Tradução do artigo Lo que NO es feminismo, de Ana Pollán, publicado originalmente na revista Tribuna Feminista em março de 2020. Você pode ler o original em espanhol aqui.
O feminismo tem algo em torno de três séculos de história. Nasce com e por causa do Iluminismo, ainda que este não previsse o feminismo. Durante sua história, passou por fases muito frutíferas e momentos de declive causados pelas reações patriarcais. Reações que surgiram depois de cada período ou onda em que se conseguiu avançar na agenda feminista, isto é, em objetivos éticos, legais e políticos necessários para assegurar a equidade entre os sexos.
O feminismo, como argumenta a filósofa Alicia Miyares, avançou quase sempre sem aliados e sofrendo traições por parte de outras teorias políticas, mesmo quando estas — o liberalismo e o socialismo — se encontravam enfrentadas entre si. Ambas, no entanto, encontraram um ponto de união em considerar as reivindicações feministas, no melhor dos casos, uma questão secundária.
Três séculos de avanço solitário creditam o feminismo como uma das teorias e práticas políticas com maior potencial transformador — inclusive, creio que se pode dizer abertamente “revolucionário” — e com grande capacidade de resistência ante às contrarreformas patriarcais. O feminismo é uma teoria sólida de emancipação de êxito evidente: as sociedades que o assumem são muito mais justas.
A solidez do feminismo provém da Filosofia; da luta contra o preconceito, do exercício da razão, da reivindicação ética, da confrontação dialética racional e crítica que permite reconhecer e impugnar o patriarcado enquanto sistema de dominação que oprime as mulheres em função de seu sexo, isto é, pelo fato mesmo de serem mulheres. A força do feminismo reside na revisão constante de si mesmo (revisão, no entanto, que não é cética, nem relativista, nem pode exigir uma emenda constante ao que se estabeleceu como bom e justo depois de ter sido submetido a uma análise racional). Reside em sua coerência argumentativa, na claridade e na ambição de sua agenda, e que suas ramificações tenham sido elaboradas a partir de concepções ético-políticas fortes: isto é, a busca da igualdade, da dignidade, e do bem comum.
Que suas raízes teóricas sejam tão profundas possibilita determinar seus objetivos, ou seja, o horizonte ao qual se dirige, e, portanto, permite afirmar com certa segurança o que é feminismo e o que não o é. O que não é feminismo pode ser apresentado quando o confrontamos, tendo ele surgido de adversários sem máscara (fundamentalismos, fascismo, conservadorismo) ou tendo ele surgido de forma disfarçada, com uma aparência progressista e um fundo profundamente regressivo.
O patriarcado é facilmente detectado quando se serve do fundamentalismo, do fascismo ou do conservadorismo, por exemplo, mas é mais difícil de se detectar quando adquire aparências mais “amáveis” de modo estratégico. Atualmente, vemos que se não faltam ameaças ultraconservadoras diretas e preocupantes, também não estão em falta — inclusive, me parecem mais preocupantes — ameaças que se aparecem como cavalos de Tróia.
São eles, por exemplo, a teoria queer, a regulamentação da prostituição ou a legalização da subrogação de útero (“barriga de aluguel”), aspectos apresentados nos últimos tempos como a última transgressão do feminismo ainda que jamais tenham pertencido nem jamais pertencerão a sua tradição nem à sua vanguarda.
O assunto se complica se esses cavalos de Tróia de “perfeita” aparência progressista, mesmo para os mais incautos, e revolucionária, conseguem colocar à sua disposição as instituições, ou, ao mesmo, tentam fazê-lo. Foi o que aconteceu no Canadá. Também na Inglaterra, em algumas partes da América Latina, e, possivelmente, na Espanha. Já existem sintomas disso.
Talvez seja suficiente pensar que, se o feminismo reivindica a igualdade entre os sexos e defende a emancipação radical das mulheres enquanto grupo oprimido, deve ser rechaçado tudo aquilo que impede a consecução de tal fim. Com base nisso, além de dizer o que é feminismo, poderemos dizer o que não pode ser ou o que não pode estar nunca dentro do feminismo.
Partindo do raciocínio exposto, é possível afirmar com segurança que não é feminismo defender que as mulheres possamos ser vendidas, compradas ou alugadas para ser posta a serviço de homens enquanto grupo dominante. Consequentemente, o feminismo deve se opor frontal, radical, completa, evidente e indubitavelmente a qualquer forma de violência contra as mulheres pelo fato de serem mulheres. E exemplos disso são o abuso sexual ou a violência de gênero circunscrita ao relacionamento, mas também a prostituição, a barriga de aluguel e a pornografia. Não há feminismo que seja regulacionista. E não é possível ser feminista e respeitar posições regulacionistas. No feminismo não há “dois lados”: o lado que se opõe a seus objetivos abolicionistas (da prostituição, da barriga de aluguel, da pornografia, e, definitivamente, do gênero como intrinsecamente opressivo) está fora do feminismo e deve ser enfrentado. Nunca tivemos a intenção de conviver com convicções inimigas. Agora tampouco e no futuro menos ainda.
Não é feminismo nada que permita que o patriarcado sobreviva. Se fizéssemos uma lista com cada prática mais ou menos violenta que assegura a sujeição das mulheres, esse artigo poderia chegar a algumas milhares de páginas. Mas é possível reduzi-lo ao seguinte: o patriarcado é o sistema de dominação que subordina mulheres pelo fato de serem mulheres, isto é, por razão de seu sexo. Em outras palavras, por serem fêmeas da espécie humana. Como? Postulando ilegitimamente que as mulheres, por serem mulheres, são inferiores e, portanto, não podem possuir legitimamente os mesmos direitos e liberdades que os homens. E que, ademais, podem ser violentadas. O conjunto de todos os estereótipos, crenças, práticas de subordinação e imposição é o que em teoria feminista definimos como gênero. Assim, em síntese, a igualdade entre os sexos supõe necessariamente a abolição do gênero. De todas e cada uma de suas expressões, de todas e cada uma de suas manifestações, de todas e cada uma das identidades que se fundem nele. O gênero é uma manifestação opressora a ser combatida.
Por isso, não é feminismo tudo que impeça que homens e mulheres tenham os mesmos direitos, os mesmos espaços, a mesma segurança, as mesmas liberdades e a mesma capacidade para desenvolver seus projetos de vida.
Não é feminismo fundar uma reivindicação de plano de fundo ético-político marcadamente político-emancipatório em instituições necessariamente opressoras. Não é feminismo aceitar ou definir o gênero como expressão legítima ou como identidade defensável se o que se busca alcançar é a igualdade entre os sexos e a plena emancipação das mulheres. Não é feminismo definir o gênero como algo separado do patriarcado (salvo quando se pontua seu uso como categoria analítica a serviço da teoria feminista; mas precisamente porque nesse uso semântico legítimo atua como sinônimo de patriarcado), nem dissolvê-lo entre outras supostas particularidades do sujeito.
Se o feminismo é uma teoria política responsável de uma agenda de cumprimento obrigatório para conquistar e estabelecer a igualdade entre os sexos, velar por suas coerência, eficácia e produção intelectual é um dever fundamental e necessário. Em consequência, não é possível, como em qualquer outra teoria, que ele acolha em si a contradição dos próprios princípios. De fato, não o faz.
Tampouco é feminismo não só ignorar, mas depreciar a produção intelectual da própria teoria, e, ponto em prática o hábito infantil de começar algo do nada, insistir em dirigir a agenda feminista passando a borracha em ou prescindindo das pessoas que, por suas contribuições ao feminismo, têm méritos e credibilidade mais que comprovados. Quem despreza a teoria feminista, se nega a conhecê-la ou pretende trabalhar supostamente pela igualdade à margem de seu estudo, não somente não será feminista, como também seus esforços serão perfeitamente inúteis ainda que carregados da mais boa vontade. Não há feminismo sem conhecimento de sua tradição e sem reconhecimento do mérito das mulheres que a vêm sustentado — normalmente, além disso, com esforços heroicos.
Nenhuma teoria se corrige a si mesma. A feminista tampouco. De fato, é uma das mais sólidas e coerentes. Por isso, não comporta nem antes nem agora contradições internas. Necessariamente, não as tem. Portanto, não há que se tomar por contradições o que simplesmente são ameaças externas. Toda teoria, decisão política ou prática que possibilite incluir tais ameaças e acolhê-las dentro do feminismo não só não merece reconhecimento dentro dele, como também deve ser sinalizada e expulsa.
No feminismo não cabe a defesa da regulamentação da prostituição. No feminismo não cabe a aceitação ético-política da barriga de aluguel. No feminismo não cabe a violência sexual presente na prostituição e na pornografia. No feminismo não cabe reivindicar, celebrar, nem reproduzir, nem performar, nem reforçar o que nos oprime. Feminismo não é generismo.
No feminismo não cabe nada que vá contra seu sujeito político: as mulheres. Não cabe nada que nos apague, nada que nos debilite, nada que nos subjugue, nada que nos negue. No movimento que quer abolir o gênero não cabe defender a proliferação de identidades baseadas no mesmo. No movimento que quer abolir a desigualdade entre os sexos não cabe nenhuma prática, convicção ou lei que a sustente.
No projeto político e ético do feminismo cabe, no entanto, a humanidade inteira. A emancipação das mulheres, seu único objetivo, em nenhum caso confronta nenhum coletivo oprimido. Nenhum. Insisto: nenhum. De fato, não somente não confronta como também muitas vezes ali onde as mulheres avançaram mais em sua agenda emancipatória sucede-se também que se registram menos desigualdades socioeconômicas, são sociedades mais pacíficas e são onde existem maiores liberdades e direitos individuais e coletivos e menos discriminação.
Toda reivindicação, teoria ou lei que nos debilite, nos negue ou nos oprima vai nos encontrar em seu caminho. Toda luta contra a injustiça, embora a maioria delas se assentem diretamente no patriarcado ou o tomam como modelo, vai nos ter a seu lado.

