Manifesto das 343

Tradução do manifesto em prol do direito ao aborto publicado em 5 de abril de 1971, de autoria de Simone de Beauvoir

Furiosa
QG Feminista
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9 min readJul 30, 2018

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Do original em francês

O manifesto das 343 foi uma petição francesa publicada na revisa Le Nouvel Observateur, em 5 de abril de 1971, que continha uma lista de 343 mulheres que admitiam terem abortado (o que as expunha à possibilidade de um processo criminal, pois, à época, o aborto ainda era ilegal na França). O manifesto foi redigido por Simone de Beauvoir e assinado por diversas intelectuais, feministas e artistas francesas, dentre elas Christine Delphy, Catherine Deneuve, Monique Wittig e Françoise d’Eaubonne.

“Quem engravidou as 343 vadias do manifesto sobre o aborto?”

Na semana seguinte à sua publicação, na capa da Charlie Hebdo foi publicada uma charge questionando — “Quem engravidou as 343 vadias do manifesto sobre o aborto?”, com um homem respondendo, “Foi pela França!”.

Nenhuma das signatárias foi processada.

Dois anos depois, tendo esse manifesto de inspiração, 331 profissionais de medicina lançaram seu próprio manifesto se declarando a favor da liberação do aborto; até que, finalmente, em 1975, a interrupção voluntária de gravidez até a 12ª semana foi descriminalizada.

NOSSO VENTRE NOS PERTENCE

A lista de assinaturas é um primeiro ato de revolta. Pela primeira vez, as mulheres decidiram suspender a proibição que pesa sobre seus ventres: as mulheres do Movimento de Libertação das Mulheres, do Movimento pela Liberação do Aborto, as mulheres que trabalham, as mulheres donas de casa.

No Movimento de Libertação de Mulheres, não somos nem um partido, nem uma organização, nem uma associação, e menos ainda uma setorial feminina. Trata-se de um movimento histórico que não agrupa somente as mulheres que vêm ao MLM; é um movimento de todas as mulheres que, onde quer que vivam, onde quer que trabalhem, decidiram tomar nas próprias mãos suas vidas e sua liberdade.

Lutar contra nossa opressão é destruir todas as estruturas da sociedade e, em particular, as mais cotidianas. Nós não queremos nenhuma parte nem lugar nessa sociedade que se construiu sem nós e às nossas custas. Quando a população feminina, o pedaço à sombra da humanidade, assumir o controle de seu destino, então poderemos falar de uma revolução.

Um Movimento pela Liberação do Aborto se constituiu, que reúne todas as pessoas que estão preparadas para lutar até o fim pelo aborto gratuito Esse movimento tem por objetivo encorajar grupos locais e corporações, coordenar uma campanha de explicação e de informação, [e] transformar-se no único movimento de massa capaz de impor nosso direito à nossa autodeterminação.

Aborto

Uma palavra que parece expressar e limitar de uma vez por todas a luta feminista. Ser feminista é lutar pelo aborto livre e gratuito.

Aborto.

É coisa de mulher, que nem cozinha, fraldas, que nem coisa suja. Lutar para conseguir o aborto livre e gratuito tem um quê de ridículo ou de insignificante. Sempre aquele cheiro de hospital ou de comida, ou de cocô atrás das mulheres.

A complexidade das emoções ligadas à luta pelo aborto indica com precisão nossa dificuldade de ser, a dor que dá de nos persuadir de que vale a pena lutar por nós mesmas. Desnecessário dizer que não temos o direito de fazer o que queremos com nossos corpos, como outros humanos têm. Nossos ventres, entretanto, pertencem a nós.

O aborto livre e gratuito não é o objetivo final da luta das mulheres. Pelo contrário, ele corresponde apenas à exigência mais básica, sem a qual o combate político não pode sequer começar. É de necessidade vital que as mulheres recuperem o controle e reintegrem seus corpos. Elas são aquelas cuja condição é única na história: seres humanos que, nas sociedades modernas, não podem dispor livremente de seus corpos. Até o momento, apenas os escravos conheceram essa condição.

O escândalo persiste. Todos os anos, 1.500.000 mulheres vivem com vergonha e em desespero. 5.000 de nós morrem. Mas a ordem moral se mantém inabalável. Nós queremos gritar.

Aborto livre e gratuito é:

  • parar imediatamente de ter vergonha do próprio corpo, ser livre e orgulhosa em seu corpo tal como todas as pessoas que até hoje dispuseram dele livremente;
  • não ter vergonha de ser mulher. Um ego que se quebra em pequenos pedaços — isso é o que vivenciam mulheres que têm que se submeter a um aborto clandestino;
  • ser você mesma o tempo todo, não ter mais esse medo estúpido de ser “pega”, de cair na armadilha, de ser duas-caras e impotente com um tipo de tumor em seu ventre;
  • uma luta entusiástica, na medida em que, se eu ganhar, é só o começo de pertencer a mim e não mais ao Estado, a uma família, a uma criança que não quero;
  • um passo adiante rumo a alcançar controle total sobre a produção de crianças. Mulheres, como todos os outros operários, têm na verdade direito absoluto ao controle sobre toda sua produção. Esse controle implica uma mudança radical nas estruturas mentais das mulheres e uma mudança não menos radical nas estruturas da sociedade.
  1. Eu terei uma criança se eu quiser; e nenhuma pressão moral, nenhuma instituição, nenhum imperativo econômico pode me obrigar a fazê-lo. Este é meu poder político. Como qualquer operário, eu posso, enquanto espero por melhorias, pressionar a sociedade por meio de minha produção (greve de crianças).
  2. Eu terei uma criança se eu quiser e se a sociedade em que eu a tiver for adequada para mim, se ela não me tornar escrava dessa criança, sua enfermeira, sua empregada, seu saco de pancadas.
  3. Eu terei uma criança se eu quiser; se a sociedade for adequada para mim e para ela, eu sou responsável por ela, sem risco de guerras, sem trabalho monótono e fabril.

Os dez mandamentos do Estado burguês

  • Preferirás um feto a um ser humano quando o ser humano for mulher.
  • Mulher nenhuma abortará enquanto Debré [Ministro da Defesa à época] reivindicar mais 100 milhões de franceses.
  • Serás particularmente severo com mulheres pobres que não podem ir à Inglaterra.
  • Terás, então, grandes taxas de desemprego para deixar felizes teus capitalistas.
  • Serás muito moralista, porque só Deus sabe o que “nossas” mulheres fariam se fossem livres;
  • Protegerás o feto, porque é mais interessante matá-los quando tiverem 18 anos, idade do alistamento militar;
  • Grande necessidade deles tu terás, porque perseguirás uma política imperialista.
  • Utilizarás contracepção tu mesmo, para mandar apenas algumas crianças ao Colégio Politécnico ou à ENA [Escola Nacional de Administração], porque seu apartamento tem apenas 10 cômodos;
  • Quanto aos outros, tu denegrirás a pílula, porque é a única coisa que falta.

Não à liberdade vigiada

A batalha que se insurgiu a respeito do aborto passa por cima das cabeças das partes mais interessadas, as mulheres. A questão de saber se a lei deve ser mais liberal, a questão de saber quais são os casos em que se permite o aborto, resumidamente a questão do aborto terapêutico não nos interessa porque ela não nos diz respeito.

O aborto terapêutico exige “boas” razões para que se tenha “permissão” de abortar. Em bom português, significa que devemos merecer não ter crianças. Que a decisão de engravidar ou não pertence a nós tanto quanto pertencia antes. O princípio permanece o mesmo — que é legítimo forçar as mulheres a ter crianças.

Uma modificação da lei, permitindo exceções a esse princípio, não fará mais que o reforçar. A mais liberal das leis ainda regulamentará o uso de nossos corpos. O uso de nossos corpos não pode ser regulamentado. Não queremos tolerância, retalhos daquilo que outras pessoas têm de nascença: a liberdade de usar seus corpos como bem entenderem. Nós nos opomos tanto à lei Peyret [1] e ao projeto A.N.E.A. [2]quanto à lei atual, como nós nos oporemos a toda lei que pretenda regular nosso corpo de qualquer forma. Nós não queremos uma lei melhor, nós queremos sua supressão pura e simples. Nós não pedimos caridade, nós queremos justiça. Há 27.000.000 de nós só aqui. 27.000.000 de “cidadãs” tratadas como gado.

Aos fascistas de todos os tipos — que admitem que o são e nos espancam, ou que chamam a si mesmos de católicos, fundamentalistas, demógrafos, médicos, experts, juristas, “homens responsáveis”, Debré, Peyret [3], Lejeune [4], Pompidou [5], Chauchard [6], o papa — nós dizemos que nós os desmascaramos. Que nós os chamamos de assassinos do povo. Que nós os proibimos de usar a expressão “respeito à vida” que é uma obscenidade em suas bocas. Que nós somos 27.000.000. Que nós lutaremos até o fim porque nós não queremos nada mais do que o que nos é devido: a livre disposição de nossos corpos.

[1] Projeto de lei que visava deixar menos rígidas as condições para o aborto terapêutico.
[2] “Associação Nacional para o Estudo do Aborto”, composta majoritariamente por médicos homens, que reivindicava a legalização do aborto terapêutico a casos restritos.
[3] Claude Peyret, médico e político francês, responsável pela Lei Peyret.
[4] Jerôme Lejeune, médico ativista pró-vida.
[5] presidente da França à época.
[6] Paul Chauchard, médico e primeiro presidente do movimento “Deixe-os viver” (Laissez-les vivre), criado em reação às campanhas em favor do aborto e do qual foi presidente por mais de 20 anos.

Eu assinei porque…

Eu assinei porque eu perdi sangue demais
e você gostaria que eu me levantasse.
Já acabou. Agora a gente fala. Senhor
legislador, o que você tem é sangue
nas mãos, e você nem se apercebe
disso, você anda por aí desse jeito.
Mas vamos colocar nosso nariz onde não fomos chamadas.
A lei diz, todos são iguais perante a lei.
E então sua lei atinge seletivamente uma única
categoria. E então você faz cara de moralista.
Trapaceiro.
Você codifica minhas funções fisiológicas.
Você descreve em detalhes o que se passa no interior
de meu ventre. Você coloca isso no “Diário Oficial”.
Que indecência.
E é de mim que você exige modéstia.
E é disso que você chama meu silêncio que te cai bem.
Hipócrita.
Mas o silêncio foi quebrado.
Nós te mostramos o dedo. E o mundo todo vai ver seu verdadeiro rosto.
Que horror.
- Uma signatária.

UM CHAMADO DE 343 MULHERES

Um milhão de mulheres abortam todos os anos na França.

Elas o fazem em condições perigosas em razão da clandestinidade à qual estão condenadas, enquanto essa operação, quando praticada sob supervisão médica, é das mais simples.

Fazemos silêncio sobre essas milhões de mulheres.

Eu declaro que sou uma delas. Eu declaro que abortei.

Da mesma forma como exigimos o livre acesso a métodos anticoncepcionais, exigimos o aborto livre (1).

Nomes das signatárias.

(1) Entre as signatárias, as militantes do Movimento de Libertação das Mulheres exigem o aborto livre e GRATUITO.

O manifesto.

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