O conceito de ‘identidade de gênero’ torna progressista derrubar os limites das mulheres.

Em seu apoio à ideologia de identidade de gênero, os liberais reforçam o mito de que estabelecer limites, como mulheres, se baseia em estarmos lidando com homens “bons” ou “maus” — exceto nesse caso, que não podemos nem mesmo chamá-los de homens.

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6 min readApr 3, 2019

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Artigo de 3 de março de 2019

Por May Mundt-Leach — traduzido do Feminist Current

Em vez de desaparecer, o Patriarcado parece simplesmente sofrer mutações e evoluir, apresentando-se de maneira ligeiramente diferente ao longo do tempo. Por baixo, os mecanismos de exploração e abuso persistem e as consequências para as mulheres permanecem as mesmas.

Em 1807, o filósofo alemão Hegel escreveu em A Fenomenologia do Espírito que a percepção da autoconsciência do homem emerge através da imposição de si mesmo em outro indivíduo. Um indivíduo, Hegel descreveu, “cuja própria natureza implica que está ligado a um ser independente”.

Por sua vez, a relação das duas pessoas torna-se a de mestre e escravo, uma dinâmica que, na opinião de Hegel, é necessária para o desenvolvimento superior do homem.

A crença de que a formação da identidade depende de quebrar a personalidade de um até se tornar subordinado ao outro é, como Sarah Lucia Hoagland descreve em Lesbian Ethics (Ética Lésbica), central aos modos patriarcais ocidentais de pensamento e que permeia a vida das mulheres hoje.

Lesbian Ethics, Sarah Lucia Hoagland

A supremacia masculina repousa sobre a noção de que as mulheres são programadas para ter nossos limites quebrados — que é em nossa própria natureza que somos permeáveis, maleáveis e sempre disponíveis aos homens. Como meninas, somos ensinadas que nossas próprias liberdades sexual e psíquica são de pouca importância comparadas às de nossas contrapartes masculinas.

No capitalismo tardio, o status dado a mulheres e meninas é indubitavelmente o de um subumano — uma área cinzenta mercantilizada, já que nossos corpos não são considerados um limite real e identificável, mas uma linha a ser empurrada até que se enfraqueça e arrebente.

Muitas vezes, as estruturas que na superfície parecem promover os direitos humanos têm o efeito de proteger os homens que passam dos limites femininos. Os homens brancos que abusaram sexualmente de mulheres e meninas haitianas permaneceram protegidos por suas posições como trabalhadores humanitários da Oxfam, uma ONG ocidental “progressista”. A Universidade de Warwick é uma instituição que supostamente promove “um ambiente de respeito mútuo e dignidade”, mas recentemente permitiu o retorno precoce de dois estudantes do sexo masculino suspensos por fazerem uma série de comentários racistas e misóginos, incluindo ameaças de estupro, nas mídias sociais.

Em 2014, Christopher Worton, de 22 anos, se declarou culpado de cinco acusações de estupro contra uma criança do sexo feminino. Três anos depois, Worton mudou seu nome para Zoe Lynes. Em janeiro deste ano, Worton foi condenado por violar os termos de uma ordem de prevenção de danos sexuais, visitando a casa de um conhecido enquanto uma criança pequena estava presente.

Ainda no tribunal e na cobertura da imprensa subsequente, obediência total foi concedida aos pronomes escolhidos de Worton. Christopher Aggrey, defendendo, chegou a sugerir que a quebra de Worton foi resultado do isolamento devido à sua transição de gênero.

O caso de Worton, como nos casos dos trabalhadores humanitários da Oxfam e dos estudantes da Universidade de Warwick, mostra que, mesmo nos casos mais extremos de violência masculina, os homens concedem um ao outro a impunidade quando se trata de atravessar os limites femininos.

Através da sua identificação como mulher, Worton continua a representar uma fantasia baseada na degradação sexual de mulheres e meninas. Referindo-se a Worton como 'ela', os próprios homens que alegam proteger sua vítima minam os limites baseados no sexo que a distinguem dele. O Patriarcado, escondido sob o disfarce da “inclusão”, garante mais uma vez que a chamada liberdade de expressão masculina chega às custas da integridade física das mulheres.

O endosso acrítico da sociedade aos homens que optam por “se identificar” como mulheres não é totalmente surpreendente. O uso da linguagem para construir corpos femininos como abstratos é inseparável da cultura em que o corpo feminino foi ritualisticamente invadido, dominado e tratado como insignificante pelos homens.

Em seu revolucionário texto Intercourse, publicado em 1987, Andrea Dworkin escreveu que, durante o ato heterossexual, a própria pele entra em colapso como uma fronteira, perdendo todo o sentido.

Para as mulheres que vivem em uma cultura de dominação sexual masculina, Dworkin descreveu como “a transgressão dessas fronteiras passa a significar uma degradação sexualmente carregada na qual ela se joga, tendo sido convencida de que essa identidade, para uma mulher, existe — em algum lugar além da privacidade e respeito”.

Para as mulheres, ser mulher nunca foi um assunto privado. Instituições como o casamento, a prostituição, a esterilização forçada e o estupro marcam os corpos das mulheres como domínio público em todo o mundo.

É relativamente simples, portanto, persuadir uma classe de pessoas que foram criadas a verem seu corpo como não sendo completamente seu, que o mesmo corpo pode ser reivindicado pelos homens como uma “identidade”.

O feminismo liberal exige que as mulheres afirmem nossos próprios limites, que não é não, e que os homens não têm o direito de fazer o que quiserem conosco. Ao mesmo tempo, nos diz para negar os próprios marcadores que desenham uma linha entre corpos que são femininos e aqueles que são masculinos. O que é uma demarcação de nossa individualidade distinta, as linhas do corpo que nos tornam ambas humanas e femininas em nosso próprio direito, tornam-se irrelevantes pela “identidade de gênero.”

As ameaças e abusos que as mulheres enfrentaram ao apontar que seus corpos não são um parquinho para os pós-modernos e que existem diferenças físicas entre mulheres e homens permanecem notavelmente semelhantes àquelas enfrentadas por mulheres que dizem não, em qualquer contexto, aos homens.

Quando as feministas liberais reconhecerão a falha fatal em sua lógica? Ao argumentar que as mulheres têm direito a limites sexuais em algumas situações, mas não em outras, elas impõem um duplo padrão misógino às mulheres em todos os lugares. Em seu apoio à ideologia de identidade de gênero, as liberais reforçam o mito de que estabelecer limites, como mulheres, se baseia em estarmos lidando com homens “bons” ou “maus” — exceto nesse caso, não podemos nem mesmo chamá-los de homens.

Difereça de poder são sempre manifestadas em assimetria no acesso — Marilyn Frye

Em sua dissertação “In and Out of Harm’s Way: Arrogance and Love ” (Dentro e fora do caminho do perigo: Arrogância e Amor), Marilyn Frye escreve:

“… Aquele que vê com um olhar amoroso é separado do outro que ela vê. Existem limites entre eles; ela e o outro são dois; seus interesses não são idênticos; eles não são misturados em relações vitais parasitárias ou simbióticas, nem ela acredita que são ou tenta fingir que são.”

Recusando-se a ver as mulheres como distintas, muitos através do espectro político escolhem ver mulheres com um olhar não tão amoroso. Na maioria das vezes, eles estão optando por não ver as mulheres totalmente, desfazendo décadas de ativismo feminista que tem lutado contra a noção de mulheres como um terreno para as fantasias sexuais masculinas.

O conceito de “identidade de gênero” não subverte, mas fortalece a governança masculina. Isso nos mostra que o status das mulheres como classe permanece fundamentalmente inalterado. O reconhecimento dos limites das mulheres depende da definição dos homens do que ela é em relação a ele; a mais recente repetição do Patriarcado é que as mulheres são agora uma identidade para os homens usarem quando quiserem.

Este é um jogo perigoso para jogar, se as mulheres argumentarem que não somos, por natureza, sem limites. Recuperar a integridade sexual que nos foi roubada por séculos de governo Patriarcal exigirá muito mais do que fingir que nosso sexo — um limite de si e em si mesmo — não existe de forma alguma.

May Mundt-Leach é uma estudante de graduação do Reino Unido. Ela fundou e ajudou a coordenar o Women Talk Back!, um grupo de conscientização feminina em sua universidade. Publicamos outra tradução de um texto anterior dela aqui.

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