Lesbianismo e diferença sexual
Texto original de Andrea Franulic aqui, tradução fêmea brava
“Para que a mulher possa se amar sem necessariamente passar pelo desejo do homem, ela precisa da reconstrução de uma genealogia feminina, especialmente de uma crítica da relação vertical mãe/ filha, que modele e permita uma abertura para a transcendência dentro da horizontalidade das relações entre mulheres, se não, correm o risco de encararem interesses disformes ou cair em uma competição selvagem, quase animal, que, na ausência de regras, seria inevitavelmente destrutiva” (Wanda Tomasi)
Não basta ser feminista
Quando me atrevi a me aventurar no lesbianismo, eu o fiz motivada por ideias feministas que destacavam a experiência lésbica com toda sua potencialidade transformadora do mundo. Curar-se da misoginia internalizada, amando outra mulher, era parte do que a consciência feminista prometia. A frase não basta ser lésbica para mudar a ordem das coisas, é preciso somar a isto o feminismo era o que norteava nosso horizonte. No entanto, apesar do feminismo, as experiências de sensualidade e amor com outra mulher nem sempre trazem felicidade, mas também sofrimento. Foi o que aconteceu comigo e penso que com muitas outras mulheres feministas e lésbicas também. Além do que cada uma traz de sua individualidade e fatos biográficos, incluindo carência, insegurança, traumas, etc., e situando-me politicamente, embora saibamos que o pessoal é político, poderia dizer que tampouco basta ser feminista. Me refiro, inclusive, ao feminismo radical. O que eu acredito, e é isso que eu estou interessada em abordar neste texto, é que ao lesbofeminismo falta uma consciência maior da diferença sexual feminina. Uso o conceito de feminilidade, não como um estereótipo codificado pelo patriarcado, mas como o fato irredutível de ter um corpo sexuado mulher e de como esse fato é significativo, isto é, capaz de criar significados culturais, portanto, não é um fato neutro, nem reduzido à biologia.
Para mim, continua sendo fundamental nos descolonizarmos da misoginia, mas a profundidade que esse ato requer está intimamente ligada a mim, e eu não o atribuo às relações lésbicas; à estas, sim, reconheço uma potencialidade política incorporada em nos reconhecermos mulheres (2). No entanto, o lesbianismo foi gradualmente sendo separado da experiência feminina. Em parte, isso ocorre porque, historicamente, apesar de termos quebrado com as codificações de feminilidade patriarcal — e precisamente a isto se deve parte do nosso charme— temos sido localizadas como uma reação ao patriarcado — o que, sem dúvidas, afeta nossas vidas — no masculino, apenas pelo fato de nos expressar, criar, falar, levantar nossas vozes, nos amarmos, não parirmos, e também pela nossa forma de nos vestir ou cortar o cabelo. Toda essa gama de desqualificações, que a sociedade do Homem direciona à mulher lésbica, dá conta deste imaginário infeliz: mulher-macho, sapatão, caminhoneira (embora este termo tenha sido redefinido pelo ativismo lésbico), maria-joão, etc. Estas expressões representam a discriminação e a invisibilidade a que foi submetido o lesbianismo, extremamente marginalizado na cultura, devido ao pensamento inclusivo e dicotômico do patriarcado, para o qual, se você não é feminina, você é masculina; e ambas as construções são informadas por um corpo sexuado homem que, para arrematar, se auto-atribui o caráter de universal.
É também porque a tradição do pensamento patriarcal, a partir de seus três estandartes: filosofia, religião e ciência, teve o cuidado de apagar e negar o sexo feminino. Esta operação, repetida ciclicamente na história, conta com um último arremate do qual sofremos suas consequências — a modernidade, uma vez que é aqui (a partir do século XVII em diante) que se consolida uma forma renovada do androcentrismo de sempre: a ideia de um sujeito universal, que se presume neutro, que se prende ao conhecimento dos que detêm poder, trazendo consigo o viés masculino, em torno do qual se desencadearam as lutas pelos direitos da cidadania e os ideais de igualdade.
Na atualidade, podemos observar, em termos gerais, a aprovação real, além da estética, de mulheres e mulheres lésbicas aos homens, nas diferentes esferas da vida, porque a todos os itens acima, adicionamos o efeito das teorias pós-modernas, que vêm reforçar, agora no século XXI, e de uma maneira um tanto sofisticada, o mesmo androcentrismo instalado pela visão de mundo moderna. As teorias pós-modernas, enquanto questionam as próprias ideias de universalidade e igualdade, continuam a negar o sexo como uma categoria significativa; por isso, se prendem igualmente ao fio rígido da tradição, só que agora definindo o sexo, não como um fato empírico à maneira moderna, mas como uma construção discursiva que pode ser desconstruída. Sem ir tão longe, a teórica francesa lésbica Monique Wittig diz que as lésbicas não são mulheres, porque define o sexo como uma construção de dominação patriarcal, projetada sobre a dicotomia homem/ mulher. Nós, lésbicas, ao não entregarmos nossas energias produtivas, emocionais e sexuais aos homens, romperíamos a dita dicotomia e abandonaríamos o lugar de mulheres, ao passo que contribuiríamos para a desconstrução da categoria de mulher nos discursos.
Penso que Wittig, com suas raízes materialistas e pós-modernas, promove com esta abordagem, por um lado, a emancipação e, por outro, a identidade lesbiana. Com a emancipação, ela preserva o espírito moderno e convida mulheres a deixarem de ser mulheres, no sentido de abandonar o papel material e simbólico imposto pelos homens. Estou de acordo com esta última abordagem, mas com nada mais, porque a ideologia emancipadora considera o sexo um obstáculo e, como eu disse, com este ponto de vista, a autora se mantém presa ao fio da tradição do pensamento androcêntrico: o sexo feminino entendido como um corrente de cujo peso é necessário emancipar-se, libertar-se. Em contrapartida, a autora propõe a experiência lésbica que demonstra, em sua viva expressão, que o sexo é uma construção. Lésbicas não são mulheres. Este fio da filosofia androcêntrica, que atravessa o discurso Wittig, me sufoca, e também a ela, porque é a razão que ela não quer ver, aquela que explicaria porque as lésbicas, embora abandonemos aos homens, não abandonamos necessariamente o amor romântico como o ópio das mulheres. Este é o resultado de negar o sexo como fonte de significados.
Propostas como a de Wittig promovem, além disso, a identidade lésbica, e a identidade é o oposto da diferença. A autora abre mão de uma identidade, a das mulheres, para nos meter em outra, a das lésbicas, porque separa as lésbicas das mulheres, assim como o patriarcado e os seus princípios progressistas, que se impõem sobre a nossa experiência comum, como se a temessem, sujeitando-a, por exemplo, à divisão de classes sociais, raças ou idades; e declarando inimigas burguesas com relação às proletárias, a negra com relação à branca, a velha com relação à jovem, e, agora, a lésbicas com relação às mulheres. Para a cultura patriarcal, no entanto, as identidades são funcionais, porque permitem que se submetam as diferenças a um processo de uniformização e, desta forma, que elas sejam administradas por esta própria cultura.
Por exemplo, a feminilidade patriarcal é uma das principais identidades para controlar as mulheres. Neste sentido, Celia Amorós, a teórica da igualdade, argumenta que as mulheres são idênticas, uma vez que podem ser trocadas uma pela outra, à medida que cumprimos as mesmas funções sociais e serviços na cultura masculina; portanto, uma mulher pode ser descartada e substituída por outra. Consequentemente, não se perdoa aquela que escapa do grupo da idênticas (e seguimos escapando), e se destaca na busca de um estilo próprio; a punem, tanto homens quanto mulheres. Outro exemplo, de outro lugar, é o da diversidade neoliberal e inclusiva, que agrupa um conjunto de identidades sexuais, que são empacotadas com o selo LGTBI+.
Consequentemente, se Wittig reconhece a história do lesbianismo, sua genealogia, na materialidade plena de romper com a heterossexualidade instituída, e ao mesmo tempo nega a diferença sexual feminina, ela nos deixa com uma memória truncada.
A diferença
A diferença, por outro lado, é o princípio básico da vida que não se tem deixado fluir na civilização atual. E é o ponto de vista de que é importante retornar à existência lésbica. Historicamente, as mulheres têm sido portadoras desse princípio, uma vez que a diferença, originalmente enterrada, é a do sentido livre de ser mulheres. E, quando isso se expressou politicamente em algum momento da história, foi porque as mulheres deixaram as estruturas patriarcais mais ancoradas à heterossexualidade compulsória: o modelo sexual, o casamento, a maternidade, a família. Sinais concretos deste fato foram descobertos pela historiadora Maria Milagros Rivera Garretas, no final da Idade Média e antes. São traços essenciais que sobreviveram à grande queima de registros implicada pelo ginocídio (genocídio, assassinato em massa, de pessoas do sexo feminino) contra as bruxas. Mulheres como as Beguinas, as Místicas, as Bruxas, as Emparedadas, as Viajantes, as Vagabundas, entre outras, fizeram de sua marginalidade um lugar de potência e pensamento livre, inventando novos estilos de vida entre elas e com o restante do mundo, além de formas distintas de espiritualidade. Fundaram ordens religiosas e também fizeram ciência. Deixaram escritos onde retrataram a misoginia do mundo patriarcal e o prazer de estar em relações entre mulheres. Escapar do regime heterossexual era literal, porque as experiências coincidiam com o impulso e a ação de sair física e geograficamente do sistema, e abrigarem-se ou viverem em ilhas, florestas, mosteiros, entre paredes ou na cidade das damas.
Essas e outras mulheres recuperaram sua diferença sexual para si mesmas. Em alguns casos, tiveram que fechar seus corpos ou deformar seus rostos. O fechamento se devia à única maneira de sobrevivência em um patriarcado tremendamente estuprador. Outras mulheres experimentaram a sensualidade lésbica e o amor entre as mulheres, apesar das perseguições e punições. As bruxas são um excelente exemplo de como a consciência da diferença sexual feminina nos permite experimentar outras formas de sexualidade e conhecimento do próprio corpo, com total conhecimento de seus ciclos, prazeres e doenças. Somente a consciência da diferença sexual permite a expressão da diferença existencial das mulheres. Com isto quero dizer que começamos a criar e a descobrir um sentido livre de ser mulher quando, no final, nos atrevemos a ser nós mesmas. Para isso, é necessário abandonar o jogo com o poder, tanto na esfera pessoal como na política. As mulheres que mencionei são capazes, porque se desprenderam das amarras da heterossexualidade compulsória, cada uma delas contextualizada no patriarcado onde eram obrigadas a viver. Então, esse ato de não pertencer ao sistema nem desejá-lo, isto é, de não negociar o próprio pensamento, se transforma em um lugar de potência criativa, em outra ordem simbólica, ou seja, na criação de novos significados que guiam seus passos pelo mundo e suas relações, sempre de acordo com seus desejos.
Para mim, as expoentes do despertar epistemológico da diferença existencial são Virginia Woolf, que experimentou a existência lésbica; e Carla Lonzi, que rompeu seu relacionamento heterossexual com Pietro Consagra. A primeira diz que é melhor se excluída dos museus e das bibliotecas, que servem apenas para encher de pó — uma metáfora do conservadorismo masculino — os livros e arte; também nos convida a observar a civilização em que vivemos, como se fosse um objeto de estudo, e concluirmos que não temos nada a ver com as guerras dos homens com educação formal ou com o fascismo inerente à cultura patriarcal. A segunda, Lonzi, nos incita a tirar proveito de ter sido excluídas, por milênios, da História; e ela nos convida, com veemência, a aproveitar essa diferença!.
Ambas desprezam a ordem simbólica patriarcal e a civilização que emana dela. Este agir político representa o desdém pelo que é estabelecido, pelo que é abandonável. O que não é respeitado nem se tem apego algum é pelo cruel e empobrecedor sentido da vida que se estabelece. Em suma, é sair de uma relação de poder, algo que não foi inventado por nós, embora sim, e isso não pode ser esquecido, às custas de nossas energias. É também uma maneira de dizer que não somos responsáveis pela barbaridade dos homens. A diferença existencial das mulheres, quando expressada, nos leva a não querer repetir uma cultura patriarcal, tanto pessoal quanto politicamente. E por tudo isso, nos molda e promove a conscientização sobre a diferença sexual.
A proposta
Para mim, o lesbianismo está ligado a esta história. Portanto, também está ligado à ordem simbólica feminina, que surge do sentido de ser mulheres livres e redefine as relações entre mulheres, recuperando a força criativa que o patriarcado usurpa e absorve de nós, ao nos intervir com o regime heterossexual. Os significados desse simbólico se materializam em modelos de relações não-instrumentais, equilibrando harmoniosamente a horizontalidade e a verticalidade nos vínculos entre as mulheres. A verticalidade é dada pela relação mãe-filha (3). Os signos da liberdade feminina incluem representações sociais dessa relação, incorporadas na escrita, na pintura e na música, criadas por mulheres lésbicas medievais. Em vez da verticalidade, as pensadoras da diferença usam os conceitos de disparidade ou assimetria (4). Verticalidade, disparidade ou assimetria, a verdade é que constituem a parte mais confusa de experimentar os laços entre mulheres, precisamente porque a relação entre mãe e filha, e vice-versa, é a ferida que sangra na civilização e de cada mulher.
Retornando a minha declaração do início, e diante da pergunta de por que o sofrimento, eu acho que não basta ser lésbica e feminista, a menos que possamos criar e descobrir uma ordem simbólica feminina, onde não só se instale o desejo de viver na horizontalidade, mas também, a disparidade, como dois lados de uma mesma moeda. A horizontalidade deve ser pensada em conjunto com a disparidade. A horizontalidade, mais do que necessária, pensada sem a disparidade, nos faz correr o risco de voltar para o mundo das idênticas, mesmo que seja em uma versão melhorada, onde se rege a ordem simbólica patriarcal. Neste sentido, algumas autoras argumentam que, por vezes, é impossível reparar o vínculo primário com a mãe de cada uma, mas é possível reatualizar sua potência em relação às outras mulheres, reais e históricas. Reatualizar a disparidade com a mãe significa recuperar essa visão da infância, onde a mãe, se ela estava presente, era a portadora do mais feminino, a que dá a vida e a palavra; e a menina (também o menino) dependia dela com absoluta confiança. Se nas relações entre mulheres, quer sejam intelectuais, políticas, sensuais ou amorosas, não cabe esta assimetria como um eixo articulador da relação, um eixo que é móvel, é muito provável que estas relações se transformem em disformes e destrutivas na competição, como afirma Wanda Tomasi, e, provavelmente seja uma competição não-reconhecida.
Se em uma relação amorosa lésbica, por exemplo, suas integrantes odeiam suas respectivas mães, e nem sequer estejam conscientes da importância vital e cultural que isto tem, e, por isso, elas se identifiquem com o sujeito universal (do sexo masculino), é muito provável que a relação incorpore elementos destrutivos, ao projetar em outra mulher esta falta de história e de sentido, gerando, como disse no parágrafo anterior, uma competição disforme, e às vezes, escondida. Portanto, é importante tentar — não se reconciliar com a mãe real como uma condição indispensável — , mas deslocar a figura da disparidade para o reconhecimento mútuo sobre a outra e apegar-se nisso, para que a relação seja espaço de confiança real, onde a vida e a palavra de cada uma se expressem livre e de forma criativa, que se note que existem, pelo menos, duas ali, porque, na ideia de sermos uma só, predomina o domínio.
Como fazer disso um estilo de vida baseado na confiança mútua, que é fundamental para o conforto e a liberdade? Os rastros genealógicos da liberdade das mulheres podem nos dar algumas respostas, porque nos permitem conhecer as práticas de vida das mulheres sábias do passado. Caso contrário, os campos dos significados patriarcais acabam impondo, com a força usual, suas codificações seculares de inveja entre as mulheres. E sem uma ordem simbólica do sexo feminino que se oponha, se quererá aniquilar, apreender ou vampirescamente absorver a diferença da outra, porque a inveja é a distorção patriarcal do intenso desejo por outra mulher, mas um desejo sem memória do mais feminino.
Notas
(1) Escrevi este texto para apresentá-lo no II Encontro de Feminismo Radical e Lésbico: “O problema da heterossexualidade”, organizado pelas maravilhosas Feministas radicais e lésbicas de Chillán (29 de setembro de 2018).
(2) A relação entre mulheres, e a lésbica principalmente, é complexa, dada a nossa história patriarcal e também porque os laços entre nós são intensos e apaixonados. Portanto, eu acho que o potencial político do lesbianismo não existe por si só, mas, e isso me interessa levantar, é devido à sua complexidade, que devemos entender e desvendar.
(3) Para aprofundar o relacionamento com a mãe e sua ordem simbólica, reveja as abordagens da filósofa italiana Luisa Muraro.
(4) A questão da disparidade e do mais feminino é trabalhada principalmente pela jurista da diferença, Lia Cigarini.