O que é Mutilação Genital Feminina?
- O que é
Mutilação genital feminina (MGF) é toda intervenção que causa dano ao órgão sexual feminino, normalmente com a remoção total ou parcial da genitália externa feminina por razões não médicas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a MGF em 4 tipos:
- Clitoridectomia: remoção parcial ou total do clitóris;
- Excisão: remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios, podendo haver excisão dos grandes lábios;
- Infibulação: estreitamento do orifício vaginal;
- O tipo 4 são todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas.
Por ser um assunto tabu na maioria das sociedades, os dados são imprecisos, mas estima-se que, hoje, cerca de 200 milhões de mulheres e meninas são vítimas da MGF. Por ano, cerca de 3 milhões de meninas estão em situação de risco, ou seja, mais de 8 mil meninas por dia.
2. MGF como violência de gênero
A MGF é praticada contra meninas e mulheres. Os argumentos mais frequentes citados a favor da MGF dizem respeito ao controle da sexualidade feminina. Para justificá-la, aparecem razões religiosas, estar apta para o casamento, manter a pureza das mulheres, limpeza e higiene (sendo que se considera o órgão sexual feminino algo sujo), aumento do prazer sexual dos homens, entre outras.
Os gêneros são imposições de normas sociais e culturais que ditam o que é apropriado para mulheres e o que é apropriado para homens dentro de determinada sociedade. A MGF não acontece porque existe diferença biológica entre os sexos, mas porque há diferença entre os gêneros. A existência de gêneros é uma manifestação da desigualdade entre os sexos na sociedade. Nos padrões normativos de gênero, constrói-se a mulher dominada-explorada, de modo que a submissão feminina assuma aparência de naturalidade e não de algo imposto socialmente.
As violências de gênero têm por objetivo controlar o comportamento das mulheres e acontecem em todas as culturas. Assim, a MGF não é um fenômeno isolado, mas faz parte da assimetria das relações de gênero, ou seja, é uma forma de controle do corpo das mulheres que se estende para o controle social exercido sobre as mulheres, o que contribui para sua posição desigual na sociedade.
As mulheres vivem num regime patriarcal em que seu poder de ação é limitado. Para as mães e avós que são vítimas de MGF, submeter suas filhas a esse procedimento não é uma escolha, porque não há meios de decidir de forma contrária. Os esforços de maior sucesso para acabar com a MGF são justamente aqueles em que há a conscientização das mulheres da sociedade em questão e a inclusão de meios alternativos de reprodução de vida, que não dependem de serem sustentadas pelos homens. Quando as mulheres vislumbram a possibilidade de escolha, a prática pode ser abandonada.
Grupo de mulheres participa de workshop para sensibilização contra a MGF, em Bamako, Mali. Foto: UNICEF/MLIA2012–00877/Bindra
3. Onde, quando e como acontece
A MGF pode acontecer em todo lugar, em qualquer sociedade, dentro das mais diversas religiões e em qualquer idade. Contudo, há pessoas que estão em maior situação de risco. Os maiores índices de MGF ocorrem em alguns países da África e Ásia, e em grupos étnicos específicos da América Latina.
A idade depende de vários fatores, como grupo étnico e contexto socioeconômico, mas geralmente é praticada em meninas de 4 a 12 anos, sendo que há sociedades que praticam em bebês de poucos dias e outras em que a prática antecede o casamento. Nos casos de infibulação, é comum a mulher ser reinfibulada após o parto.
É praticada geralmente por alguém da própria comunidade, responsável por isso, usando objeto afiado, como faca, lâmina de barbear ou caco de vidro. Uma nova tendência é a medicalização da MGF, que alguns defendem porque um médico poderia fazer usos de anestesias e evitar traumas e morte. Aproximadamente 20% dos procedimentos de MGF são feitos por profissionais da saúde. Porém, a MGF é uma violação de direitos humanos e uma violência de gênero onde quer que seja feita. Ser aceito que tal prática seja feita dentro de hospitais é admitir que ela é válida de alguma forma, além de não haver pesquisas ou provas de que isso reduza complicações obstétricas e psicológicas no longo prazo.
Muitas comunidades acreditam que a prática seja algo que suas religiões demandam. Cristãos, muçulmanos e animistas praticam sem que haja nada em seus textos sagrados que sustente tal prática. A presença de líderes religiosos locais condenando a MGF é necessária para seu abandono.
4. Riscos
A MGF viola o direito à saúde. Nos casos mais extremos, pode resultar na morte da menina ou da mulher. As consequências da MGF incluem uma série de problemas físicos e psicológicos, que podem manifestar-se logo após sua realização ou até muito tempo depois.
No curto prazo, os riscos à saúde física incluem sangramento e hemorragia, infecção (tétano, HIV e outros vírus), dores crônicas e retenção urinária. Psicologicamente, a pessoa pode experimentar terror, choque, medo da morte, sentimentos de traição, de incompreensão e confusão.
Os riscos no longo prazo incluem anemia, escarificação genital, quistos, abcesso vulvar, úlceras, neuroma, problemas do trato urinário, fístulas, incontinência, distúrbios menstruais, infecção genital, doença inflamatória pélvica e infertilidade.
Os sintomas do estresse pós-traumáticos podem manifestar-se também e a pessoa ter dificuldade de concentração e de dormir, ficar facilmente sobressaltada, ansiosa, depressiva e experimentar sintomas físicos inexplicáveis (como dores nas costas ou de cabeça).
5. A MGF como violação de direitos humanos
A prática da MGF é uma violação dos direitos humanos das mulheres. Ela nega às pessoas que a sofrem uma série de direitos como o próprio direito à vida. Além disso, nega o direito à integridade física e mental, à liberdade de viver sem violência e ao nível de saúde mais elevado possível.
Sendo uma discriminação baseada no sexo e uma forma de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante, a MGF viola diversos tratados internacionais de direitos humanos, em especial de direito das mulheres e direitos das crianças.
Nesse sentido, qualquer forma de MGF é internacionalmente reconhecida enquanto grave violação dos direitos humanos e pode ser motivação de pedido de asilo, já que a MGF também implica na perseguição daqueles que são contra e é uma forma continuada de dano e não uma experiência isolada. A mulher que passou por MGF muitas vezes pode ser novamente submetida ao procedimento.
6. Por que a superação é difícil e os caminhos para a mudança
Embora muitos países proíbam a MGF com lei específica para isso, incluindo vários em que ela é largamente praticada, ela continua sendo feita. A legislação não é suficiente para proibir a prática na maioria dos casos. Enquanto as normas socioculturais ditarem a diferença entre os sexos, haverá dificuldades para superar a execução dessa prática.
A denúncia é difícil, pois a maioria das meninas é submetida à MGF pela própria família. O medo de não ser aceita pela sociedade e de ser ostracizada é uma das principais razões pelas quais as meninas e suas famílias ainda acham válida tal prática. Em sociedades em que a prática não é largamente feita, a menina normalmente tem medo de que seus pais sejam presos e de que sua cultura seja negativamente julgada, além da sensação de trair os seus.
A família que submete uma menina à MGF, normalmente o faz como forma de proteção à criança e acreditando que é para o bem dela. Dessa forma, raramente uma menina chega a denunciar os envolvidos. Na maioria das vezes, inclusive, quem leva a menina para ser submetida à MGF é a mãe ou a avó, que também são vítimas da mesma violência. É preciso quebrar esse ciclo dando oportunidades de escolhas e de sobrevivência material às mulheres das sociedades praticantes.
É preciso um trabalho conjunto de educadores, profissionais de saúde e assistentes sociais para a identificação de meninas em situação de risco, cuja melhor forma de proteção é informar as famílias sobre os riscos que ela corre se for submetida à MGF. Entre as meninas e mulheres que já foram submetidas, é preciso uma abordagem que não as julgue nem vilifique suas culturas, a fim de que não haja revitimização.
A imprensa tem papel crucial nisso, visto que o assunto costuma aparecer apenas para contar a história de vítimas de modo sensacionalista, de forma chocante e detalhada, não se preocupando com a raiz do problema. Isso segrega as comunidades praticantes e atrapalha os esforços para que os membros se sintam à vontade para falar publicamente contra a MGF. Assim, a imprensa deve comunicar de forma a sensibilizar as pessoas, com a finalidade de prevenir novos casos.
A meta da comunidade internacional é ambiciosa: acabar com a MGF em uma geração, até 2030; mas pode ser atingida. Em 2016, 2900 comunidades declararam ter abandonado a prática, o que representa 8,4 milhões de pessoas. A taxa de meninas que são submetidas à prática vem decrescendo nos últimos 30 anos.
Mas ainda há muito que ser feito. Nem todos os países apresentaram progresso e, ainda que a taxa caia, diante do aumento populacional, o número total de meninas e mulheres submetidas tende a aumentar.
É preciso dar voz às meninas e criar um ambiente em que meninas e mulheres possam tornar-se líderes de suas comunidades. Acesso à informação é decisivo no processo. Os esforços internacionais de maior sucesso para acabar com a prática são aqueles que dão vozes às comunidades e empoderam meninas e mulheres.
Mulheres da vila de Cambadju seguram cartazes durante a cerimônia de renúncia à MGF. A vila foi a primeira da Guiné-Bissau a renunciar a prática. Foto: UNICEF/NYHQ2012–2162/LeMoyne
Por Melina Bassoli
Fontes:
UEFGM — Unidos para Acabar com a MGF. Curso UEFGM em E-Learning. Disponível em: <https://uefgm.org/index.php/uefgm-e-learning/?lang=pt> Acesso em 10 de set. de 2017.
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FINKE, E. Genital Mutilation as an Expression of Power Structures: Ending FGM through education, empowerment of women and removal of taboos. In: African Journal of Reproductive Health, vol. 10, 2006.
Fundo de População das Nações Unidas. A mutilação genital feminina tem que acabar até 2030, declaram diretores do UNFPA e do UNICEF. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/novo/index.php/1471-a-mutilacao-genital-feminina-deve-acabar-ate-2030-declaram-diretores-do-unfpa-e-do-unicef> Acesso em 10 de set. de 2017.
SAFFIOTI, H. B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A. e BRUSHINNI, C. (orgs.) Uma questão de gênero. São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992.
UNICEF. Female Genital Mutilation/Cutting: A statistical overview and exploration of the dynamics of change. Nova York, 2013.
Originally published at janelaaberta.tumblr.com.