O que é Feminismo?
Onde estamos hoje?
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NOTA DA TRADUTORA
Este é o Primeiro Capítulo do livro “Patriarcado e Acumulação de Capital em Escala Global”, da autora Maria Mies. O texto abaixo não corresponde ao capítulo completo, que será gradualmente publicado em seções, pois é relativamente extenso.
Recomendo também a leitura do Capítulo 3:
1. A dialética do “progresso e retrocesso”
2. Subordinação de mulheres, natureza e colônias
3. Colonização e acumulação primitiva de capital
O Movimento de Libertação das Mulheres (WLM) é talvez o mais controverso, bem como o mais abrangente dos novos movimentos sociais: o movimento ecológico, o movimento alternativo, o movimento pela paz e outros. Ele provoca as pessoas apenas por existir.
Enquanto é possível emplacar um discurso intelectual ou político desapaixonado sobre a “questão ecológica”, a “questão da paz”, a questão da dependência do Terceiro Mundo, a “questão da mulher” leva invariavelmente a reações altamente emocionais por parte dos homens e por parte de muitas mulheres. Trata-se de uma questão sensível para cada pessoa.
A razão disso é que o movimento de mulheres não dirige as suas exigências principalmente a alguma agência externa ou um inimigo, como o Estado, os capitalistas, como fazem os movimentos, mas dirige-se às pessoas nas suas relações humanas mais íntimas, a relação entre mulheres e homens, com vista a mudar estas relações.
Portanto, a batalha não é entre grupos particulares com interesses ou objetivos políticos comuns e algum inimigo externo, mas acontece dentro de mulheres e homens e entre mulheres e homens. Cada pessoa é forçada, mais cedo ou mais tarde, a tomar partido. E tomar partido significa que algo dentro de nós se desfaz, que o que pensávamos ser a nossa identidade se desintegra e tem de ser criado de novo. Isso é um processo doloroso.
A maioria dos homens e mulheres tentam evitá-lo porque temem que, caso se permitam a tomar consciência da verdadeira natureza da relação homem-mulher nas nossas sociedades, a última ilha de paz, de harmonia no mundo frio e brutal do dinheiro, jogos de poder e ganância serão destruídos.
Além disso, se permitirem que esta questão entre na sua consciência, terão de admirar que eles próprios, mulheres e homens, não são apenas vítimas por um lado (mulheres) ou apenas vilões (homens), por outro, mas que também são cúmplices no sistema de exploração e opressão que une mulheres e homens. E que, se quiserem chegar a uma relação humana verdadeiramente livre, terão de renunciar à sua cumplicidade. Isto não é apenas para homens cujos privilégios se baseiam neste sistema, mas também para mulheres cuja existência material está muitas vezes atada a ele.
As feministas são aquelas que ousam quebrar a conspiração do silêncio sobre a opressiva e desigual relação homem-mulher e que querem mudá-la.
Mas falar sobre este sistema de domínio masculino, dando-lhe certos nomes como “sexismo” ou “patriarcado”, não reduziu a ambivalência acima mencionada, mas antes intensificou-a e ampliou-a.
Houve respostas contraditórias ao novo movimento de mulheres desde o seu início, no final dos anos 60. As mulheres que se juntaram nesse movimento nos EUA e na Europa começaram a chamar-se a si próprias ‘feministas’ e a criar todos os grupos de mulheres em que, pela primeira vez, após o velho movimento feminino nos anos vinte ter murchado, começaram a falar do “problema sem nome” (Friedan, 1968).
Cada uma de nós já tinha ouvido, vezes sem conta em conversas privadas, uma de nossas irmãs dizer-nos como tinham sido maltratadas pelos seus irmãos, maridos e namorados. Mas isso era sempre considerado um azar privado dessa ou daquela mulher. Os primeiros grupos de conscientização, os grupos de troca, os encontros só de mulheres, as primeiras ações espetaculares de mulheres que começaram a separar-se dos grupos e organizações mistas foram todas ocasiões em que as mulheres puderam descobrir que o seu problema pessoal aparentemente único era o problema de todas as mulheres, era, de fato, um problema social e político.
Quando o mote “O pessoal é político” foi cunhado, quebrou-se o tabu que rodeava a “santa família” e seu santuário: o quarto de dormir e as experiências sexuais das mulheres.
Todas as mulheres estavam esmagadas pela extensão e profundidade do sexismo que vinham à tona nesses grupos de troca. A nova preocupação que surgiu, o compromisso de lutar contra a dominação masculina, contra todas as humilhações e maus tratos das mulheres e contra a desigualdade contínua dos sexos gerou um novo sentimento de irmandade entre as mulheres que foi uma enorme fonte de força, entusiasmo e euforia no início.
Esse sentimento de irmandade baseava-se numa consciência mais ou menos clara de que todas as mulheres, independentemente da classe, raça, nação, tinham um problema comum, que era: “quão mal os homens nos tratam”, como dito pelas mulheres do “Sistren Theatre Collective” na Jamaica em 1977, quando estavam prestes a iniciar o seu grupo em Kingston.
E sempre que as mulheres se reúnem para falar sobre estas experiências mais íntimas e muitas vezes tabu, os mesmos sentimentos de indignação, preocupação e solidariedade sorora podem ser observados. Isso é igualmente verdade para os grupos de mulheres que emergem nos países subdesenvolvidos.
No início do movimento, as reações hostis ou de desprezo de largos setores da população masculina, particularmente daqueles que tinham alguma influência na opinião pública, como jornalistas e pessoas da comunicação social, apenas reforçaram os sentimentos de irmandade entre as feministas que se convenceram cada vez mais de que o separatismo feminista era a única forma de criar algum espaço para as mulheres dentro das estruturas gerais da sociedade dominada pelos homens.
Mas quanto mais o movimento feminista se espalhava, mais claramente demarcava as suas áreas como áreas só de mulheres onde os homens estavam fora dos limites, mais eram as reações negativas ou abertamente hostis a este movimento. O feminismo tornou-se uma palavra feia para muitos homens e mulheres.
Nos países subdesenvolvidos, essa palavra era sobretudo utilizada com o atributo pejorativo “ocidental” ou, por vezes, “burguês”, para denotar que o feminismo pertence à mesma categoria do colonialismo e/ou do domínio da classe capitalista; e que as mulheres do Terceiro Mundo não precisam desse movimento.
Em muitas conferências internacionais, pude observar uma espécie de ritual tomando forma, particularmente após a Conferência das Mulheres das Nações Unidas no México, em 1975. Quando as mulheres falavam em espaços públicos, tinham primeiro de se dissociar “daquelas feministas” antes de poderem falar como mulheres. As ‘feministas’ eram sempre as ‘outras mulheres’, as ‘mulheres más’, as ‘mulheres que vão longe demais’, as ‘mulheres que odeiam os homens’, algo como bruxas modernas com as quais uma mulher respeitável não queria estar associada.
As mulheres da Ásia, América Latina e África, particularmente as ligadas às burocracias do desenvolvimento ou à ONU, distinguem-se geralmente daquelas ‘feministas ocidentais’ porque, segundo elas, o feminismo lateraliza as questões da pobreza e do desenvolvimento, as questões mais candentes nos seus países. Outras sentiam que as feministas dividiam a unidade da classe trabalhadora ou de outras classes oprimidas, que esqueciam a questão mais ampla da revolução ao colocar a questão da libertação das mulheres antes da questão da luta de classes ou da luta de libertação nacional. A hostilidade contra o feminismo era particularmente forte entre as organizações da esquerda ortodoxa, e mais entre os homens do que entre as mulheres.
Contudo, apesar desses pronunciamentos negativos sobre o feminismo em geral, e o “feminismo ocidental” em particular, a “questão da mulher” estava novamente na agenda da história e não podia ser posta de lado de novo.
A Conferência Internacional da Mulher no México, numa espécie de estratégia de futuro no seu Plano de Ação Mundial, tentou canalizar toda a raiva subjugada e a lenta rebelião das mulheres para o caminho controlável das políticas governamentais e, particularmente, tentou proteger as mulheres do Terceiro Mundo da doença infeciosa do “feminismo ocidental”. Mas a estratégia teve o efeito oposto.
Os relatórios que tinham sido preparados para esta conferência foram, em vários casos, os primeiros documentos oficiais sobre a crescente desigualdade entre homens e mulheres (cf. Governo da Índia, 1974). Eles deram peso e legitimidade aos pequenos grupos feministas que começaram a emergir nos países do Terceiro Mundo naquela altura.
Na Conferência Internacional das Mulheres de meados da década em Copenhague, em 1980, admitiu-se que a situação das mulheres a nível mundial não tinha melhorado, mas sim deteriorado. Entretanto, o que tinha crescido era a consciência, a militância e as redes organizacionais entre as mulheres do Terceiro Mundo.
Apesar das muitas críticas do Terceiro Mundo ao “feminismo ocidental” nesta conferência, esta ainda marcou uma mudança na atitude em relação à “questão da mulher”. Após a conferência, a palavra “feminismo” deixou de ser evitada pelas mulheres do Terceiro Mundo nas suas discussões e escritos.
Em 1979, num workshop internacional em Bangkok, no Terceiro Mundo e Primeiro Mundo, as mulheres já tinham chegado a uma espécie de entendimento comum do que era a ‘ideologia feminista’; e os objetivos comuns do feminismo são explicitados na documentação do workshop intitulada “Desenvolver Estratégias para o Futuro: Perspetivas Feministas” (Nova Iorque, 1980).
Em 1981, aconteceu em Bogotá a primeira conferência feminista de mulheres latino-americanas. Em muitos países da Ásia, América Latina e África, surgiram pequenos grupos de mulheres que se autodenominavam abertamente “feministas”, embora ainda tivessem de enfrentar muitas críticas de todos os lados.
Parece que quando as mulheres do Terceiro Mundo começaram a lutar contra algumas das manifestações mais cruéis da relação opressiva homem-mulher, como assassinatos pela honra e violação na Índia, ou o turismo sexual na Tailândia, ou a clitoridectomia em África, ou as várias formas de machismo na América Latina, foi inevitável chegarem ao mesmo ponto a partir de onde começou o movimento feminista ocidental, nomeadamente a relação homem-mulher profundamente exploradora e opressiva, apoiada por uma violência direta e estrutural que se entrelaça com todas as outras relações sociais, incluindo a atual divisão internacional do trabalho.
Este genuíno movimento de base das feministas do Terceiro Mundo seguiu princípios organizacionais similares aos das feministas ocidentais. Formaram-se pequenos grupos ou centros autônomos de mulheres, seja em torno de questões particulares ou, mais geralmente, como espaços onde as mulheres podiam se encontrar, falar, discutir seus problemas, coletar e agir em conjunto.
Assim, em Kingston, Jamaica, o coletivo de teatro Sistren mencionado acima formou-se como um grupo só de mulheres com o objetivo de elevar a consciência das mulheres pobres, principalmente sobre a exploração de homens-mulheres e relações de classe. Em Lima, Peru, o grupo Flora Tristan foi um dos primeiros centros feministas da América Latina (Vargas, 1981). Na Índia, vários grupos feministas e países foram formados nas grandes cidades. Os mais conhecidos deles são o grupo Stri Sangharsh (agora dissolvido), e Saheli em Delhi. A antiga Rede Feminista (agora dissolvida), a Stree Mukti Sangathna, o Fórum de Opressão da Mulher, o Centro da Mulher em Bombaim, a Stri Shakti Sangathana em Hyderabad, Vimochana em Bangalore, o Centro da Mulher em Calcutá. Por volta da mesma época, a primeira revista genuinamente feminista surgiu nos países do Terceiro Mundo. Uma das mais antigas em Manushi, publicada por um coletivo de mulheres em Delhi. No Sri Lanka, a “Voz das Mulheres” apareceu por volta da mesma época. Revistas similares foram publicadas na América Latina.
Paralelo a essa ascensão do feminismo do Terceiro Mundo a partir de “baixo” e no nível das bases estava o movimento a partir de “cima”, que se concentrava principalmente no papel da mulher no desenvolvimento, nos estudos da mulher e no status da mulher. Ele teve origem, em grande parte, em burocracias nacionais e internacionais, organizações de desenvolvimento, organizações da ONU no que toca às mulheres, ou mesmo feministas, que tentaram usar os recursos financeiros e organizacionais dessas burocracias para a promoção da causa das mulheres. Nisso, certas organizações americanas, como a Fundação Ford, desempenharam um papel particularmente importante. A Fundação Ford contribuiu generosamente para a criação de estudos e pesquisas sobre mulheres em países do Terceiro Mundo, particularmente no Caribe, na África (Tanzânia) e na Índia. Foram criados centros de pesquisa e formuladas políticas com o objetivo de introduzir os Estudos da Mulher no programa de estudos das ciências sociais.
Na Índia, foi formada uma Associação Nacional de Estudos da Mulher que já realizou duas conferências nacionais. Uma organização similar está sendo atualmente formada no Caribe. Mas enquanto a associação indiana ainda se mantém fiel ao termo mais geral “estudos sobre as mulheres”, a associação caribenha se autodenomina “Associação Caribenha de Pesquisa e Ação Feminista” (CAFRA).
Esta designação já é uma expressão das discussões teóricas e políticas que estão ocorrendo nos países do Terceiro Mundo entre as duas correntes — a de baixo e a de cima — do novo movimento de mulheres. Quanto mais o movimento se expande quantitativamente, mais ele é aceito pelas instituições, pelo establishment, mais dinheiro vem das agências internacionais de financiamento, bem como dos governos locais, mais agudos são os conflitos entre aqueles que só querem “adicionar” o “componente feminino” às instituições e sistemas existentes e aquelas que lutam por uma transformação radical da sociedade patriarcal.
Este conflito também está presente nos numerosos projetos econômicos para mulheres pobres rurais e urbanas, criados e financiados por uma série de agências de desenvolvimento, tanto governamentais quanto não-governamentais, locais e estrangeiras. Cada vez mais, os planejadores de desenvolvimento estão incluindo o “componente feminino” em suas estratégias. Com todas as reservas quanto aos verdadeiros motivos por trás dessas políticas (veremos no capítulo 4), podemos observar que mesmo esses projetos contribuem para o processo de aumento do número de mulheres que se tornam conscientes da “questão da mulher”. Eles também contribuem para a controvérsia política e teórica sobre o feminismo.
Se hoje tentarmos avaliar a situação do movimento internacional de mulheres, podemos observar o seguinte:
- Desde o início do movimento tem havido uma rápida e crescente expansão da conscientização entre as mulheres sobre a opressão e exploração da mulher. Este movimento está crescendo mais rapidamente atualmente nos países do Terceiro Mundo do que nos países do Primeiro Mundo onde, por razões a serem analisadas atualmente, o movimento parece estar em baixa vazante.
- Apesar de suas semelhanças em relação ao problema básico de “quão mal os homens nos tratam”, há muitas divisões entre as mulheres. As mulheres do Terceiro Mundo estão divididas das mulheres do Primeiro Mundo, as mulheres urbanas estão divididas das mulheres rurais, as mulheres ativistas estão divididas das mulheres pesquisadoras, as donas de casa estão divididas das mulheres empregadas. Além dessas divisões objetivas, baseadas nas várias divisões estruturais do trabalho sob o patriarcado capitalista internacional, há também numerosas divisões ideológicas, decorrentes da orientação política de mulheres individuais ou de coletivos de mulheres. Assim, existem divisões e conflitos entre as mulheres cuja principal lealdade ainda é com a esquerda tradicional e aquelas que criticam esta esquerda por sua cegueira em relação à questão da mulher. Há também divisões entre as próprias feministas, decorrentes das diferenças na análise do cerne do problema e das estratégias a serem seguidas para resolvê-lo.
- Estas divisões podem ser encontradas não apenas entre diferentes conjuntos de mulheres, separadas por classes, nações e raças, mas também dentro de conjuntos de mulheres que pertencem a uma mesma raça, classe ou nação. No movimento feminista ocidental, a divisão entre mulheres lésbicas e heterossexuais desempenhou um papel importante no desenvolvimento do movimento.
- Como cada mulher que entra para o movimento tem que integrar em si mesma a experiência existencial de uma comunidade básica de mulheres que vivem sob o patriarcado com as experiências igualmente existenciais de serem diferentes de outras mulheres, o movimento é caracterizado em toda parte por um alto grau de tensão, de energia emocional sendo gasta na solidariedade das mulheres, bem como em se diferenciar das outras mulheres. Isto é verdade para os movimentos de Primeiro e Terceiro Mundo, pelo menos aqueles que não estão sob as diretrizes de um partido, mas estão se organizando de forma autônoma em torno de questões, campanhas e projetos.
- Muitas mulheres reagem a essa experiência de estarem ao mesmo tempo unidas e divididas com atitudes moralistas. Ou acusam as “outras mulheres” de comportamento paternalista ou mesmo patriarcal, ou — se elas são as acusadas — respondem com sentimentos de culpa e uma espécie de surra retórica.
Essa última pode ser observada particularmente no que diz respeito à relação entre sexo e raça, que nos últimos anos surgiu como uma das áreas mais sensíveis do movimento feminista nos EUA, Inglaterra e Holanda, onde vive um grande número de mulheres do Terceiro Mundo que aderiram ao movimento feminista (Bandarage, 1984).
No início, as feministas brancas eram frequentemente indiferentes ao problema racial ou tomavam uma atitude maternalista ou paternalista em relação às mulheres não-brancas, tentando trazê-las para o movimento feminista. Somente quando as mulheres negras e pardas começaram a estender o princípio de organização autônoma a seu próprio grupo e formaram seus coletivos, revistas e centros de mulheres negras separadamente, as feministas brancas começaram a ver que a “irmandade” ainda não seria alcançada se se colocasse os homens de um lado e as mulheres do outro.
No entanto, embora a maioria das feministas brancas admitisse hoje que o feminismo não pode atingir seu objetivo a menos que o racismo seja abolido, os esforços para compreender a relação entre exploração e opressão sexual e racial permanecem geralmente no nível individual, onde a mulher individual faz alguma imersão em sua alma para descobrir e punir a “racista” dentro de si. Por outro lado, nem as análises das mulheres negras vão muito além de dar expressão aos sentimentos de raiva das mulheres negras que se recusam a ser uma “ponte para todos” (Rushin, 1981).
Ainda não existem muitas análises históricas e político-econômicas sobre a inter-relação entre racismo e sexismo sob o patriarcado capitalista. Seguindo a tendência a-histórica geral na investigação das ciências sociais, a discriminação racial é colocada ao mesmo nível que a discriminação sexual. Ambas parecem estar ligadas à dada biologia: sexo e cor da pele. Porém, enquanto muitas feministas rejeitam o construcionismo biológico no que respeita às relações sexuais e insistem nos instrumentos sociais e históricos de exploração e opressão das mulheres, no que respeita às relações raciais, a história passada e atual do colonialismo e da pilhagem e exploração capitalista do mundo negro pelo homem branco é na sua maioria esquecida. Em vez disso, as “diferenças culturais” entre as mulheres ocidentais e não-ocidentais são fortemente enfatizadas.
Hoje, essa relação colonial é sustentada pela divisão internacional do trabalho. Essa relação não só é frequentemente eclipsada na consciência das feministas brancas cujo nível de vida também depende em grande medida dessa mesma relação colonial contínua, mas também na consciência das mulheres negras no “mundo branco”. O facto de terem a mesma cor de pele das suas irmãs e irmãos no “mundo negro” ainda não as coloca automaticamente do mesmo lado que elas (cf. Amos & Parmar, 1984), porque as mulheres negras também estão divididas pelo patriarcado capitalista ao longo das linhas coloniais e de classe; e a divisão de classes, em particular, é frequentemente esquecida no discurso sobre sexo e raça.
Na atual conjuntura, o capitalismo “negro” ou “pardo” ou “amarelo” é a grande esperança dos tenentes do sistema capitalista mundial. Há algumas mulheres negras no “mundo negro” cujo padrão de vida é melhor do que o de algumas mulheres brancas no “mundo branco”, e particularmente do que o da maioria das mulheres negras no mundo branco e no mundo negro.
Se não queremos cair na armadilha do moralismo e do individualismo, é necessário sair da superfície e chegar a uma compreensão materialista e histórica da interação entre as divisões sexuais, sociais e internacionais do trabalho. Pois estas são as divisões objetivas, criadas pelo patriarcado capitalista na sua conquista do mundo, que estão na base das nossas diferenças, embora não determinem tudo. E essas divisões estão intimamente ligadas a expressões culturais particulares.
A forma como o sexo, a classe e a raça, ou melhor, o colonialismo, se entrelaçam nas nossas sociedades não é apenas um problema ideológico que não pode ser resolvido só com boa vontade.
Quem quiser alcançar uma base realista para a solidariedade feminista internacional tem de tentar compreender como estas divisões ao longo das linhas do sexo, raça e classe se combinam. Um simples apelo a mais ‘sororidade’ ou solidariedade internacional não será suficiente.
No que diz respeito às divisões nos planos ideológico e político, houve tentativas de categorizar e rotular as várias tendências do novo movimento feminista. Assim, algumas tendências são chamadas “feminismo radical”, outras “feminismo socialista” ou “feminismo marxista”, outras “feminismo liberal”; por vezes, dependendo da filiação política do orador, uma tendência pode também ser denunciada como “feminismo burguês”.
Na minha opinião, esta rotulagem não contribuiu para uma melhor compreensão do que é realmente o feminismo, o que ele representa, quais são os seus princípios básicos, a sua análise da sociedade e as suas estratégias. Além disso, esta rotulagem tem relevância apenas para pessoas que olham principalmente para o movimento a partir do exterior e tentam encaixá-lo em categorias já conhecidas pelas pessoas.
As categorias desenvolvidas podem ter algum valor em alguns países, por exemplo no mundo anglo-saxónico, mas não em outros. Mas de um modo geral, o seu valor explicativo é bastante limitado. Assim, o rótulo “feminismo radical”, utilizado principalmente para caracterizar uma tendência principal do feminismo nos EUA , não explica a uma estranha o que representa. Apenas aquelas que conhecem o movimento sabem que as feministas radicais são aquelas que defendem uma estratégia de separatismo radical das mulheres dos homens, particularmente no domínio das relações sexuais como centro do poder patriarcal. Em polémicas, as “feministas radicais” são frequentemente acusadas de serem anti-homens, de serem todas lésbicas.
A principal falha dessa abordagem de rótulos, contudo, não é só a sua pobreza explicativa, mas também o fato de tentar encaixar a “questão da mulher” em quadros teóricos e políticos já existentes. Isto significa que esses quadros enquanto tais não são criticados do ponto de vista da libertação das mulheres, mas são considerados mais ou menos adequados e precisam apenas da “componente feminina”. Se esta “componente feminina” fosse acrescentada, espera-se, essas teorias estariam completas.
A maioria das teóricas feministas que seguem essa abordagem não tem, obviamente, a noção de que a natureza da “questão da mulher” é tal que não pode ser simplesmente acrescentada a alguma outra teoria geral, mas que critica fundamentalmente todas essas teorias e implora uma nova teoria da sociedade no seu conjunto.
Essa abordagem de rotulagem aditiva pode ser observada particularmente nas tentativas de acrescentar o feminismo ao socialismo. As caracterizações de algumas tendências do movimento feminino como ‘feminista socialista’ ou ‘marxista-feminista’ são manifestações da tendência para encaixar a nova crítica e rebelião feminista no corpo teórico existente do marxismo.
Ao simplesmente postular, como um slogan de algumas “feministas socialistas” holandesas, que não haverá socialismo sem libertação das mulheres e que não haverá libertação das mulheres sem socialismo (Grupo-Fem-Soc), ainda não compreendemos o que essas mulheres querem dizer com socialismo ou feminismo. (Para as mulheres holandesas que cunharam esse slogan, “socialismo” era mais ou menos idêntico à social-democracia europeia).
Tais slogans ou rótulos podem parecer úteis ao nível da política cotidiana, onde as pessoas querem saber em que buracos de pombos colocar os membros de um movimento tão difuso como o movimento das mulheres. Mas não nos dão uma pista sobre como essas pessoas analisam a ‘questão das mulheres’, que soluções elas estão propondo e qual a relação entre o objetivo político da libertação das mulheres e a visão socialista do que é uma sociedade do futuro. Tal relação não pode ser postulada tão simplesmente.
O que é preciso é uma nova análise histórica e teorética da inter-relação entre a exploração e opressão das mulheres e a das demais categorias de pessoas e da natureza.
As mulheres que seguem as outras tendências, rotuladas como feminismo “radical” ou “liberal”, tentaram encaixar as suas análises em algum outro enquadramento teórico. Assim, a psicanálise tem sido o ponto de partida teórico para muitas feministas nos Estados Unidos, na França e na Alemanha ocidental (Millet, 1970; Mitchell, 1975; Irrigaray, 1974; Janssen-Jurreit, 1976). Esta ênfase na psicologia e na psicanálise tem que ser vista no contexto das tendências individualistas entre grandes partes do movimento feminista no Ocidente.
Outras utilizaram o funcionalismo, o estruturalismo ou o interacionismo como estruturas teóricas para sua análise da “questão da mulher”. Naturalmente, um movimento social que visa uma mudança fundamental das relações sociais não opera num vácuo teórico. É natural que as mulheres que começaram a esclarecer suas posições teóricas tenham tido que buscar referências nas teorias existentes.
Em alguns casos, isso levou a uma crítica de pelo menos partes dessas teorias: por exemplo, a teoria de Freud sobre inveja do pênis e da feminilidade foi fortemente atacada pelas feministas. Mas a teoria como tal permaneceu intacta. Em outros casos, tal crítica nem chegou a ser foi feita, mas os conceitos básicos e categorias de tais teorias foram utilizados sem reflexão crítica na análise feminista.
Isto é particularmente verdadeiro para o funcionalismo estrutural e sua teoria dos papéis. Em vez de criticar a teoria dos papéis (sociais) como a estrutura teórica para a manutenção da família nuclear patriarcal sob o capitalismo, a teoria dos papéis foi bastante reforçada por muitas feministas.
A ênfase no estereótipo do papel sexual e as tentativas de resolver a “questão da mulher” mudando este estereótipo do papel sexual através da socialização não-sexista não só reforçou a análise estrutural-funcionalista, mas bloqueou a compreensão das raízes mais profundas da exploração e opressão da mulher. Ao definir o problema homem-mulher como uma questão de estereótipo de papel social e de socialização, ele foi imediatamente colocado em um plano ideológico; tornou-se um assunto cultural. As raízes estruturais deste problema permaneceram invisíveis e, assim, sua conexão com a acumulação de capital permaneceu invisível.
Esta última é igualmente verdadeira para as tentativas de usar o estruturalismo e, também, em sua modificação marxista (Althusser, Meillassoux, Lacan) como uma estrutura teórica para a análise da opressão da mulher. Essas tentativas também acabam mantendo uma divisão estrutural entre a base econômica e a “autonomia relativa” (Althusser) da ideologia. Consequentemente, a opressão da mulher é considerada parte da ideologia ou da cultura.
Todos esses esforços para “acrescentar” a “questão da mulher” às teorias ou paradigmas sociais existentes não conseguem captar o verdadeiro impulso histórico da nova rebelião feminista, ou seja, seu ataque radical ao patriarcado ou à civilização patriarcal como sistema, do qual o capitalismo constitui a manifestação mais recente e mais universal.
Como praticamente todas as teorias acima mencionadas permanecem dentro do paradigma da “sociedade civilizada”, o feminismo, que em seu objetivo político quer necessariamente transcender este modelo de sociedade, não pode ser simplesmente acrescentado ou encaixado em algum nicho esquecido dessas teorias.
Muitas de nós tentando preencher esses “pontos cegos” finalmente descobrimos que nossas perguntas, nossas análises colocam todo este modelo de sociedade em questão. Talvez ainda não tenhamos desenvolvido teorias alternativas adequadas, mas nossa crítica, que começou com essas lacunas, foi se aprofundando cada vez mais até perceber que “nosso problema”, ou seja, a opressiva e exploradora relação homem-mulher, estava sistematicamente ligado a outros “continentes ocultos”, sobretudo à “natureza” e às “colônias”.
Gradualmente surgiu uma nova imagem da sociedade na qual as mulheres não eram apenas “esquecidas”, “negligenciadas”, “discriminadas” por acidente, onde elas “ainda não” tinham uma chance de chegar ao nível dos homens, onde eram uma das várias “minorias”, “especificidades” que não podiam “ainda” ser acomodadas às teorias e políticas generalizadas, mas onde toda a noção do que era “geral”, ou do que era “específico”, tinha que ser revolucionada.
Como definir aquelas que são o verdadeiro fundamento da produção da vida de cada sociedade, as mulheres, como uma categoria “específica”?
Portanto, a reivindicação da validade universal, inerente a todas essas teorias, teve que ser questionada. Isso, entretanto, ainda não estava claro para muitas feministas.
É uma experiência peculiar de muitas mulheres a de estarem envolvidas em várias lutas e ações, cujo significado histórico mais profundo elas próprias muitas vezes não são capazes de compreender. Assim, elas de fato provocam certas mudanças, mas não “entendem” que as mudanças que visam são muito mais abrangentes e radicais do que se atrevem a sonhar.
Tomemos o exemplo da campanha mundial contra o estupro. Ao se concentrarem na violência masculina contra as mulheres, vindo à tona no estupro, e ao tentarem fazer disso uma questão pública, as feministas inadvertidamente tocaram num dos tabus da sociedade civilizada, a saber, que esta é uma “sociedade pacífica”. Embora a maioria das mulheres se preocupasse principalmente com a ajuda às vítimas ou com a realização de reformas legais, o próprio fato de que o estupro agora se tornara uma questão pública ajudou a rasgar o véu da fachada da chamada ‘sociedade civilizada’ e desnudou as suas bases ocultas, brutais e violentas.
Muitas mulheres, quando começam a entender a profundidade e amplitude da revolução feminista, temem sua própria coragem e fecham os olhos para o que veem porque se sentem totalmente impotentes diante da tarefa de derrubar vários milhares de anos de patriarcado. No entanto, as questões permanecem.
Se nós — mulheres e homens — estivermos prontos ou não para responder às questões históricas levantadas, elas permanecerão na agenda da história. E temos que encontrar respostas a elas que façam sentido e que nos ajudem a reestruturar as relações sociais de tal forma que nossa ‘natureza humana’ seja promovida e não esmagada.