O que é esse tal de “feminismo liberal”?

E por que é — e tem sido — tão criticado?

Furiosa
QG Feminista
11 min readApr 6, 2018

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Esse texto levou 15h pra ser escrito, entre leitura, pesquisa, e escrita. Me ajude a continuar escrevendo!

Talvez você já tenha visto críticas ao “libfem” — do inglês liberal feminism — por ele não ser “feminismo de verdade”. Talvez você nunca tenha visto essas críticas. Talvez você nem saiba o que é de fato feminismo liberal. E talvez você nem saiba que, sim, dá pra colocar um adjetivo depois do substantivo “feminismo” quando queremos nos referir a um movimento ou linha de pensamento feminista específico.

O entendimento do chamado Feminismo Liberal hoje está envolto numa tremenda confusão semântica, visto que esse termo é usado de muitas maneiras e para caracterizar coisas semelhantes à primeira vista, mas bastante distintas na prática.

Se você pesquisar o termo “feminismo liberal”, vai encontrar sua utilização referindo-se por exemplo, num contexto histórico, à primeira “onda” feminista. Na academia, não usamos a expressão “feminismo liberal” para denominar qualquer movimento atual — a expressão é mais fortemente associada à primeira onda do feminismo (o que não deixa de ser injusto, porque no mesmo período histórico surgiram as primeiras feministas classistas/marxistas), porque as primeiras mulheres que se intitularam e se reivindicaram “feministas” estavam pautadas em ideais liberais.

Também vai encontrar esse termo referindo-se a um movimento mais ou menos organizado, que é chamado de “vertente”. E também vai encontrar a utilização desse termo de forma mais genérica para designar determinadas práticas tidas como feministas mas que de feministas não têm nada.

E ainda você vai ter muita confusão com o termo “feminismo liberal” por causa da confusão do termo “liberal” como “liberalidade”, como sinônimo de algo libertador, o oposto de conservador, melhor dizendo. É comum, então, que se pense que “feminismo liberal” é aquele feminismo que, simplesmente, deseja “liberdades” para as mulheres. Tudo errado.

Pausa.

Pra entender o restante do texto — e as críticas que teceremos — é bom definir aqui, de uma vez por todas, o que é ser liberal, o que é esse movimento chamado liberalismo.

Quando falamos em feminismo liberal, nós estamos nos referindo ao movimento por direitos das mulheres pautado na doutrina político-econômica do liberalismo. Isso gera muitas confusões, porque, para muitas pessoas (principalmente aquelas que não estão familiarizadas com as nomenclaturas das ciências humanas), “liberal” é sinônimo de algo libertador, o oposto de conservador, melhor dizendo. É comum, então, que se pense que “feminismo liberal” é aquele feminismo que, simplesmente, deseja “liberdades” para as mulheres. E por que isso seria ruim, certo?

Mas vamos lá. Retomando.

O liberalismo enquanto teoria política, social e econômica surge por volta dos séculos XV e XVI, mas se fortalece de verdade a partir do século XVII, com a ascensão do iluminismo. A ideia de seus teóricos era fazer uma oposição ideológica às doutrinas monárquicas, de Estado absolutista — o que pressupõe críticas à ausência de direitos, à arbitrariedade inerente a um Estado absolutista, à falta de mobilidade social, ao autoritarismo econômico, político e social, e por aí vai.

Os primeiros liberais, então, defendiam as liberdades do indivíduo — de ter propriedades e de dispor delas como bem quisesse; de acreditar no que quisesse; de votar em quem quisesse; enfim — , o que é plenamente compreensível dado seu momento histórico. De toda forma, o liberalismo é essencialmente individualista. O foco é o indivíduo e suas liberdades pessoais, e não a coletividade.

Alguns liberais chegaram até a falar da condição feminina, como John Stuart Mill, no século XIX, que defendeu o direito da mulher ao divórcio e ao voto. Mas não era a regra. O liberalismo nasceu de um solo burguês e patriarcal, e suas principais expressões ao longo da história apagaram (ou desconsideraram) a participação das mulheres (burguesas ou não).

Tomemos como exemplo o cenário revolucionário francês. Em 1789, foi elaborada e ratificada a “Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão”, uma síntese do pensamento burguês-liberal do momento, e— como seu próprio nome carrega — masculinista. Em resposta a esse documento, Olympe de Gouges elabora, dois anos depois, sua “Declaração dos Direitos das Mulher e da Cidadã”, para exigir igualdade jurídica, política e social entre homens e mulheres. (Olympe de Gouges era burguesa, girondina, e foi guilhotinada na Revolução Francesa. Sequer seus “iguais” lhe pouparam)

Em termos de feminismo, o liberalismo foi assimilado num primeiro momento como fundamento teórico do direito ao voto feminino. Afinal, se essa doutrina defendia serem todos os seres humanos iguais e sujeitos de direitos civis, por que as mulheres deveriam ser excluídas?

E foi no liberalismo que as primeiras feministas se pautaram para defender seus direitos à participação na esfera pública, o direito ao trabalho e ao controle de suas finanças, e o direito à participação e à representação política de forma geral.

Aí surgiu o contraponto marxista. E é a partir desse contraponto que o liberalismo passa a ser questionado.

A partir do momento em que mulheres começam a desenvolver suas próprias teorias e sua própria maneira de analisar e de interpretar sua história e a sociedade, as teorias fundamentalmente masculinas foram sendo criticadas. As feministas foram percebendo o quanto teorias elaboradas por homens (e brancos, e burgueses) são e sempre foram parciais e excludentes — por mais que se considerassem universais. E o liberalismo se mostrou, na verdade, um inimigo do movimento feminino.

Por quê? Porque desconsidera as estruturas da sociedade, que em algum grau condicionam, em algum grau limitam as nossas liberdades, independentemente de nós as termos institucional e formalmente.

Dá pra falar que nós somos totalmente livres ao escolhermos qualquer coisa ou ao tomarmos qualquer decisão? Vocês acham mesmo que a nossa classe social, a nossa cultura, as nossas experiências de vida (que em grande medida são atravessadas por nossas classe, cor de pele e sexo) não condicionam nem um pouquinho a forma como nós enxergamos o mundo? E é possível falar em liberdade de verdade se a nossa “liberdade de escolha” é limitada por todos esses fatores?

Pensem no fator de classe social. Marx nos explicou a dinâmica entre a classe dominante e a classe dominada, e sobre os mecanismos de que a classe dominante dispõe para convencer a classe dominada de que o lugar dela é como “dominada”, mesmo. Pra atualizar um pouco o debate, Gramsci, algumas décadas depois de Marx, introduz o conceito de “hegemonia cultural” pra explicar a forma como as elites transmitem sua ideologia por meio da própria cultura (pelos meios de comunicação, por exemplo) e de outras instituições que não o Estado. O objetivo é que a classe dominada acredite que políticas e teorias prejudiciais aos interesses das elites são prejudiciais aos interesses da sociedade como um todo, alienando-se de sua própria condição, e de, consequentemente, de suas próprias necessidades. Por isso a conscientização — a tomada de consciência de classe — é essencial para o processo revolucionário.

Com nós, mulheres, o processo é muito semelhante. Diversas autoras, como Simone de Beauvoir e Gerda Lerner, já nos falaram que o processo histórico de dominação da mulher só foi bem-sucedido porque teve a ajuda das próprias mulheres. E as mulheres “ajudaram” em seu processo de dominação 1) porque eram física, intelectual, emocional, social e sexualmente coagidas a fazê-lo, e 2) porque eram convencidas de que, realmente, seu lugar era o da subordinação.

E ter essa consciência de que as mulheres (e as meninas) compõem uma classe própria foi um passo teórico, político e social essencial para a nossa conscientização. Porque é a partir do momento que nós nos enxergamos enquanto coletividade, enquanto uma massa que, apesar de trazer dentro de si tantas diferenças — de nacionalidade, de cor de pele, de cultura, de religião, de idade, etc — ainda surpreendentemente é oprimida estruturalmente mais ou menos da mesma forma e com o mesmo fundamento em todos os lugares do mundo — é a partir dessa consciência que conseguimos refutar as teorias individualistas. Percebemos que não é porque algo é bom para uma pessoa individualmente que é bom para a classe de que ela participa.

Nosso compromisso, enquanto feministas, é pela libertação da mulher. De todas as mulheres. Não é coerente, portanto, defender o direito de uma mulher fazer algo que sabidamente é motivo de aprisionamento para todas as outras mulheres. E mais: a partir do momento em que temos consciência das estruturas que nos aprisionam e nos exploram, também é completamente incoerente defender ideias e valores defendidos por grupos que têm interesse na manutenção de nossa dominação/exploração (por isso nós falamos repetidamente que se determinada ideia “feminista” agrada à classe masculina então ela não é feminista coisa nenhuma).

É por isso que falamos que feminismo liberal sequer é feminismo, porque o “feminismo liberal” não defende pautas que visam à libertação das mulheres enquanto classe, em sua totalidade.

Vamos dar nome aos bois e elencar algumas armadilhas da onda liberal?

Liberdade sexual. Sim, é verdade que historicamente a sexualidade da mulher foi mutilada. Sim, é verdade que ainda existem dois pesos e duas medidas quando falamos de sexualidade masculina e sexualidade feminina. Sim, a sexualidade feminina sempre foi e ainda é considerada propriedade e subordinada aos homens. Mas é inconsequente e incoerente achar que a libertação sexual da mulher se resume à “quebra de tabus” sexuais e ao fim da discriminação da mulher que faz sexo casual. É inconsequente, incoerente e desleal ensinar a meninas que “ser vadia é ser livre” e que é empoderador e revolucionário ela “dar pra quem ela quiser” quando o patriarcado, na verdade, nunca nos proibiu de fazer isso — e, na verdade verdadeira, até nos explora por conta disso. Qual a liberdade e a revolução de entregar algo que já é tido por propriedade do patriarcado?

Feminilidade. O feminismo dos anos 90 e 2000 decidiu que “tudo bem ser feminista e usar salto alto” ou “usar batom” ou “usar rosa”, justamente pensando defender que a mulher deve ter o direito de se autodeterminar sem se sujeitar a dogmas teórico-políticos (como seriam os do feminismo). Mas essa é uma leitura rasa e superficial que desconsidera que a feminilidade é usada como ferramenta de controle desde que existe. Desconsidera que feminilidade é algo imposto, não é uma escolha (não, a mulher nenhuma é oferecida a opção “não ser feminina”). Desconsidera que a liberdade de escolha a esse respeito é tão ilusória, mas tão ilusória, que a mulher que rejeita a feminilidade é ostracizada socialmente e acusada de “querer ser um homem”. É — de novo — incoerente defender a liberdade de usar algo que nos aprisiona enquanto pauta feminista, sendo que o feminismo busca a libertação total da mulher de absolutamente tudo que nos aprisiona — inclusive as ferramentas da feminilidade.

Prostituição e pornografia. Sim, aparentemente existem mulheres que gostam de fazer sexo em troca de dinheiro. Mas, como a maioria absoluta (realmente absoluta, mais do que você imagina) é absolutamente oprimida, violentada e explorada pela indústria do sexo (responsável pela manutenção da prostituição e da pornografia), é incoerente (e canalha) defender o “direito” de uma mulher fazer, individualmente, só porque ela gosta e se sente bem, algo que literalmente mata milhares de mulheres todos os anos.

Daí sempre tem aquelas pessoas que vêm argumentar que essa visão exige que a pessoa sacrifique (olha o nível) suas individualidades em prol da coletividade, ou então que essa análise generaliza demais as mulheres e ignora a heterogeneidade dos grupos que compõem a população feminina.

Quanto à primeira “crítica”, eu explico: não, você não precisa sacrificar nada em prol da coletividade. Mas não chame isso de feminismo. Aliás, não chame nada que não tenha interesse em libertar as mulheres de feminismo. (Será que é tão difícil assim?)

E sabe, tudo bem entrar em crise e perceber que você reproduz comportamentos e valores que você sabe que o feminismo critica. Eventualmente, isso acontece com todas nós. Ninguém nasce feminista — porque, de novo; nós somos moldadas por uma sociedade capitalista, racista e patriarcal. Nós somos ensinadas a não só achar normal, como a defender nossa própria exploração. Durante toda a nossa vida.

Seja aos 15, aos 25, aos 35 ou aos 60 anos, entrar em contato com as ideias feministas sempre vai ser um baque, assim como entrar em contato com ideias anticapitalistas e antirracistas, porque essas ideias são anti-hegemônicas e desafiam o status quo. A gente eventualmente vai se pegar reproduzindo machismo, sendo racista (ou reproduzindo racismo) e sendo elitista/classista (ou reproduzindo elitismo/classismo), e isso é normal. O que importa é o que a gente faz com isso: fechamos os olhos para as estruturas que nos condicionam a isso, indo pelo caminho mais fácil, ou percebendo que o buraco é bem mais embaixo.

Então se você quer continuar performando feminilidade, por exemplo, ok. A escolha é sua, sim. E ninguém vai te “tirar a carteirinha de feminista” — a não ser que você comece a tratar essa escolha como um ato político feminista.

Quanto à segunda crítica, eu digo o seguinte: sim, existem diversas mulheres em diversos contextos diferentes e que acumulam, portanto, opressões diferentes. Neste blog nós frequentemente pautamos o quanto a opressão vivenciada pela mulher branca é diferente daquela vivenciada pela mulher negra, e o quanto é importante racializar o feminismo para que ele dê conta de realmente pautar a libertação da mulher de maneira efetiva.

Mas o que o feminismo materialista — ou radical — busca evidenciar é que, independentemente de cor, classe, idade ou nacionalidade, as mulheres compartilham uma opressão pelo simples fato de serem mulheres; ou seja: a base de nossa opressão é sexual. E isso pode ser observado com facilidade mundo afora, mesmo que haja diferenças (marcadas por, por exemplo, cultura e religião) na forma como essa opressão se manifesta. A generalização é uma ferramenta necessária quando tratamos de materialidades.

E se todas compartilhamos a mesma opressão, é possível, sim, desenhar pautas comuns a todas as mulheres, que nos libertariam todas da opressão a nível sexual. Não é difícil pensar em pautas comuns a todas nós: o fim da maternidade compulsória, a abolição da prostituição e da pornografia, a institucionalização de direitos sexuais e reprodutivos (como o direito ao aborto), e o fim da cultura do estupro.

Feminismo que não luta contra a supremacia masculina não é feminismo.

Feminismo é um movimento político-social pela libertação de todas as mulheres.

Feminismo não é sobre seu bem-estar, sobre sua autoestima ou sobre sua individualidade, apesar de muitas vezes nos fazer bem a nível individual. É sobre mais do que isso, mais do que eu, mais do que você. E, muitas vezes, vai envolver a responsabilização do Estado.

É por essas e outras que feminismo e liberalismo são incompatíveis.

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