O que o comércio sexual significa para as mulheres negras: um legado a enfrentar

Melina Bassoli
QG Feminista
Published in
5 min readApr 22, 2023

Por: Taina Bien-Aimé, para a Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres (CATW). Original em inglês.

Imagem da Organização Breaking Free

Em seu livro “How the Word Is Passed” (“Como a Palavra é Transmitida”, em tradução livre), Clint Smith conta a história de uma mulher e de como seu “mestre” foi buscar sua irmã à noite em sua cama quando eram meninas. Sua irmã voltou para a cabana antes do amanhecer, atordoada e machucada.

Smith também escreve sobre Julia Woodrich, escravizada na Louisiana em meados do século XIX, cuja mãe teve 15 filhos de 15 homens diferentes. “Toda vez que ela era vendida, ela tinha outro homem”, diz a inscrição em uma parede da Whitney Plantation, que agora é um museu que homenageia as vidas daqueles que viveram e morreram na servidão lá.

“Para entender a escravidão”, disse o guia turístico da plantação a Smith, “temos que entender o que a escravidão significava para as mulheres”.

As mulheres negras estavam entre os ativos mais lucrativos durante a escravidão nos Estados Unidos. Em 1808, quando o comércio transatlântico de escravos foi legalmente encerrado, cerca de um milhão de pessoas escravizadas viviam no país. Cerca de 60 anos depois, quando a escravidão foi encerrada com a Proclamação de Emancipação, a população negra havia crescido para 4,5 milhões de pessoas. Esse crescimento significativo, em parte, deveu-se à continuação do comércio de escravos entre os Estados Unidos, a América Latina e o Caribe, mas também foi resultado direto de estupros, gravidezes forçadas, prostituição e tráfico sexual de mulheres negras.

Esses atos horríveis em particular não pararam com o fim da escravidão nos Estados Unidos; eles estão presentes no comércio sexual de hoje. E para entender o sistema de prostituição, devemos entender o que ele significa para as mulheres negras.

Desde que os primeiros navios trouxeram mulheres negras para as Américas, elas têm sido os principais alvos da exploração sexual. Hoje, enquanto mulheres e meninas negras representam cerca de 6% da população dos EUA, em muitas jurisdições, elas podem representar mais de 50% da população prostituída. Da mesma forma, enquanto suas irmãs indígenas, violadas desde 1492, agora compreendem aproximadamente 1–2% de toda a população dos EUA, elas respondem por 70% das pessoas comercializadas em algumas localidades.

Igualar o sistema de prostituição do século XXI e a escravidão pré-guerra [da secessão dos EUA] é impreciso, mesmo que ambos dependam da mercantilização sistêmica de seres humanos para o lucro dos exploradores e do Estado. Por um lado, a prostituição não parece escravidão a olho nu. O comércio sexual — incluindo clubes de striptease, acompanhantes e pornografia — é muito normalizado em nossas vidas diárias para que possamos ver o abuso e a devastação que inflige às pessoas que são compradas e vendidas nele.

No entanto, como a instituição da escravidão, o comércio sexual é um negócio global multibilionário que contribui para o crescimento econômico das nações. E, como tal, o comércio sexual ganhou aceitação em nossas vidas cotidianas, alternadamente descrito como inevitável, um mal necessário, ou como um empreendimento a ser celebrado. Da mesma forma, tanto para a escravidão quanto para o comércio sexual, a desumanização e a objetificação são pré-requisitos para a compra e consumo sem culpa de seres humanos.

A comparação entre os traumas sexuais infligidos às mulheres negras na escravidão e no comércio sexual também diverge, visto que, neste último, elas parecem caminhar livremente. Essas são as mulheres que a poetisa e ativista dos direitos das mulheres Audre Lorde chamou de “filhas que se alinham na Rua 42”*. Seus exploradores — seja um cafetão, um gerente de bordel ou um parceiro íntimo — não precisam de algemas literais quando nossa indiferença coletiva nos torna cegos para as consequências de coerção e controle bem lubrificados.

“Um dos principais pilares da supremacia branca é o sexismo patriarcal”, diz Charles Blow, colunista do New York Times. Um pilar principal da supremacia masculina, branca ou não, é a prostituição. Por 5.000 anos, o patriarcado metamorfoseou as atrocidades cometidas contra mulheres e meninas, habilmente obscurecendo seus danos e, finalmente, absolvendo-os como benignos.

O caso em questão é o agora difundido termo “trabalho sexual”, um eufemismo para o comércio sexual que mudou perigosamente a narrativa em nossa cultura para mascarar degradação indescritível, assédio sexual e direito masculino ao acesso sexual.

O mantra dominante “trabalho sexual é trabalho” está tão arraigado no ethos atual, que está manipulando jovens adultos em faculdades de todo o país e influenciando nossa grande mídia a higienizar, em vez de desafiar, as realidades brutais da prostituição. Este ambiente atual também tem o efeito colateral devastador de sufocar e descartar aquelas com experiências vividas que desmantelam a fantasia de que o comércio sexual é glamoroso e fortalecedor.

“Quando eu estava ‘na vida’, se alguém me visse no clube ou no pole, suponho que eles poderiam enfeitar o que viram dizendo que eu estava ‘trabalhando’ quando na verdade eu estava com medo pela minha vida toda vez que um comprador de sexo veio atrás de mim”, disse Vednita Carter, uma sobrevivente da prostituição e fundadora da organização Breaking Free [literalmente “Libertando-se”], liderada por sobreviventes. “A prostituição na comunidade negra decorre da escravidão e é baseada no racismo. Mulheres e meninas negras foram ‘prostituídas’ desde que desembarcamos em solo americano, então de forma alguma a prostituição é um ‘trabalho’ e eu lutarei até o fim para garantir que nenhum legislador pense que é”.

A Era do Iluminismo europeu enriqueceu o mundo com ideias revolucionárias de liberdade individual, progresso, tolerância e governo constitucional. Ao mesmo tempo, esses pensadores progressistas desenvolveram justificativas para o colonialismo, a escravidão, a misoginia institucional e a exploração de milhões de seres humanos.

Hoje, quando as agremiações políticas ditas progressistas exigem que candidatos apoiem a descriminalização do comércio sexual em troca de apoio, eles estão tirando uma página desse livro de história. Quando os promotores públicos consideram a compra de sexo como entretenimento baseado nos direitos dos homens, em vez de pagamento por má conduta sexual, eles estão seguindo os passos desse legado sombrio. Quando os movimentos negros de justiça social pedem para legitimar o proxenetismo em troca de um saco de moedas de prata, eles traem suas irmãs como Vednita, apagando histórias dolorosas de violência sexual.

O caminho que devemos abrir para a verdade e a reconciliação não consiste em exigir leis regressivas que condenam os mais vulneráveis entre nós ao comércio sexual. Em vez disso, devemos garantir que os Estados implementem políticas que ofereçam aos que vivem à margem uma chance de sobrevivência sem exploração sexual. O que as mulheres negras se esforçam para passar para a próxima geração é uma herança que celebra a dignidade e a esperança de igualdade, não aquela que continua nos leiloando em mercados de carne renomeados.

* Nota da tradutora: A citação em questão refere-se à seguinte frase de Audre Lorde: “Mulheres pobres e mulheres racializadas sabem que existe uma diferença entre as manifestações da escravidão marital e a prostituição porque são nossas filhas que se alinham na Rua 42”; presente no excelente texto “The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House” (literalmente: “As Ferramentas do Mestre Nunca Destruirão a Casa do Mestre”). A Rua 42 fica na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, e é um local com muita circulação turística e local devido às casas de espetáculos presente na área, além de ser, historicamente, um local de prostituição.

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