Feminilidade
Introduzindo reflexões feministas sobre o assunto
Tradução do prólogo do livro Femininity, de Susan Brownmiller. Você pode lê-lo inteiro aqui.
Nós tínhamos um jogo em nossa casa chamado “pondo a mesa” e eu era a ajudante de Mamãe. Garfos à esquerda do prato, facas e colheres à direita. Colocar os talheres ordenadamente, de acordo com o que eu me lembro, foi um dos meus primeiros deveres, e o evento era rico em significados. Quando uma faca ou um garfo caía no chão, isso significava que um homem estava inesperadamente vindo para o jantar. Uma colher que cai anunciava a chegada surpresa de uma convidada. Não importava que esses visitantes nunca chegassem; eu aprendera uma regra de identificação de gênero. Homens eram sóbrios, afiados e formidáveis; mulheres eram suavemente curvas e seguravam a comida em um poço curvo. Fazia perfeito sentido, como a divisão de azul e rosa que eu via em bebês, uma forma ordenada de ver o mundo. Papai, que estivera fora o dia todo no trabalho e que amava matar o tempo em casa com seus cachimbo, tabaco e caixa de ferramentas, era garfo e faca. Mamãe e vovó, com suas amplas proporções e potes e panelas, eram colheres de sopa adultas, grandes e espaçosas. E eu era uma colher de chá, pequena e esguia, fácil de segurar e perfeita para comer pudim, minha sobremesa favorita.
Ser boa no que era esperado de mim foi um dos meus primeiros projetos, porque não somente eu era recompensada, como a maioria das crianças são, por fazer as coisas certo, mas também porque a excelência dava orgulho e estabilidade à minha existência infantil. Meninas eram diferentes de meninos, e a expressão de tal diferença parecia caber a mim para esclarecer. Terá minha amorosa e nervosa mãe, que me vestia em aventais brancos de organdi e sapatilhas e que chorava lágrimas quentes quando eu os sujava, me dado minha primeira instrução? É claro. Terão minhas amáveis tias e meus amáveis tios com seus presentes de lindas bonecas e conjuntos de chá em miniatura colaborado para minha educação? É claro. Mas mesmo sem os brinquedos e as roupas apropriadas, lições na arte de ser feminina se espalham ao meu redor e eu as absorvi todas: os contos de fada que eram lidos para mim à noite, os filmes aos quais eu assistia, as propagandas coloridas sobre as quais eu me debruçava antes mesmo de aprender a decifrar suas palavras, as histórias em quadrinho que eu lia escondida, as novelas de rádio que eu alegremente acompanhava sempre que eu tinha que ficar em casa com um resfriado. Eu adorava ser uma garotinha, ou então eu adorava ser uma princesa encantada, porque era isso que eu acreditava ser.
Conforme eu passava por uma adolescência turbulenta até uma maturidade turbulenta, a feminilidade se tornou cada vez mais uma exasperação, uma estética sutil e brilhante que era desconcertantemente inconsistente ao mesmo tempo em que era minuciosa e exigentemente concreta, um código rígido de aparência e de comportamento definido por vários “faça” e “não-faça” que eram contra minha fibra rebelde. A feminilidade era um desafio jogado ao sexo feminino, um desafio que nenhuma mulher orgulhosa e segura de si poderia suportar ignorar, particularmente aquela com ambições enormes que nutre em segredo, alternativamente alimentando ou deixando passar fome sua vida insipiente em tremenda confusão.
“Não perca sua feminilidade” e “Não é incrível como ela consegue se manter feminina?” tinham implicações terríveis. Elas falavam de um fracasso de fim de linha tão irreversível que nada mais importava. A máquina de fliperama deu tilt, o jogou acabou. Desqualificação estava marcada na testa de uma mulher cuja feminilidade foi perdida. Nenhum registro seria feito em seu nome, uma vez que ela destruíra seu direito inato em sua tentativa miserável e deselegante de imitar um homem. Ela andava num limbo, essa criatura desafortunada, e me ocorreu um dia que talvez eu a veja quando eu olhar no espelho. Se o perigo era tão palpável que avisos eram livremente distribuídos, será que a marca não estava na minha própria testa? Quaisquer desentendimentos com a feminilidade que eu tivesse eu mantinha para mim; quaisquer debilidades que a feminilidade impunha eram minhas para que eu suportasse sozinha, porque não havia nenhum movimento de mulheres para fazer as perguntas difíceis ou para descaradamente ignorar as regras.
A feminilidade, em essência, é um sentimento romântico, uma tradição nostálgica de limitações impostas. Mesmo que ela se apresse ao longo dos anos 80, colocando batom e salto alto para parecer bem vestida, ela tropeça em anáguas bordadas e em saias rodadas de uma era passada. Invariável e necessariamente, a feminilidade é algo do qual as mulheres tinham mais no passado, não só no passado histórico de gerações passadas, mas no passado pessoal de cada mulher também — na inocência virginal que é substituída pelo conhecimento, na bochecha macia que fica mais grosseira com a idade, na “natureza inerente” que uma mulher parece deslocar tão esquecidamente sempre que ela passa dos limites. Por que deveria ser assim? A mensagem cromossômica XX não foi bagunçada, o equilíbrio hormonal dominado por estrógeno é geralmente como a biologia o pretendeu, os órgãos reprodutivos, qualquer que tenha sido seu uso, geralmente estão no lugar, os seios, de qualquer tamanho que sejam, estão frequentemente no lugar em que deveriam estar. Mas, claramente, a mulheridade [1] biológica não é suficiente.
A feminilidade sempre pede mais. Ela deve constantemente reafirmar sua audiência por meio de uma demonstração ativa de diferença, mesmo onde não exista na natureza, ou então ela deve aproveitar e aceitar uma variação natural e compor uma sinfonia rapsódica por cima das notas. Suponha que alguém não se importe, tenha outras coisas em mente, seja desajeitada ou desafinada apesar dos melhores treinamento e instrução? Falhar na diferença feminina é parecer não se importar com homens, e arriscar a perda de suas atenção e aprovação. Ser insuficientemente feminina é visto como um fracasso na identidade sexual essencial, ou como um fracasso para se importar suficientemente sobre si mesma, porque uma mulher que deixa a desejar será avaliada (e avaliará a si mesma) como masculinizada ou assexuada ou simplesmente feia, já que foram homens que definiram esses termos.
Nós estamos falando, confessadamente, de uma estética peculiar. Prazeres imensos podem ser extraídos da busca feminina enquanto escape criativo ou puramente como forma de relaxamento; de fato, a indulgência por diversão, por arte ou por atenção está dentre um dos maiores proveitos da feminilidade. Mas a atração principal (e o paradoxo central, também) é o contorno competitivo que a feminilidade parece prometer na batalha sem fim para sobreviver, e talvez para triunfar. O mundo sorri favoravelmente à mulher feminina: ele estende pequenas cortesias e diminutos privilégios. Ainda assim, a natureza desses contornos competitivos é irônica, na melhor das hipóteses, porque uma mulher trabalha sua feminilidade por meio da aceitação de restrições, da limitação de sua visão, da escolha do caminho indireto, da dispersão de sua concentração e do não emprego do seu potencial completo como um homem faria com seus, certamente masculinos, interesses. Não é necessária uma grande epifania para uma mulher entender o princípio feminino enquanto uma grande coleção de comprometimentos, pequenos e grandes, que ela deve simplesmente fazer para se tornar uma mulher bem-sucedida. Se ela tiver dificuldade de satisfazer as demandas da feminilidade, se suas ilusões vão contra o ímpeto dessa mulher, ou se ela for criticada por seus defeitos e imperfeições, tanto mais ela verá a feminilidade como uma estratégia desesperada de conciliação, uma estratégia que ela pode não querer ou não ter coragem de abandonar, porque o fracasso está à espreita em qualquer direção.
É comum em alguns ambientes descrever os princípios feminino e masculino como pontos extremos do continuum humano, e sabiamente declarar que ambas polaridades existem em todas as pessoas. Sol e lua, yin e yang, macio e duro, ativo e passivo, etcetera, talvez de fato sejam opostos, mas um continuum linear não resolve o problema. (Feminilidade, em todos os seus artifícios, é uma empreitada bem ativa.) Qual é, então, a distinção básica? O princípio masculino é mais bem compreendido como uma característica de superioridade motriz desenhada para inspirar sucesso confiante e direto ao ponto, enquanto que o princípio feminino é composto de vulnerabilidade, da necessidade de proteção, de formalidades de submissão e da evasão de conflitos — em suma, um apelo de dependência e de boa vontade que confere ao princípio masculino sua validação romântica e seu aplauso de admiração.
A feminilidade agrada aos homens porque faz com que eles pareçam mais masculinos por contraste; e, de fato, conferir uma porção extra de distinção de gênero não merecida para homens, um espaço não disputado em que respirar livremente e se sentir mais forte, mais sábio e mais competente, é o prêmio especial da feminilidade. Pode-se dizer que a masculinidade é frequentemente um esforço para agradar mulheres, mas a masculinidade é conhecida por agradar por meio de demonstrações de domínio e de competência, enquanto que a feminilidade agrada por meio da sugestão de que essas preocupações, exceto em pequenas questões, estão além de seus intentos. Extravagância, imprevisibilidade e padrões de pensamento e de raciocínio que são dominados por emoções, como expressões chorosas de sentimento e de medo, são considerados femininos precisamente porque elas se encontram fora da rota estabelecida para o sucesso.
Se nos primórdios da história, a mulher feminina era definida por sua dependência física, sua inabilidade por motivos de biologia reprodutiva triunfarem sobre as forças da natureza que eram os testes de força e de poder masculinos; hoje ela reflete ambas dependências emocional e econômica que ainda são consideradas “naturais”, românticas e atraentes. Após árduos quinze anos durante os quais diversas premissas básicas sobre os sexos têm sido questionadas, a disparidade econômica não desapareceu. Grandes números de mulheres — aquelas com crianças pequenas, aquelas deixadas sem eira nem beira depois de um divórcio na meia-idade — precisam de apoio financeiro. Mas mesmo aquelas que se sustentam compartilham uma necessidade universal por conexão (chame de amor, se quiser). Enquanto números sem precedentes de homens abandonam seus interesses sexuais por mulheres, outros, captando a oportunidade, escolhem demonstrar seu interesse por meio da variedade e da mudança de parceiras. Um fato sociológico dos anos 80 é que a competição feminina por dois recursos escassos — homens e trabalho — está especialmente acirrada.
Então não é surpreendente que estejamos atualmente testemunhando um interesse renovado na feminilidade e um perdão impassível para buscas femininas. A feminilidade serve para reafirmar aos homens que mulheres precisam deles e se importam enormemente com eles. Ao incorporar o decorativo e o frívolo em sua definição de estilo, a feminilidade funciona como um antídoto eficaz à seriedade sem descanso, à pressão de trilhar seu caminho em um mundo severo e difícil. Em sua regra de evitar confronto direto e de suavizar as fissuras do conflito, a feminilidade opera como um sistema de valor de bondade, um código de consideração e de sensibilidade que na sociedade moderna está em falta.
Não há motivo para negar que a indulgência na arte da ilusão feminina pode ser reconfortante para uma mulher, se ela calhar de ser boa nisso. Enquanto a sexualidade passa por revisões atordoantes, evidências de que se é uma mulher “por dentro” (a pergunta do inquisidor) não é algo sem valor. Uma vez que uma resposta dessas pode ser abastecida pelo acúmulo de documentação adicional, a afirmação pode partir de atividades femininas triviais porém identificáveis como comprar um delineador novo, experimentar a mais nova cor de esmalte, ou cair no choro no episódio final da novela do momento. Há algo destrutivo nisso? Fatores de custo e de tempo, o desvio de energia e um mergulho em falsidades rapidamente vêm à mente, e elas precisam ser balanceadas, como em um livro de contabilidade, contra a vantagem afirmativa.
Ao longo deste livro eu tentei traçar princípios femininos significativos em relação à biologia básica, porque a expressão feminina é convencionalmente elogiada como uma melhoria da natureza feminina, ou como a matéria bruta da natureza feminina moldadas e coloridas à perfeição. Às vezes eu descobri que tal conexão biológica existia, e às vezes não, e às vezes eu tive de admitir que diversos pressupostos científicos sobre a natureza feminina estavam em aberto e em debate, e que não havia conclusão à vista antes que todas as evidências fossem trazidas à mesa. Foi mais esclarecedor explorar as origens da feminilidade enquanto trejeitos emprestados do status de classes mais altas, e na subjugação histórica das mulheres por meio da violência sexual, da religião e da lei, nas quais certos mitos sobre a natureza das mulheres foram levados adiante como fatos biológicos. Também foi instrutivo abordar a feminilidade do ângulo do glamour sedutor, que geralmente não se encaixa perfeitamente com o refinamento aristocrata, relevando algumas mensagens femininas contraditórias que frequentemente aparecem como um quebra-cabeças impenetrável.
O aspecto competitivo da feminilidade, a competição fêmea-contra-fêmea produzida pelo esforço de atrair e de segurar homens, é um dos maiores temas que tentei explorar. Competição macho-contra-macho por posições hierarquicamente superiores e por acesso a fêmeas é um tema popular em antropologia, no estudo de animais assim como de humanos, mas poucos estudiosos pensaram em examinar a batalha acirrada de fêmeas por hierarquia e acesso a machos. Ainda assim, o esforço para abordar o ideal feminino, por desafiar a feminilidade de outras mulheres, e especialmente por superá-las, é a arena competitiva principal (certamente é a única arena aprovada) na qual a mulher estadunidense é sinceramente encorajada a participar. Se essa forma contagiosa de competição é uma estratégia de sobrevivência útil ou saudável é uma questão crítica.
Hinos à feminilidade, combinados com instrução, nunca estiveram em falta. Diversas gerações de nós somos familiarizadas com [2] coisas de mocinha, sabemos diversos refrões de bossa nova, samba-canção e até pop rock sobre mulheres ideais (vide “Minha Namorada”, de Vinicius de Moraes; a famosa Amélia, de Ataulfo Alves; ou, ainda, Pelados em Santos, dos Mamonas); e tomamos as dores de todas as músicas sertanejas escritas por um eu-lírico masculino rejeitado. Minha contribuição ao tema pode ser decididamente “imusical”, mas não é um manual de “como não fazer”, nem é uma completa condenação. A feminilidade merece uma avaliação, e foi isso que eu tentei fazer.
Uma poderosa estética que é construída sobre o reconhecimento da impotência é um tema escorregadio para se agarrar, porque suas contradições são elusivas, efêmeras, e, em última análise, impressionantes. Uma conduta que combina uma atitude atenciosa com ornamentos das classes mais altas e uma etiqueta composta em partes iguais por modéstia e exibição são paradoxos que requerem interpretações atentas. Uma estratégia de sobrevivente que é baseada em evidentes concessões e restrições impostas merece um estudo detalhado, porque o que se ganha e o que se perde nem sempre é óbvio. Ao organizar meus capítulos ao longo de linhas pragmáticas — corpo, cabelo, roupas, voz, etcetera — eu tentei uma análise racional que é livre de mistificações. Vir com tudo sobre alguns aspectos familiares ao mesmo tempo em que se admite uma tolerância afeiçoada por outros foi inevitável na minha tentativa de dar uma avaliação honesta às estratégias femininas que eu mesma pratiquei ou descartei. Eu não tenho a intenção de projetar minhas decisões e escolhas particulares como o melhor caminho ou a última palavra, nem quero condenar as mulheres que praticam tal arte em formas diferentes das minhas. Eu ofereço esse livro como um passo adiante em direção da consciência, na esperança de que um dia o ideal feminino não mais será usado para perpetuar a desigualdade entre os sexos, e de que o exagero não será necessário para se estar segura em seu sexo biológico.
SUSAN BROWNMILLER. Nova York, 1983.
[1] No original, a autora usa a palavra femaleness, para enfatizar características naturais de fêmeas, em oposição a femininity, que são as características socialmente construídas atribuídas às fêmeas.
[2] Aqui a autora levanta diversos referenciais de feminilidade aos quais as meninas estadunidenses são expostas desde cedo. Como são bastante específicos à cultura dos Estados Unidos, não fiz uma tradução literal; ao invés disso, busquei referenciais brasileiros.