todas as meninas com menos de 14 anos que estão grávidas podem abortar legalmente, porque qualquer ato sexual abaixo dessa idade é considerado estupro de vulnerável. As mulheres que engravidaram porque seus parceiros mentiram sobre serem inférteis ou que tiraram a camisinha no meio do ato sexual sem o consentimento delas também podem abortar porque essas relações podem configurar estupros segundo entendimento do Judiciário. E eu sei que não é fácil ter acesso a eles e muita gente da área médica vai querer te intimidar e fazer você desistir da ideia, vão dizer que precisa de autorização judicial, mas é mentira, é seu direito. Tente outro profissional. Entre em contato com algum coletivo de mulheres do seu entorno para denunciar a dificuldade no acesso, muitos grupos oferecem ajuda psicológica e jurídica, além de terem contato com gente da imprensa.

Estamos juntas. Sobreviva.

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