Heterossexualidade compulsória, lesbofobia e resistência

Fúria Raiz
QG Feminista
Published in
8 min readSep 27, 2016
“Um dia sem lésbicas é como um dia sem a luz do sol”

É importante que o movimento feminista não pense na heterossexualidade compulsória como um conceito igualmente nocivo a todas as pessoas. Não é sobre uma suposta opressão genérica que visaria forçar todas as pessoas à heterossexualidade por um motivo moral. Como nos ensina Adrienne Rich, no tão citado ensaio Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica (1980) [1], a heterossexualidade compulsória é um regime político que visa manter o acesso de homens aos corpos e capacidades intelectuais, laborais e reprodutivas de mulheres, por meio do conceito ferrenho de núcleo familiar, da monogamia, da falsa dicotomia entre espaços públicos e privados, e da naturalização da mulher como categoria reprodutiva resumida à sua especificidade biológica — e portanto inferior, complementar, existente apenas em oposição ao masculino ou saída da costela.

Afirmamos que a heterossexualidade é compulsória para todas e todos. Contudo, ela se coloca de uma forma muito diferente para mulheres, afinal nós somos escravizadas enquanto eles são idolatrados e seus poderes perpetrados pelo mesmo regime político. Por um lado, homens são educados para a dominação, para a primazia no núcleo familiar patriarcal; por outro, a mulher é forçada à submissão, tanto fisicamente quanto culturalmente, por meio de uma série de políticas familiares e educativas que incutem que sua existência é definida pela atratividade que exerce nos homens e só será completada quando for devidamente penetrada e engravidada por um.

Quando falamos de submissão física e cultural estamos falando de todas as relações entre os sexos construídas na sociedade patriarcal, desde práticas para nós socialmente condenáveis, como o casamento infantil e a pedofilia de uma forma geral; a mutilação clitoriana; o casamento arranjado, quando o pai passa sua filha para as mãos de um homem, como uma transferência de propriedade; quanto em outras situações que muitas vezes aprovamos sem nos dar conta do que representam na vida das mulheres, como a prostituição e o “aluguel” de barrigas de mulheres empobrecidas e vulnerabilizadas. Aliás, é importante frisarmos, como lésbicas e feministas radicais que somos, que, em acordo com o pensamento de Carla Lonzi (1970), Jéssica Valdés (2021), Carole Pateman (1988), Maria-Milágros Rivera e demais pensadoras do feminismo radical da diferença, o modelo sexual masculino, baseado no sexo penetrativo, também é compulsório: é dado como única forma de sexo, heterossexual ou não, e é apresentada como prazerosa quando é perigosa e dolorosa para grande parte das mulheres.

Aos homens gays foi ensinada a virilidade e a dominação — e eles a exercem, mesmo rejeitando o papel de patriarca. Eles exploram empregadas domésticas e suas mães, irmãs, avós e tias, e não deixam de levantar a voz para uma mulher quando confrontados, não deixam de ser beneficiários de salários maiores e poder aquisitivo e político maiores que os das mulheres de sua classe e raça, principalmente se elas forem lésbicas. Como bem nos ensina Margarita Pisano (2001), os homossexuais do sexo masculino “sempre se amaram e se armaram misoginamente, onde quer que estivessem” [2]. Por outro lado, às mulheres é forçado um entendimento da própria existência regado à submissão e insegurança desde bem cedo, quando o primeiro sapatinho rosa foi colado à barriga da mãe, e qualquer manifestação de autonomia é reprimida (estudo, trabalho, escolha quanto à maternidade, etc). Por isso, é possível afirmar que a heterossexualidade compulsória não oprime homens e mulheres. Com base em sua sexualidade, homens podem ser perseguidos, machucados, agredidos, mas sofrimento e opressão são conceitos diferentes e muito caros a nós, feministas, como ilustra bem a teórica Marilyn Frye em seu texto Opressão (1983) [3]. Enquanto o sofrimento é inerente a todos os seres humanos, a opressão é uma situação específica que afeta povos marcados, seja pelo sexo, pela cor, etnia ou classe social.

“Devemos ter claro que a masculinidade empoderada, empodera todos os homens, também os homossexuais. Em todos os momentos de exaltação da masculinidade ao longo da história, apareceram grupos de homens homossexuais mais ou menos legitimados na semipenumbra do poder, por isso é fundamental desentranhar todos esses espaços legitimados na semipenumbra do poder. Não quero dizer que os homossexuais não sejam perseguidos, senão que gozam de certos benefícios, dos quais não gozam as lésbicas” (Pisano, 2001) [2].

Às mulheres lésbicas é relegada, então, a sub-existência, o limbo dos despossuídos e despossuidores, na margem da sociedade. A falta de direitos básicos as relega a subempregos e as coloca em condições ainda maiores de exploração. A lésbicas resta a histeria, a loucura e a invisibilidade. Por essa razão, o único modo de se posicionarem é enquanto outsiders, afirmando sua existência fora da norma e sua consequente resistência.

O movimento LGBT assimilou essas duas vivências e cooptou mulheres lésbicas sob o argumento de que sofrem igualmente as consequências de algo que chamaram heteronormatividade, ignorando qualquer recorte de sexo e as estruturas de poder, opressão, exploração e interesse que mantêm o sistema. É papel do movimento feminista fazer tal diferenciação, pois, embora ambos rompam com o estereótipo da heterossexualidade, não há nada mais que assemelhe mulheres lésbicas a homens gays. Eles não compõem uma categoria pois não existem da mesma forma, não são oprimidos da mesma forma e não têm o mesmo papel na sociedade — e mulheres lésbicas são um reduto de resistência. A sexualidade lésbica é o que há de mais subversivo dentro de uma sociedade patriarcal, motivo pelo qual é julgada como asquerosa. Encaixá-la no conceito de diversidade é desonesto, reducionista e serve apenas a interesses políticos desfavoráveis aos nossos.

“A homossexualidade lésbica tem a potencialidade de aproximação de uma mudança cultural mais profunda, que não se corresponde a do movimento homossexual masculino, onde as políticas e o discurso estão definidos pelos homens machistas homossexuais e nos quais se repete a invisibilização que nós mulheres temos sofrido sempre e, consequentemente, não conseguem criar uma proposta transformadora. O que transforma a sociedade é uma visão crítica aos valores da masculinidade e suas instituições e essa reflexão não fazem os homens por razões óbvias, esse é seu lugar de poder e identidade” (Pisano, 2001) [2].

Com isso, é curioso que ao invés de se preocupar com mulheres lésbicas que seguem enxergando a heterossexualidade como única saída, que estão presas ao regime compulsório no qual foram criadas, o movimento feminista se deixe cooptar e passe a gritar por uma liberdade sexual que de livre não tem nada, num discurso raso que não abrange nem uma fração do que é a vivência lésbica e a importância de mulheres negarem o acesso masculino aos seus corpos.

O feminismo precisa ser lesbocentrado porque a revolução será lesbocentrada ou não será. Isso não quer dizer que toda mulher é ou será lésbica ou que as pautas de mulheres que se reivindicam heterossexuais ou bissexuais são menos importantes, mas sim que é necessário se reavaliar, colocar a própria sexualidade em questionamento, e tentar ao máximo se livrar da ideia de que é absurdo ou anormal viver sem homens — porque só entendendo os corpos das mulheres enquanto autônomos as mulheres poderão estender esse raciocínio para sua existência e por consequência suas atividades, sua força de trabalho, sua inteligência e capacidade. Isso não quer dizer que não exista heterossexualidade como sexualidade, apesar da sexualidade ser socialmente construída. Na verdade, quer dizer que a existência da heterossexualidade não anula o caráter político que ela tem, nem o que ela representa. Por último, isso não é sobre endeusar mulheres lésbicas ou romantizar a lesbianidade. É sobre entender a importância de mulheres que amam e priorizam apenas mulheres dentro de uma sociedade patriarcal.

É de suma importância, então, que o movimento feminista não fale de homofobia, mas de lesbofobia enquanto uma consequência da misoginia institucionalizada, que entenda suas diferenças e que dê importância à produção política lesbiana. É importante que o feminismo não caia nas relativizações e distorções típicas do movimento LGBT, no conceito de monossexualidade enquanto grupo e como potencializadora de poder, privilégio e opressão, na crença de que lesbianidade é um rótulo a ser abolido como todos os outros, na crítica pós-moderna à saída do armário lésbica com o falso argumento de que se assumir lésbica seria conservador, e na misoginia clara que é a abominação de mulheres que restringem sua atividade sexual a fêmeas e por isso são taxadas de “transfóbicas”.

Enquanto o movimento feminista reproduzir esses conceitos falhos, ele não será acolhedor a lésbicas e suas especificidades; enquanto culpabilizar ou duvidar da lesbianidade de mulheres que se assumiram mais tarde (inclusive invisibilizando a existência de lésbicas mães), enquanto não entender a violência que a presença de homens pode ser para lésbicas, enquanto não pautar estupro corretivo, ele as estará invisibilizando, estará sendo lesbofóbico e reproduzindo mais do mesmo, travestido de discurso revolucionário. O feminismo precisa exaltar, respeitar e honrar a lesbianidade. Como bem disse Margarita Pisano em O Triunfo da Masculinidade (2001) [2], “repensar nossas formas políticas de nos relacionarmos é fundamental para não suplicarmos ao mesmo sistema que nos deslegitima, que nos legitime, fazendo dele duplamente poderoso”. O feminismo, especialmente o feminismo lésbico e radical, é o único movimento que se propõe a pensar a origem da nossa opressão e condição no mundo. Não podemos jamais abandonar as mulheres lésbicas.

“O lesbianismo feminista explica que a mulher não depende econômica, emocional e materialmente dos homens. Esse já é um ato subversivo frente ao patriarcado e frente a todas essas formas de exploração e subordinação. Não necessitamos dos homens para viver, pois criamos redes solidárias entre mulheres, sejam elas lésbicas ou não. Essas redes têm gerado outras formas de relação, de sexualidade e prazer, nem falocêntricas nem opressoras. São outras relações sociais não hierárquicas. A partir dessa posição, o lesbianismo, então, não se entende somente como uma prática sexual, mas também, sobretudo, como uma atitude de vida, uma ética emoldurada em uma proposta política” (Ochy Curiel, 2007) [4].

Grande parte das mulheres estremecem ao ouvir que não precisamos dos homens e que não queremos servi-los, pois quando os homens não necessitam de algo, normalmente eles destroem esse algo, seja por ação ou por omissão. A vida e a existência só são permitidas por eles enquanto forem úteis aos seus caprichos e desmandos. Esse é o modo masculinista de pensar. Portanto, esse texto é, na verdade, um apelo. Pois enquanto o feminismo for heterocentrado e se juntar ao coro daqueles que gritam, aos quatro ventos, que lésbicas não existem, ele não será para nenhuma lésbica. E sem sapatão não há revolução. Continuaremos nas garras do patriarcado.

[1] Rich, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/11nCC5JkvX6mo5pW82XlEKOQ8r-LJP_GE/view. Acesso em: 17 mar. 2021.

[2] Pisano, Margarita. O triunfo da masculinidade. Disponível em: https://medium.com/qg-feminista/o-triunfo-da-masculinidade-4c6d5e08004b. Acesso em: 17 mar. 2021.

[3] Frye, Marilyn. Opressão. Disponível em: https://materialfeministatraduzido.tumblr.com/post/89296363714/opression-por-marilyn-frye-do-livro-politics-of. Acesso em: 06 set. 2021.

[4] Curiel, Ochy. Pensando o lesbianismo feminista. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/8717-pensando-o-lesbianismo-feminista-uma-entrevista-especial-com-ochy-curiel. Acesso em: 06 set. 2021.

Aplauda! Clique em quantos aplausos (de 1 a 50) você acha que ele merece e deixe seu comentário!

Quer mais? Segue a gente:

Medium

Facebook

Twitter

--

--