Não é só sobre pelos — é sobre controle

É sobre te tirar a titularidade da única coisa que é realmente sua — seu corpo.

Furiosa
QG Feminista

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Esse texto levou 10h pra ser escrito, entre leitura, pesquisa, e escrita. Me ajude a continuar escrevendo!

Nesses dias vi um post muito interessante e pessoal de uma moça contando como foi, para ela, questionar a imposição do ato de se depilar. E decidi colocar aqui em palavras as reflexões e sentimentos que eu venho guardando dentro de mim, sobre isso, há tanto tempo.

Se você fizer uma rápida pesquisa histórica a respeito do hábito de retirar os pelos corporais, você vai ver que desde o Egito Antigo há registros de instrumentos e de cremes utilizados para removê-los. Desde então, passando pela Grécia, pelo Império Romano e até o Renascimento, no mundo ocidental a ausência de pelos era considerada um sinal de status econômico — por isso no Egito vemos retratos de homens, mulheres e crianças carecas (quando não usando perucas para manter a temperatura da cabeça); na estética renascentista frequentemente há retratos de mulheres que sequer possuem pelos pubianos.

A depilação esteve sempre associada a status social ou a religião. Foi no final do século XIX e início do século XX que ela passou a estar associada a higiene.

A primeira lâmina de barbear portátil foi inventada no final do século XIX, voltada, naturalmente, apenas aos homens; e alguns anos depois, em torno dos anos 20, foi lançado um modelo “para mulheres”, já que — olha só! — o mercado de lâminas percebeu que não estava explorando suficientemente metade da população mundial. Assim, basicamente se criou a necessidade, para a mulher, de depilar, especificamente, as axilas e a virilha. Os primeiros anúncios de lâminas voltadas para mulheres falavam em ajudar as mulheres a se livrarem dos “incômodos” e “repugnantes” pelos faciais e corporais.

Anúncio da primeira lâmina voltada para mulheres, “Milady Décolletée”

Essa mudança de mercado acompanhou, naturalmente, a moda: somente no início do século XX passaram a ser aceitáveis roupas que deixassem à mostra as pernas e os braços das mulheres, e o mundo percebeu que — sim! mulheres também têm pelos. Mas como eles antes ficavam escondidos, ninguém ligava muito.

O primeiro anúncio publicitário anti-pelos, 1915.

Nos anos 50, a depilação já era senso comum e amplamente aceita — inclusive porque, com a falta de nylon no mercado, por conta da guerra, as mulheres não tinham mais tantas meias e meia-calças… e suas pernas nuas ficavam à vista quando se usava vestido ou saia. Una-se a isso o fato de que foi também nos anos 40 e 50 que os maiôs e biquínis foram introduzidos no mercado, expondo basicamente o corpo inteiro da mulher. Surge, então, a “necessidade” de se depilar as pernas, também.

Nos anos 70, houve um suspiro de esperança e de liberdade para os pelos corporais com o movimento hippie; que, infelizmente, não durou tanto. Nos anos 80, popularizou-se nos Estados Unidos o que eles chamam de Depilação Brasileira.

Isso porque em 1987 sete irmãs (cujos nomes todos começam com J) abrem, em Nova Iorque, o salão “J. Sisters”, que, dentre outros serviços, oferecia depilação dos pelos pubianos. O salão ficou muito famoso ao longo dos anos 90 e início dos anos 2000 por ser recomendado por atrizes como Gwyneth Paltrow. A “brazilian wax” apareceu até em um episódio de Sex and the City, com a personagem principal, Carrie, passando pela famosa tortura da depilação pubiana a cera.

De qualquer forma, o que temos desde o início do século passado é a seguinte mensagem: pelos em mulheres são nojentos. Não são naturais. São sinal de desleixo. Depilar-se faz parte da feminilidade. Uma axila lisa é bonita. Uma perna sem pelos é sexy. E é assim que as mulheres são representadas: lisas. Em comerciais, em novelas, até em filmes em que elas estão na floresta, ou confinadas, ou no espaço. Não importa: a depilação deve estar em dia!

(Comentário pessoal: nesse quesito, nota 10/10 para a produção do filme Olga — sim, o brasileiro, mesmo — que mostra as mulheres no campo de concentração todas peludas, prezando pela verossimilhança de sua representação)

O que já era ruim ficou pior com a ascensão da indústria pornográfica, que, década a década, foi popularizando pelos pubianos cada vez mais simplórios… Agora, a depilação era um ritual de feminilidade completo, pois abarcava desde noções de higiene até uma estética sexual que fosse de agrado dos homens.

Assim, não bastasse a cobrança no mundo público — a mídia, os olhares, o cinema, a televisão, a propaganda, a moda — a cobrança agora chegava ao mundo privado. Como a sexualidade masculina é moldada pela pornografia, e é geralmente pela pornografia (ou pela prostituição) que os homens têm seu primeiro contato com a totalidade do corpo feminino, eles criam expectativas e estabelecem padrões, obviamente.

Eis que se consolida a cruzada anti-pelos.

Mas por que é importante falar disso? Por que isso é um assunto feminista? Parece insignificante se uma pessoa se depila ou não. Não é?

A depilação, assim como outros rituais de feminilidade (a maquiagem, o uso de determinadas roupas, o uso de saltos, enfim), tem um objetivo muito claro: controle social dos corpos femininos. Controle por quem? Pelo patriarcado e, principalmente, pelo capitalismo.

Se amanhã as mulheres acordassem e decidissem que elas gostam de verdade de seus corpos, pense quantas indústrias iriam à falência. (Gail Dines)

A lógica é realmente muito perversa e muito eficaz, pois nos torna as piores inimigas de nós mesmas. Porque só você se vê no espelho todo dia. Você é sua maior inspetora. Você, sua consciência, sua necessidade de aceitação e de pertencimento a padrões ditados por outras pessoas que não você.

Nesse tipo de ritual, você não precisa que alguém te diga o que fazer, não é necessário um controle externo pra verificar se você está fazendo tudo certinho. E, se esse controle externo precisa atuar, é porque a coisa realmente tá osso. Quando ouvimos de alguém que precisamos passar um rimelzinho, um batonzinho, um blushzinho “pra dar uma corzinha na cara”; quando alguém pergunta quando foi a última vez que você se depilou; quando alguém fala que você precisa se cuidar melhor — tudo isso machuca demais. Porque é como se a pessoa estivesse atestando que você não está “sendo mulher” direito, como se você não estivesse dando conta de fazer as coisas sozinha.

Se tem duas coisas em que o capital e o patriarcado (por meio de suas ramificações dentro das instituições, da academia, da mídia, enfim) são muito incrivelmente bem-sucedidas é em naturalizar situações, comportamentos e fatos que são obviamente construção do brilhante intelecto humano.

Se você perguntar pra uma mulher por que ela se depila, ela vai falar: 1) porque é feio; e/ou 2) porque não se depilar é anti-higiênico. E a gente pergunta: quem disse? E a resposta vai ser, “como assim, quem disse?”. As respostas vão vaguear mais e, conforme você vai apertando, tendem a se resumir a uma “escolha pessoal”. É isso: uma escolha pessoal. Porque nós vivemos em uma bolha, um vácuo de interações sociais, né? Claro que não.

Sabe o que é libertador? Deixar de achar seu corpo feio. Deixar de achar seus pelos nojentos. Parar de ficar ansiosa toda vez que você os vê crescendo mas ainda não tem tamanho suficiente pra você tirar com cera. Parar de raspar as axilas com lâminas todo santo dia, quando você acorda, como se fosse um hábito tão higiênico quanto escovar os dentes ou lavar o rosto. É libertador você se olhar no espelho e não sentir nojo ou repulsa, e perceber que esse nojo e essa repulsa não são naturais: você foi ensinada a sentir isso. É libertador perceber que você foi ensinada a só se sentir bonita em determinadas situações, sob determinadas condições, mas que isso não é verdade: você é bonita e merece seu amor e seu respeito sempre. Mesmo porque seu valor e sua mulheridade não têm nada a ver com sua aparência.

A supervalorização da nossa aparência em detrimento de qualquer outra coisa é uma máscara de uma intenção mais profunda: a redução das mulheres a seus corpos. A ditadura da beleza, os padrões estéticos, os rituais de feminilidade — todos eles têm ligação íntima com a cultura do estupro, pois são eufemismos socialmente aceitáveis daquela velha ideia de que nós só servimos para servir. Para sermos olhadas, trocadas, exploradas ou fodidas.

Temos de estar bonitas pra quem? Pra nós mesmas? E desde quando alguém nos pergunta a nossa opinião?

É claro; nossa opinião não importa. Porque nós sequer somos donas de nós mesmas, então não podemos decidir por nós. Não é?

Eu pessoalmente deixei de depilar minhas pernas lá pra 2013 ou 2014, nos meus primeiros anos de faculdade. Foi relativamente fácil, porque meus pelos da perna são bem loirinhos e quase não aparecem. Agora, de um ano e meio ou dois anos pra cá eu comecei a não ligar, também, pra depilação das axilas.

Foi mais difícil do que eu pensei.

Eu frequentemente parava em frente ao espelho e levantava os braços. E ficava ali me olhando. Eu evitava usar regatas ou vestidos de alcinha; e, se estava muito calor, eu fazia o possível para não levantar os braços (!). Só que, sei lá. Chega um dia em que nada disso faz sentido mais, porque, sabe — o corpo é meu. Por que eu estou me preocupando tanto com o que as outras pessoas pensam sobre meu corpo? Por que eu devo deixar o exterior ditar a forma como eu lido e como eu me relaciono com o meu corpo?

Quando eu tinha 11 anos entrou uma garota nova na sala. Essa garota era a única que se depilava. Mais ninguém da minha sala se depilava (e sequer falava disso, e sequer estava próxima de qualquer esfera do mundo da “feminilidade”, já que a maioria ainda não era uma “mulher completa” em termos de menstruação). E então ela chegou e tinha as pernas lisinhas. Essa menina magrinha com cara de criança e 11 anos recém-completos já se depilava e passava rímel, blush e gloss pra ir pra escola.

Eu tinha amigas dois/três anos mais velhas que eu, e elas, naturalmente, já se depilavam. Então eu me pressionava muito e, mais ainda, pressionava minha mãe pra que deixasse eu me depilar. Afinal, minhas amigas já faziam!

No ano seguinte à entrada dessa colega, na sexta série, as meninas começaram a ficar conscientes de si e a se depilar. Eu lembro que me senti muito adulta, muito madura. Imagina, falar de depilação com as amigas?! De depilação, de cólica e de esmalte. Praticamente uma mulher feita.

Pulando uns dez anos pra frente.

Teve uma vez em que eu fui pra casa dos meus avós e acho que foi a primeira vez que eu nadei lá e deixei minhas axilas peludas à mostra.

Não demorou muito pra minha avó (com seus 70 anos) me ligar pra perguntar o porquê disso. Eu conversei um tempão com ela e expliquei todos os meus motivos, e saí da conversa com o coração partido de ouvir seu relato.

Ela, com seus 70 anos, me contando que ainda se policia e quando vê pelos em seu corpo, os tira. Ela, que tem mil problemas de saúde e mal consegue se locomover sem sentir dor, ela se sente desconfortável com a meia dúzia de pelos que ainda resta em seu corpo. Ela diz que ainda conta com ajuda de minha tia (que mora com ela) pra ver quando precisa se depilar, já que sua visão não é mais tão boa, mas que bom que minha tia está lá pra avisá-la.

Vocês acham que tem cabimento uma senhora de 70 anos ainda se preocupar com isso?

Por outro lado, teria como ser de outra forma, na conjuntura atual? Sua preocupação não é só normal, como esperada.

Eu não quero com isso te dizer que se depilar é antifeminista. Não estou falando pra você parar de se depilar amanhã. A minha intenção com esse texto foi demonstrar que a depilação está inserida dentro de uma série de mecanismos que servem pra nos controlar, controlar nosso corpo, nos alienar do nosso corpo, e isso é fato, não sou eu quem acha, não é minha opinião.

Se você quer continuar se depilando, quem sou eu pra te obrigar a fazer diferente. Mas eu me propus a espalhar informações e opiniões de cunho feminista — e, portanto, libertador e emancipatório — pela rede. Então, como não mencionar esse ritual cotidiano tão banal às mulheres?

Fica a dica pra dar uma olhada no site don’t shave e na tag hairy pits club no Tumblr. ♥

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