O precioso poder do silêncio

Para muitas de nós, o silêncio não é uma desistência, mas a sobrevivência.

Maya Falks
QG Feminista
6 min readFeb 7, 2018

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Foi em 2012 que eu descobri a importância do feminismo. Já não era mais uma jovenzinha e já tinha vivido o inferno tantas vezes que me admirei ao perceber que nunca tinha atribuído ao machismo pelo menos parte desse inferno. Achei, como muitas de nós, que a culpa era minha.

Eu que era chata, eu que era louca, eu que aceitei entrar naquela sala e, por isso, devia entregar o que ele quisesse de mim, como poderia culpar meus algozes? Me culpei e me enterrei em culpas até que minha inocência fosse jogada nas minhas fuças de forma que eu não tinha como não ver.

Por que eu levava a bronca pelos erros dos meninos da equipe e eles recebiam os elogios pelo meu bom trabalho? Por que o meu colega recebia um salário maior que o meu por carregar o título de diretor do setor se quem fazia o serviço de diretor era eu? Só comecei a perceber que eu era tratada diferente por ser mulher quando meu corpo entrou em colapso e eu adoeci.

Morava sozinha em outra cidade e minha mãe vivia em completo desespero pelo meu estado adoecido, tanto físico quanto psicologicamente. Eu estava em ruínas quando entrei em uma discussão interminável no Facebook, depois de um post gordofóbico de uma famosa rede varejista. Lá conheci mulheres de todo o Brasil e, fascinada com a qualidade do seu argumento, as adicionei.

A partir dali comecei a estudar o assunto, conhecer novas pessoas, pedir conselhos, escutar histórias e foi isso que me manteve de pé quando o assédio moral estava em vias de me mandar para um hospital. Do feminismo para a política foi um pulo. Passei a me interessar pela própria democracia, busquei conhecimento em ciência política, movimentos sociais, história, antropologia, filosofia e, claro, feminismo.

Pouco tempo depois criei minha página de ativismo que se tornou bastante famosa à época, chegando a 15 mil curtidores orgânicos com conteúdo 100% autoral seguidamente roubado por outras páginas maiores e cheias de moderadores. Vivi na paz construindo um ambiente seguro onde as pessoas desabafavam suas mazelas antes que minha página fosse exposta em grupos de ódio e eu fosse obrigada a tira-la do ar em nome da minha sanidade mental.

Mas ainda antes de conhecer o desgaste real de um ativismo — seja virtual ou não — já comecei minha caminhada com um texto — um dos meus primeiros textos engajados — sendo plagiado por pessoa famosa (que figura as mesmas listas que eu jamais consegui entrar) — e não esperem que eu cite nomes, tudo o que eu não preciso agora é de um processo judicial.

Encontrar aquele texto parecidíssimo com o meu na minha timeline horas depois da publicação do meu foi a primeira ação que me partiu o coração — primeiro porque escrever é minha vida e eu ainda busco meu lugar ao sol, e segundo porque eu achei que entre ativistas esses tipo de canalhice não acontecesse.

Aconteceu, e a essa altura eu não imaginava que dentro do ativismo eu encontraria tantos perigos.

Em 2014 entrei pro curso de Direito e passei a estudar a fundo a constituição, sociologia e ciência política, me envolvendo de forma profunda nas eleições daquele ano, e foi aí que senti o peso da luta: ameaças de estupro e morte, xingamentos, bloqueios, tentativas de agressão física e um ódio visceral que eu sentia atingindo cada célula do meu corpo. Meus posts começaram a ficar mais ácidos, agressivos e assertivos, e foi assim que eu fui aumentando minha rede de contatos.

Mas ao mesmo tempo que isso acontecia, eu também consegui assinar meu primeiro contrato com a literatura e criei minha página como escritora. Agora eu tinha muito a perder, agora não me bastava dar um “delete” e sumir das redes. Eu me colocava como uma figura pública e isso traz responsabilidades. O medo do ódio começou a se tornar palpável quando uma pessoa da minha cidade ameaçou me matar no dia do lançamento do meu primeiro livro.

Apesar dos receios — que não eram poucos — eu seguia ativa, amadurecendo aos poucos, “lacrando” às vezes, me desculpando por equívocos em outras, e então vieram os movimentos do impeachment e, tal qual as eleições, eu tinha medo de sair de casa. Ameaças, bloqueios, xingamentos. Entre familiares e amigos a recomendação era o silêncio porque não haveria debate de ideias, só briga. Eu me sentia mal com tudo isso porque sempre gostei de debater e sempre achei isso muito construtivo, já que foram os debates que mudaram todo o meu posicionamento político e minha visão de mundo.

Mas não era só isso, meu silêncio perante os outros não bastava, lentamente minhas “lacrações” online me levaram sob forma de print às principais e maiores páginas ativistas, onde eu era atacada e ofendida sob os olhares indiferentes da moderação, que levava os likes sobre o meu conteúdo e deixava todo o ódio de presente pra mim.

Foi assim, sendo exposta e agredida, que eu fui lentamente aprendendo que ativismo é tão seguro quanto qualquer outro lugar, porque o ativismo é feito de gente, e onde tem gente, tem briga de egos, puxada de tapete, raiva, vingança e destruição. E foi assim que assisti os “addedaços” feministas, onde milhares de garotas mergulharam de cabeça em nome de um pertencimento a alguma coisa e nossas listas de contatos cresceram, junto as brigas, as exposições, as batalhas de egos e a inacreditável guerra de vertentes.

Subitamente já não existia mais todo aquele engajamento, “nós por nós”, e todo aquele pertencimento virou “tenho tantas amigas em comum com a fulana, vou deletar todas se não deletarem ela”, e foi assim que perdi centenas de contatos via denúncia de que meu perfil era um fake comandado pelo lobo mau.

O começo de 2016 foi também a minha ruína. Em uma única semana 3 posts meus viralizaram em prints espalhados por páginas gigantescas e até por whats, uma mulher portuguesa me localizou no face e avisou que recebeu ameaças de uma quadrilha de venda de pornografia infantil depois de compartilhar um print com meu nome. Entrei em pânico, mudei foto, mudei nome, vivo no desespero do risco real contra a minha vida.

Entrei com vontade no inferno, e achei que não sairia de lá.

Muitas das mulheres que conheci nesse caminho sucumbiram. Muitas entraram em depressão, crises dos mais diversos transtornos, doenças das mais diversas naturezas. Muitas de nós lutaram até o limite da sua sanidade. E algumas simplesmente não aguentaram. Em menos de uma semana, eu e outras mulheres nos unimos para impedir três suicídios. Outros não puderam ser evitados.

Descobri que reivindicar espaços e voz pode te levar, literalmente, à morte. Mas também entendi que nossa luta deu um passo a mais para que outras pessoas, ainda saudáveis, possam seguir a partir do espaço que abrimos, e que a luta de emancipação das mulheres produz tantos danos e vitórias quanto qualquer guerra no front.

Eu sei que fiz parte disso, mas, assim como tantas outras, deixei o campo de batalha a tempo de resguardar o que sobrou de mim. Desde o lançamento dos meus dois últimos livros optei por me focar na literatura e parei de “lacrar” sobre tudo. Isso me custou centenas de contatos, muita gente foi embora quando já não tinha mais alguém a produzir conteúdo impactante para compartilhamento, porque pra essas pessoas era só isso que eu representava, a fábrica de lacres.

Ganhei alguns traumas nessa jornada, mas também ganhei vivências que contribuíram para o meu crescimento como pessoa e como escritora. Não colhi frutos como outras ativistas que se tornaram palestrantes, colunistas e conseguiram ótimos contratos editoriais, mas não me arrependo nem do que fiz, nem do que tenho deixado de fazer.

É normal eu ver algumas pessoas que seguem ativas questionando o silêncio de tantas outras, e podem ter certeza que me calar tantas vezes não me agrada, mas o nome disso é “autopreservação”. Se hoje me calo, é porque ontem apanhei demais. Assim, quieta, vou recompondo o que foi destruído.

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Maya Falks
QG Feminista

Escritora, publicitária, jornalista e caçadora de nuvens.