Lesbianismo é uma posição política.

maria eduarda antonino
QG Feminista
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12 min readAug 16, 2018

Para a minha Lavender Menace preferida, Manu Antonino.

É comum que as feministas sejam representadas no senso comum como uma mulher mal-amada, feia, que se comporta como homem (não se depila, não usa maquiagem), lésbica e sapatão. A conotação pejorativa associada a lesbianidade têm sido feita, muitas vezes, como forma de desqualificar as proposições mais libertárias do feminismo, ou seja, aquelas que vem para revolucionar as normatividades sexuais. No seio das primeiras concepções feministas lésbicas já se discutia à ideia de que a desconstrução da subalternidade[1] das mulheres só aconteceria mediante a ausência do desejo das mulheres por homens, sendo esta premissa resultante da desorganização e do desmonte do sexismo e da heterossexualidade obrigatória. Afinal, as normas que mantêm a heterossexualidade são tão diversas, sutis, inflexíveis e onipresentes que se alastram pela sociedade sem a gente questionar. Por isso mesmo, o feminismo, nos seus primórdios, caiu na armadilha da heterossexualidade obrigatória[2] (Falquet, 2006) e excluiu muitas companheiras da luta feminista, em especial, "as lésbicas-futuristas, sapatonas convictas".

A heteronormatividade baseia-se na naturalidade da heterossexualidade, criando expectativas, demandas, simbologias, normas e obrigações sociais, enfim, um “conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, a heteronormatividade marca até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto” (Miskolci, 2009; p.154). Uma das expressões mais cruéis da heteronormatividade é a homofobia que se caracteriza pela repulsa a indivíduos gays, lésbicas e transgêneros e o medo que se tem das orientações sexuais e das identidades de gênero que rompem com a lógica binária. Podem acontecer através de preconceitos, atitudes discriminatórias e ridicularizantes, muitas vezes, violentas, como o estupro corretivo/punitivo[3] e o assassinato. A sexualidade e a critica à heteronormatividade tenderam a estar subsumidas na categoria gênero, todavia têm sido confrontadas pela produção teórica e ativismo de mulheres lésbicas. Algumas teóricas lésbicas feministas mais importantes, como Wittig, Rich, Falquet, Rubin e Butler tem apontado o heterossexismo presente na formulação teórica e na agenda política do movimento feminista.

As ideias de Wittig (1992), vinculada ao feminismo materialista francês, desafiaram o pensamento feminista da época, reafirmando a lógica que “a sociedade heterossexual é a sociedade que não oprime apenas lésbicas e homossexuais, ela oprime muitos diferentes/”outros”, oprime todas as mulheres e muitas categorias de homens, todas e todos que estão na posição de serem dominadas(os)”. A célebre frase de Wittig, “as lésbicas não são mulheres” foi uma provocação epistemológica e um recurso discursivo, onde ela considera que o discurso não se separa do real, apontando o entrelaçamento de poderes baseados na multiplicidade de linguagens que produzem efeitos na realidade social. A lésbica não é uma mulher, pois escapa à programação inicial, não se inserindo na relação heterossexual e não se submetendo à hierarquização heterossexista como individuo. Produz um rompimento com o modelo pré-determinado de feminilidade atribuído às mulheres, saindo do lugar de objeto que se constitui em relação ao sujeito universal masculino, provocando outras possibilidades de vivência.

Por isso, através dessa concepção heterossexista, existe a construção de imagens antagônicas que relacionam o feminismo à feminilidade, associando a mulher às características do sagrado feminino, do corpo, da emoção em oposição ao homem e sua masculinidade, cabeça, razão, força. O binarismo se fundamenta e se apresenta como uma entidade autônoma, com valor absoluto e que independe das contingências do todo. Gerando noções equivocadas de mulher verdadeira e homem verdadeiro. Que levam a colocações como o risco da perda da feminilidade por feministas quando se associa o feminismo a lesbianidade, pois seria o mesmo que dar como certa a masculinização das mulheres nesses grupos. Dessa forma, as lésbicas foram vistas, durante um longo período do movimento feminista, como uma espécie de possíveis contaminadoras da imagem das feministas que arruinariam a categoria mulher (verdadeira). Tanto que, a relação entre feminismo e lesbianidade tem sido marcada por tensões e aproximações no campo teórico e político.

Campo político

O movimento feminista lésbico como um subconjunto do movimento feminista surgiu no século XX, na convergência do movimento feminino com os direitos para os gays e a revolução sexual. Feministas lésbicas legitimaram relações sexuais com o mesmo sexo e utilizam sua identidade lésbica como base para construção comunitária e coletiva. O movimento feminista lésbico assim como sua teoria, desafiou a percepção da heterossexualidade e supremacia masculina como normal e apresentou formas alternativas de pensar sobre gênero e poder. Antes dos anos 1960, a comunidades gays e lésbicas que se desenvolveram nos Estados Unidos, especialmente em áreas urbanas, geralmente se reuniam em bares ou casas privadas. Muitas dessas comunidades funcionavam no underground como um meio de proteção contra a hostilidade, violência física, ostracismo social, assédio social e perda de emprego. Exatamente pelo fato de mulheres lésbicas estarem agindo dentro de uma cultura que visualizava a homossexualidade como uma forma de desordem mental e uma ameaça para o bem-estar da sociedade americana, seus questionamentos sociais, legais e econômicos eram aceitos apenas no âmbito do privado, dentro dos grupos iria prevalecer a categoria universal da mulher.

Feministas Lésbicas — National March on Washington for Lesbian and Gay Rights, Washington, D.C., 14 de Outubro , 1979.

Lentamente essa ideia começou a ser desafiada. Em 1955 a grupo de mulheres lideradas por Del Martin e Phyllis Lyon fundaram o Daughters of Bilitis (DOB) a primeira organização nacional para lésbicas. Membros de DOB estavam organizadas para propósitos políticos e sociais, buscando acabar com sentimento de isolamento de muitas lésbicas, buscando educar mulheres gays sobre seus direitos legais e aumentar sua aceitação social. O Daughters iniciou sua própria revista “The Ladder”, em 1964, as capas da revista eram fotografias de mulheres lésbicas, com o objetivo de torná-las mais visíveis. A primeira mulher que permitiu que sua foto e seu nome fossem impressos foi da Indonésia que enviou sua foto e uma carta explicando como ela vivia isolada.

Com o surgimento da segunda onda do feminismo na década de 1960, as preocupações específicas das lésbicas surgiram como parte de um desafio mais amplo contra o sexismo. As lésbicas desempenharam um papel proeminente em muitas novas organizações feministas, ajudando a promover a igualdade no local de trabalho, no lar e nos tribunais. Concomitantemente, os direitos civis e os movimentos pelos direitos dos gays e a mudança de atitudes em relação à sexualidade criaram aberturas para um ataque mais visível e desafiador à opressão sexual. No entanto, muitos tabus ainda cercavam o lesbianismo dentro de organizações feministas na década de 1960.

Betty Friedan (escritora, teórica “Mística Feminista”), fundadora em 1966 da Organização Nacional para as Mulheres (NOW), estabelecida por um pequeno grupo de feministas dedicadas a acabar com a discriminação de gênero em todas as áreas da sociedade americana, chamou as integrantes lésbicas que participavam da organização de “lavender menace” (ameaça lavanda). Ela afirmou e muitas outras heterossexuais do grupo que as lésbicas ameaçavam manchar a reputação do movimento feminista, afastando as mulheres por medo de associação e desviando a atenção de campanhas mais importantes para a igualdade das mulheres. Da mesma forma que dentro de organizações de direitos gays, algumas lésbicas encontraram suas preocupações marginalizadas por homens que não estavam comprometidos em acabar com o sexismo na sociedade em geral. As feministas lésbicas responderam criando suas próprias organizações para transformar a vergonha em orgulho e desafiar a crença que equipara o lesbianismo ao desvio, ao errado, ao constrangimento.

Em consequência dessas posturas tanto da comunidade LGBTQ quanto dos grupos feministas, muitas lésbicas revoltadas saíram das organizações, especialmente a NOW e formaram seus próprios grupos e a Lavender Menace foi um desses. Formado em 1970, incluía muitos antigos membros da NOW e da Gay Liberation Front como Rita Mae Brown, o grupo interrompeu o Second Congress to Unite Women (organizado pelo NOW) por não incluir na sua agenda nenhum tópico sobre os direitos lésbicos, cortaram as luzes, assumiram o palco e o microfone com as suas camisas “Lavender Menace” e começaram a entregar seu manifesto “The Women Identified Women[4]”.

Lavender Menace protesto | Mulheres com a camisa Lavender Menace.

O manifesto está organizando em dez parágrafos e é agora considerado um ponto de mudança na história do feminismo radical e um dos marcos fundadores de feminismo lésbico. Foi escrito coletivamente por um grupo, que incluía Artemis March, Lois Hart, Rita Mae Brown, Ellen Shumsky, Cynthia Funk, e Barbara XX. Elas argumentaram que as lésbicas estavam na vanguarda da luta pela libertação das mulheres, porque sua identificação com outras mulheres desafiava as definições tradicionais da identidade feminina em termos de parceiros sexuais masculinos. Assim, o apoio às lésbicas e um compromisso aberto à libertação das lésbicas era para ser considerado absolutamente essencial para o sucesso e realização do movimento de libertação das mulheres. Um ponto chave do Manifesto é o conceito de que para as mulheres deixarem de ser “cidadãs de segunda classe”, mulheres deveriam estar dispostas a considerar outras mulheres como parceiras sexuais. Até as mulheres verem em si mesmas como uma possibilidade de um compromisso primitivo que inclui o amor sexual, elas vão estar negando a elas o amor e o valor, reproduzindo a vontade de homens, assim afirmando seu status de segunda classe.

Manifesto | "The Women Identified Women".

No segundo parágrafo do Manifesto, elas discorrem sobre o lesbianismo: “deve-se primeiro entender que o lesbianismo, como a homossexualidade masculina, é uma categoria de comportamento possível apenas em uma sociedade machista caracterizada por papéis sexuais rígidos e dominada pela supremacia masculina. Esses papéis sexuais desumanizam as mulheres, definindo-nos como uma casta de apoio /serviço em relação à casta mestra dos homens, e emocionalmente aleijam os homens, exigindo que eles sejam alienados de seus próprios corpos e emoções, a fim de desempenhar suas funções econômicas/políticas/militares de maneira eficaz. A homossexualidade é um subproduto de uma maneira particular de estabelecer papéis (ou padrões aprovados de comportamento) com base no sexo; como tal, é uma categoria inautêntica (não consonante com a realidade). Numa sociedade em que os homens não oprimem as mulheres, e a expressão sexual é permitida através dos sentimentos, as categorias de homossexualidade e heterossexualidade desapareceriam”.

O silenciamento do feminismo sobre a experiência da lesbianidade na vida das mulheres colaborou para a manutenção da invisibilidade. O questionamento à heterossexualidade obrigatória não teve espaço na formulação epistemológica e na agenda política do movimento feminista, tendo sido priorizada a agenda relacionada às vivências de mulheres heterossexuais, como: a contracepção, o aborto, a esterilização, a gravidez, o parto. A constituição de lésbicas como sujeito político feminista foi tardia e a visibilidade das questões lésbicas no movimento feminista ainda é tênue. Recentemente, a reivindicação da diversidade e da categoria mulheres pelas mulheres negras e lésbicas ampliou os feminismos, a lesbianidade assume um caráter político ao representar uma atitude e uma postura epistemológica ante o sistema heterossexual de organização social, carregando consigo a indignação com a sujeição das mulheres. As lésbicas se constituem como sujeitos que contrariam a referência masculina do androcentrismo, criando novas formas de sociabilidade e de prazer, com múltiplos arranjos amorosos sexuais e trânsitos entre práticas afetivo-sexuais[5] (Falquet, 2006; Navarro-Swain, 2004; 2000).

A história disse tão pouco e muito ainda tem que ser revelado sobre a lesbianidade, por isso, mesmo com todo o esforço de não fixar identidades e aprisionar as sexualidades, mantém-se importante a identificação das mulheres lésbicas, assim como as negras, como sujeito político feminista no contexto da diferença, marcando o feminismo com uma pluralidade de demandas políticas e epistemologias. Especialmente, não podemos esquecer que a luta pela igualdade de gênero só vai ser possível se existir uma igualdade entre as mulheres dentro do próprio movimento. O feminismo deve abrir espaço real para as articulações, interpretações, reflexões e teoria das mulheres lésbicas, abandonando reinvindicações universais das mulheres, pelo simples fato dessa não ser a realidade de todas as mulheres.

📌Saiba mais:

📌Documentário: Invisibilidade Lésbica, de Thais Faria militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Vídeo-documentário que busca retratar como a sociedade vê e se comporta em relação as mulheres lésbicas e bissexuais. Através de depoimentos, o filme tem a intenção de mostrar como são construídos os esteriótipos e como essas relações afetivas tocam o mundo. Temas como educação, saúde, religião católica, direitos civis, movimento LGBTT e a mídia são abordados tentando revelar como as mulheres que amam outras mulheres se tornam invisíveis na sociedade. As entrevistas trazem os olhares das mulheres sobre a sexualidade e as percepções do seu contexto e as perspectivas de mudança social.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5TLdExqMnUM

📌Stand-Up: Hannah Gadsby: Nanette, de Jon Olb e Madeleine Parry.

Hannah Gadsby é lésbica e cresceu na Tasmânia, Austrália, onde a homossexualidade era crime até 1997. Em “Nanette”, ela faz piadas com o preconceito, mas depois explica que as brincadeiras autodepreciativas que fazia no início da carreira eram uma resposta errada às agressões, e conclui que o humor não dá conta da violência que sofreu, revolucionando o stand-up.

📌Podcast Olhares: Ep #015 Visibilidade lésbica e bissexual.

Nós vivemos em uma sociedade que normatiza a sexualidade. A figura do “armário” é um conceito violento feito por uma estrutura heterossexista. A homossexualidade e a bissexualidade devem deixar de ser vistas como tabus em nossa sociedade. Devemos aprender que é possível compreender a sexualidade em diversos parâmetros, saindo da fetichização e abrindo novos olhares para os verdadeiros problemas das mulheres lésbicas e bissexuais.

https://olharespodcast.com.br/2017/10/18/ep-015-visibilidade-lesbica-e-bissexual/

📌Youtube: Playlist #VisibilidadeLésbica, de Louie Ponto.

É uma playlist de 19 vídeos sobre #VisibilidadeLésbica.

https://www.youtube.com/playlistlist=PLueddRxasZQxxgKcSfs6xNGyWwkyHaUzw

📌Filme: Persona, de Ingmar Bergman.

Após um desempenho na peça “Electra”, uma famosa atriz, Elisabeth Vogler (LIv Ullmann), pára de falar. Sua psiquiatra, Lakaren (Margaretha Krook), a deixa sob os cuidados de Alma (Bibi Andersson), uma dedicada enfermeira. Como já fazem três meses que Elisabet não profere uma palavra, Lakaren decide que ela deva ser mandada para uma isolada casa de praia, com Alma. Na casa Alma fala pelas duas, pois Elisabet continua muda, comunicando-se apenas com pequenos gestos. Com o convívio Alma fica uma pouco enamorada pela atriz. Num dia conta para Elisabeth sobre uma excitante experiência sexual que teve numa praia, com desconhecidos, e a conseqüência desagradável disto. Pouco depois de fazer esta confidência ela lê uma carta que Elisabeth tinha escrito, onde fica chocada ao descobrir que a atriz pensa nela como um divertido objeto de estudo.

📌Filme: Pariah, Dee Rees.

O filme conta o drama da adolescente Alike. Enquanto amadurece, ela tem que decidir se deve expressar sua sexualidade abertamente ou viver de acordo com os planos que seus pais têm para ela.

📌Fotógrafa lésbica: Alice Austen.

Trude & I | 1981 — Alice Austen

Alice nasceu em 1866 e viveu em uma cidade no interior dos EUA. Nesse local e época, em um contexto social totalmente tradicional e conservador, ela desafiou e subverteu diversas regras. A fotógrafa registrou cenas da sua vida e do seu círculo de amigas, as quais, muitas vezes, aparecem claramente como casais. A potência da relação e união entre essas mulheres é um traço marcante na obra da artista. Ela própria, Alice Austen, manteve um relacionamento amoroso e viveu mais de 50 anos com Gertrude Tate.

[1]Na obra “Pode o subalterno falar?”, a autora Gayatri Spivak (2014) faz abordagens interessantes sobre o assunto e, apesar de concentrar o texto na análise sobre o sujeito subalterno, aquele que não tem voz política ou não é ouvido, aponta como a mulher é um sujeito duplamente oprimido, pela dominação imperial na divisão internacional do trabalho e pela dominação masculina na construção ideológica de gênero.

[2]Falquet, JULES. De la cama a la calle: perspectivas teóricas lésbico-feministas. Bogotá: Brecha lésbica, 2006.

[3]Atos de violência contra mulheres LBTs são relatados todos os dias e em todas as regiões do planeta. A violência sexual tem sido uma forma bastante utilizada para tentar reprimir mulheres que se denominam lésbicas, bissexuais e transexuais de manifestarem seu afeto em público. Esse tipo de violência sexual é denominada de estupro “punitivo” ou “corretivo”. O estupro “corretivo” ou “punitivo” é um crime no qual homens estupram mulheres que assumiram uma identidade de gênero diversa da imposta pela cultura patriarcal, ou seja, a heteronomatividade, sob o pretexto de tentar “curar” suas vítimas da homossexualidade (Duarte, 2013). Disponível em:< DUARTE, Rachel. “Estupro Corretivo: Vitimiza Lésbicas e Desafia Poder Público No Brasil”. Jornal eletrônico Sul 21, 2013>.

[4] Manifesto disponível em ingles em <https://library.duke.edu/digitalcollections/wlmpc_wlmms01011/>

[5]NAVARRO SWAIN, Tania. O Normal e o abjeto: a heterossexualidade compulsória e o destino biológico das mulheres. Revista LABRYS n. 6. 2004; O que é Lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000.

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maria eduarda antonino
QG Feminista

PhD student in Sociology at the Federal University of Pernambuco (UFPE/Brazil). Research interests: religion and politics; feminism; gender.