Por que a medicina trata as mulheres como homens?

Sabrina Falcão
QG Feminista
Published in
11 min readJun 14, 2020

Tradução do texto original de Anna Moore

Dr Alyson McGregor, Rhode Island Hospital. Foto: Benedict Evans/The Observer

O corpo das mulheres é diferente do dos homens desde o nível celular, mas geralmente os mesmos tratamentos são prescritos para ambos os sexos — em detrimento das mulheres. É a Dra. Alyson McGregor quem dispara o alarme.

No final de seu treinamento em medicina de emergência na Brown University, Rhode Island, Dra. Alyson McGregor foi questionada sobre qual seria sua “especialidade”.

“É esperado que você tenha um nicho, então minha resposta foi: “Bem, eu me interesso pela saúde das mulheres’”, diz McGregor. “A partir daí, as pessoas pensaram: ‘Ah, ela gosta de obstetrícia/ginecologia’.” Assim, nos movimentados turnos do departamento de emergência do Hospital Rhode Island, o maior centro de trauma do estado, a recém-qualificada McGregor se tornou a médica de todos para exames pélvicos, porque esse era o interesse especial dela. “Eu rio disso agora, mas foi quando comecei a perceber que existe essa suposição de que a saúde das mulheres se resume as suas funções reprodutivas. As mulheres eram homens com “peitos e tubas uterinas”. ”

Mas McGregor estava interessada em muito mais do que isso. Por saúde da mulher, ela quis dizer a saúde completa da mulher, cujos cromossomos femininos existem em todas as células e influenciam todas as funções corporais. Ela estava interessada em como essas diferenças — nos hormônios, nos tecidos, nos sistemas e estruturas — afetam todas as doenças e a maneira como elas devem ser tratadas. A saúde cardiovascular foi sua rota nessa especialização.

“Isso foi há cerca de 15 anos, quando as pessoas estavam começando a notar que as mulheres que sofriam ataques cardíacos apresentavam sintomas diferentes dos homens”, diz ela. “Elas descreviam sintomas diferentes e tinham resultados piores, então comecei a perguntar por quê; e se somos diferentes dessa maneira, e quanto aquela outra? Quanto mais me aprofundava, mais percebia o alcance disso. Na medicina, ignoramos as mulheres porque usamos homens como nosso padrão — e isso não serviu bem as mulheres.”

Sex Matters [Sexo Importa, em tradução livre]

McGregor expôs isso em seu novo livro Sex Matters [Sexo Importa, em tradução livre]. O livro é um alerta, um pedido de ação, uma leitura assustadora e fascinante. A mensagem principal é que os corpos das mulheres são diferentes dos homens a partir do nível celular, mas nosso modelo médico é baseado no conhecimento obtido das células masculinas, animais do sexo masculino e humanos do sexo masculino. Dentro disso, há uma riqueza de detalhes perturbadores —das doenças que rotineiramente deixamos de entender nas mulheres, aos medicamentos que funcionam nos homens, e podem ser inúteis, perigosos ou até mortais nos outros 50% da população. Em uma época em que ouvimos falar de “medicina personalizada” e “terapias direcionadas”, é impossível ler este livro sem nos sentirmos surpresos com o fracasso da ciência em considerar tudo isso anteriormente. “Essa é uma reação comum”, diz McGregor. “Eu sempre ouço: ‘Nossa, eu pensei que a medicina estava levando isso em conta!’ ”

Conversamos algumas semanas antes da publicação do livro — embora Sex Matters certamente não vá ter o lançamento planejado. McGregor está trabalhando em longos turnos em seu departamento de emergência, por causa do Covid-19. (O marido dela também é médico — ela twittou fotos dos dois em seus equipamentos de proteção.) Quando ligamos o Skype no dia de folga, pergunto como é a vida agora.

“É um desafio”, diz ela. “Existe a ansiedade de estar em casa e me preocupar com minha família, e também minha família se preocupando conosco no trabalho. E depois estar no trabalho, mas não reconhecer ninguém, porque estamos todos encobertos.” Os casos de Covid em seu hospital, diz McGregor, são “administráveis” e, no geral, o volume de pacientes está baixo. “A mensagem tem sido ‘Fique em casa’”, diz ela. “Embora isso me preocupe também, porque onde estão os ataques cardíacos, as complicações com diálise, as infecções? Também estou vendo pessoas com problemas psiquiátricos subjacentes procurando atendimento, pois as restrições da pandemia aumentaram a ansiedade e a depressão para muitos.”

De fato, os dados do Covid-19 indicam que essa também é uma doença que afeta homens e mulheres de maneira diferente. Embora muitos países, incluindo os EUA e o Reino Unido, estejam demorando a publicar informações específicas sobre sexo, os que foram publicados sugerem que ela pode matar até duas vezes mais homens do que mulheres. No Reino Unido, uma análise de 4.000 casos pelo Office of National Statistics encontrou a mesma proporção, enquanto os dados da New York City Health sugerem que os homens respondem por mais de 61% das mortes por Covid. Diferenças sociais são uma causa possível — na China, por exemplo, muito mais homens são fumantes. Diferenças biológicas são outras. O estrogênio ajuda a estimular o sistema imunológico, e o fato de as mulheres terem dois cromossomos X, que contêm uma alta densidade de genes relacionados ao sistema imunológico, pode ser essencial. (Os homens também foram desproporcionalmente afetados por Sars e Mers.)[1]

“Estou tentando criar uma conscientização para que todos os países comecem a coletar dados do Covid-19 específicos por sexo, para que possamos ter esse conhecimento o quanto antes”, diz McGregor. “Na pandemia de H1N1 [gripe suína], foi apenas quando começamos a analisar as diferenças sexuais que percebemos que as mulheres grávidas eram muito suscetíveis a complicações. Se tivermos as informações, podemos procurar explicações e buscar melhores tratamentos. E ainda não estou vendo isso.”

McGregor acredita que a razão [de deixar as mulheres de fora dos estudos] pode ser rastreada até o início da pesquisa médica organizada, quando foi decidido que mulheres em idade fértil deveriam ser excluídas dos testes — efetivamente ignorando as diferenças sexuais. O motivo era protegê-las, mas para a profissão médica e para a indústria farmacêutica, também tornava o trabalho mais rápido, fácil e barato, retirando variáveis incômodas, como ciclos menstruais e oscilações hormonais. Em Sex Matters, McGregor lista várias maneiras pelas quais os medicamentos de hoje ainda podem falhar com as mulheres como resultado direto. As mulheres metabolizam os medicamentos de maneira diferente (existem várias razões para isso, mas muitas estão ligadas a diferentes hormônios e diferentes níveis de enzimas); portanto, certos medicamentos permanecem no sistema por mais tempo ou caem para níveis perigosamente baixos em determinados pontos do ciclo menstrual. McGregor também mostra como envasadores comuns usados em medicamentos genéricos — que geralmente são testados apenas por duas semanas em um grupo de homens saudáveis — podem alterar a biodisponibilidade (quanto do medicamento atingirá o corpo e funcionará conforme o planejado) nas mulheres em até 24%, e é por isso que ela costuma perguntar às pacientes se elas mudaram recentemente para um genérico.

Um exemplo particularmente assustador é o impacto da medicação no nosso QT — que é o tempo de descanso entre os batimentos cardíacos.[2] O QT de uma mulher já é mais longo que o de um homem (resultado do aumento da testosterona na adolescência) e muitos medicamentos— analgésicos, antidepressivos, anti-histamínicos, antibióticos — causam aumentos incrementais no QT como efeito colateral. Para as mulheres que tomam vários medicamentos (e estatisticamente, é mais provável que as mulheres tomem vários medicamentos), o risco desses aumentos combinados pode variar de simples arritmia a morte súbita cardíaca.

McGregor dá o exemplo de uma paciente, uma mulher de 40 anos cuja dor nas costas resultou em uma espiral comum de medicamentos — analgésicos, comprimidos para dormir, esteroides, remédios para ansiedade e, finalmente, um antibiótico para infecção urinária. Esse coquetel, ela acredita, causou morte súbita cardíaca na paciente, algo que ela diz ser “mais comum do que muitos médicos gostariam de admitir”. Um estudo alemão descobriu que 66% dos pacientes com síndrome do QT longo eram do sexo feminino — e destes, 60% eram relacionados a medicamentos.

“A hidroxicloroquina, a droga que está sendo testada como tratamento para Covid [e popularizada por Donald Trump e seu clone tupiniquim], também tem o efeito colateral de prolongar o intervalo QT”, diz McGregor. “Se for prescrito a uma mulher, devemos medir o intervalo QT primeiro, mas isso nem está em discussão”. De fato, ela está preocupada com o fato de que, na corrida para encontrar uma vacina para o Covid, um retorno aos protocolos de pesquisa padrão (células masculinas, animais do sexo masculinos e nenhuma análise específica por sexo de ensaios em humanos) possa resultar em lacunas perigosas no resultado.

Algumas das áreas abordadas em Sex Matters já estão à vista do público. A British Heart Foundation[3] está no meio de uma campanha de três anos para enfrentar o que chama de “heart attack gender gap” [desiguldade entre os sexos na ocorrência de ataque cardíaco, em tradução livre] — uma mulher do Reino Unido tem 50% mais chances que um homem de receber um diagnóstico inicial errado de ataque cardíaco e, mesmo depois do diagnóstico correto, ser significativamente menos propensa a receber tratamentos que salvam vidas. Um motivo pode ser que os sintomas das mulheres nem sempre se encaixam nos modelos anteriores centrados no homem. Nos homens, a placa [que causa o ataque cardíaco] tende a se acumular, causando ruptura dos vasos sanguíneos. Nas mulheres, é mais provável que a placa corroa gradualmente os vasos sanguíneos, tornando-os mais rígidos e menos flexíveis ao longo do tempo.

Julie Ward é uma enfermeira cardíaca sênior da Fundação Britânica do Coração que trabalhou no grupo supra-partidário da campanha. “O atendimento coronariano foi conduzido por homens”, diz ela. “Tratados por homens, usando pesquisas realizadas por homens. Só agora estamos começando a entender a diferença na fisiologia. Parte de nossa campanha é incentivar mais mulheres do Reino Unido a se inscreverem em ensaios e também incentivar mais mulheres a se tornarem cardiologistas.”

Nossos tratamentos para a dor são outra área em que as mulheres são mal atendidas. Estudos epidemiológicos demonstram claramente que as mulheres correm maior risco de sofrer dores — de enxaquecas a osteomusculares, de SCI [Síndrome do cólon irritável] a STP [Síndrome de tensão pré-menstrual]. A interação entre os hormônios sexuais, neurotransmissores, como dopamina e serotonina, e o sistema nervoso central é uma das principais razões para isso.

Os cromossomos XX das mulheres, que criam respostas imunes agressivas tão eficazes no combate a doenças, também as torna propensas a ativar o corpo contra si próprio (doenças auto-imunes, como lúpus e artrite reumatoide, são muito mais comuns em mulheres). No entanto, as mulheres são mais propensas que os homens a receber um diagnóstico psiquiátrico do que físico (ataque de pânico em vez de ataque cardíaco), mais propensas que os homens a receberem conselhos sobre o estilo de vida, em vez de um raio-x exploratório ao se apresentarem com SCI — e no caso das “condições femininas”, como a endometriose, é altamente provável que elas sejam informadas que a dor que estão sentindo é “normal”. (No Reino Unido, as mulheres demoram em média 7,5 anos para obter um diagnóstico de endometriose — e mesmo assim, desenvolvemos poucos tratamentos eficazes para essa doença debilitante.)

A Dra. Amanda Williams, responsável pelo curso de Psicologia da Saúde Clínica da University College London, concorda que a dor das mulheres é tipicamente minimizada. “Os estudos dos pacientes mostram isso”, diz ela. “As mulheres recebem menos analgésicos. Quando um homem diz que está com muita dor, achamos que ele está com muita dor. Quando uma mulher diz que está com muita dor, achamos que ela está com um pouco de dor, mas que está preocupada com isso.”

Segundo Williams, isso remonta ao darwinismo e à crença em uma grande “cadeia dos seres” [4], que coloca os homens no topo da hierarquia e as mulheres na extremidade inferior. Crenças sobre dor refletiam poder e status. “As pessoas negras sofreram terríveis dificuldades e brutalidade, por isso foi dito que elas eram menos sensíveis à dor, e as mulheres sofriam no parto, o que podia ser bastante doloroso, por isso acreditava-se que elas eram sensíveis demais, propensas à histeria”. Decidiu-se que os homens brancos europeus eram a medida certa.

A Grande Cadeia do Ser — Wikipedia

É um cenário sombrio, mas McGregor está confiante de que está mudando. Atualmente, ela é uma especialista reconhecida em sexo e gênero, em medicina de emergência na Brown (que cobre muito mais do que exames pélvicos) e co-fundou a Sex and Gender Health Collaborative, uma organização nacional que trabalha para integrar o conhecimento sobre sexo e gênero na educação médica e prática clínica. “Foi uma evolução interessante”, diz ela. “Quando comecei a falar sobre isso, ninguém realmente entendeu o que eu estava dizendo ou não viu a importância. A maioria dos médicos é orientada por dados — e agora existem dados exponenciais que mostram como as diferenças sexuais podem ser significativas. Agora vejo uma resposta diferente quando estou falando. Em 2016, o principal financiador de pesquisas nos EUA declarou que o sexo deve ser incluído como uma variável biológica em seu desenho de pesquisa.”

Sex Matters foi escrito para educar e capacitar o resto de nós. “É importante demais para esperar mudanças de cima para baixo”, diz McGregor. “Se você observar as experiências passadas, foram necessários grandes esforços de base para que a saúde reprodutiva das mulheres fosse levada a sério”.

O livro está repleto de conselhos específicos para pacientes do sexo feminino, desde o voluntariado para ensaios médicos até a pesquisa de diferenças sexuais nas prescrições, o registro de efeitos colaterais, a adesão a grupos de apoio a paciente, a manutenção de registros cuidadosos de sintomas e tratamentos, e a indicação de advogados. Ela também pede que as mulheres sejam pacientes mais assertivas. “Quando um médico passar uma receita, pergunte: isso é específico para mim como mulher? Devo tomar uma dose diferente? Terei efeitos colaterais diferentes? Isso afetará meu controle de natalidade? Devo tomar um medicamento diferente em determinados momentos do meu ciclo menstrual? Um médico pode não saber essas respostas — mas a maioria das pessoas que frequenta a faculdade de medicina faz um juramento de aprendizado ao longo da vida. Espero que os médicos digam: ‘Deixe-me pesquisar’.”

Embora McGregor acredite que isso possa ser feito em 10 anos, a escala de mudança necessária parece enorme. “Sim”, ela assente alegremente, “é gigantesco! Eu concordo absolutamente — e não peço desculpas por isso. Cada hipótese é baseada na anterior e na anterior — e, se todas elas foram baseadas no sexo masculino, infelizmente precisamos começar do zero. Mas acho que é uma obrigação moral que temos com metade da população.”

[1] SARS — Síndrome Respiratória Aguda Grave, MERS — Síndrome Respiratória do Oriente Médio

[2] O intervalo QT representa a duração da sístole elétrica ventricular e varia com a frequência cardíaca.

[3] Fundação Britânica do Coração

[4] A scala naturae (“escada da natureza”) ou cadeia dos seres é uma estrutura hierárquica de toda matéria e vida, pensada na filosofia grega antiga e no cristianismo medieval como tendo sido estabelecida por Deus.

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