Por que identidade de gênero é um conceito antifeminista?

Fúria Raiz
QG Feminista
Published in
13 min readAug 26, 2016

Para entender o posicionamento feminista radical no que concerne a identidade de gênero, primeiro é necessário definir o que é gênero e o que é identidade.

Gênero é um conceito que não se aplica apenas à estratificação de mulheres e homens; a palavra gênero significa, essencialmente, uma categorização de um grupo de objetos ou seres a partir de características comuns. Existe gênero literário, gênero biológico (a espécie Homo sapiens, por exemplo, pertence ao gênero Homo), gênero musical, cinematográfico, textual, entre inúmeras outras aplicações.

No que concerne a homens e mulheres, gênero é diferente de sexo. Sexo é o nome dado à nossa anatomia reprodutiva; seres humanos são fêmeas ou machos — inclusive os/as intersexuais. É uma característica inata e imutável: não se “desconstrói” ou se redefine um par de cromossomos e a anatomia proveniente deles; faz parte da materialidade dos corpos, e talvez se não fosse a sociedade patriarcal não seria definidor da experiência pessoal de homens e mulheres e de toda a categoria política de sua classe sexual.

Um dos mecanismos patriarcais mais eficientes é o gênero, pois ele é responsável pela complacência das mulheres em serem definidas como o sexo que está aí para ser oprimido e explorado. A palavra gênero surge não para identificar pessoas lidas enquanto mulheres ou homens na sociedade, mas para atribuir estereótipos às pessoas de acordo com seu sexo biológico. Em todas as suas aplicações, gênero é atribuído pela humanidade; é uma construção social que atribui características enquanto de homem ou de mulher, de comédia ou de drama, de música clássica ou de rock, etc; é a construção social que define que o brinquedo rosa é para meninas e o azul é para meninos.

Uma evidência disso é que a biologia é prioritariamente a mesma independente de onde se está: em qualquer lugar do mundo a sociedade é composta por fêmeas e machos. Sexo biológico é um dado material. Agora as consequências sociais disso — o que é imposto às pessoas a partir do seu sexo biológico, ou seja, o gênero — variam dependendo da cultura local. Na cultura asiática, por exemplo, existe o alongamento do pescoço enquanto estética considerada feminina, de mulher; aqui, essa característica seria encarada com estranheza, pois a construção social ocidental da feminilidade não inclui essa prática.

Gênero é um mecanismo patriarcal que faz com que essas construções sociais de feminilidade sejam consideradas naturais ou inatas, dificultando a revolta das mulheres: como se luta contra o que supostamente é de sua própria natureza? Ou seja, se quisermos explorar as capacidades reprodutivas, sexuais e laborais das mulheres, façamos com que elas acreditem que seu destino é a maternidade e a heterossexualidade; que o trabalho doméstico e de cuidado é essencialmente feminino; que seu valor enquanto mulher é definido pela atração que exerce na população masculina; que furar a orelha de um bebê recém-nascido é aceitável se ele for do sexo feminino; que a mulheridade é necessariamente complacente, cuidadora, altruísta, condescendente, maternal.

O movimento de liberação das mulheres, inclusive, foi desde o início pautado também na contestação dessa ideia, de que essas características consideradas “de mulher” não constituíam uma essência feminina, e sim eram atribuídas socialmente para manutenção do sistema patriarcal. As feministas de segunda onda destrincharam a feminilidade em todos os seus aspectos, gerando livros como Beleza e Misoginia, da Sheila Jeffreys, Woman Hating, da Andrea Dworkin, Mito do amor materno, da Elisabeth Badinter, entre inúmeros outros, pois perceberam que a contestação do conceito de essência feminina era crucial para a libertação das mulheres, para que todas as mulheres se entendessem enquanto pessoas passíveis de possuírem quaisquer características, e não biologicamente destinadas a uma função na sociedade.

Dando continuidade, o que é identidade?

Identidade pode ser definida de forma simples como conjunto de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-la. Um exemplo claro da aplicação desse conceito é a Identidade enquanto documento, o RG, pelo qual no Brasil é possível identificar uma pessoa, seu sexo, sua filiação, sua nacionalidade, entre outros. A identidade cultural, por exemplo, se constitui nas tradições, na cultura, na religião, na música, na culinária, no modo de vestir, de falar, entre outros, que representam os hábitos de um povo. Num nível individual, o conceito de identidade também é aplicado para referir-se às características emocionais e sociais de uma pessoa.

Porém, a posição das pessoas na sociedade não é definida pela sua identificação com esse ou aquele grupo; uma pessoa branca se identificar (sentir compatibilidade) com a cultura negra não fará com que ela sofra racismo ou entenda ao que as pessoas negras estão sujeitas na sociedade a partir de sua raça. Raça, sexo e classe não são características identitárias, pois não se definem pela compatibilidade sentida com o grupo oprimido, e sim pelo encaixe compulsório das pessoas nessas categorias. Por esse motivo, não se pauta política em identidade, pois não se pauta política nos sentimentos individuais dessa ou daquela pessoa, e sim no que concerne materialmente à classe que ela pertence.

A política pautada no sentimento de pertencimento e não na realidade material de classe é chamada de Política Identitária. Em essência, ela não seria de todo prejudicial; sua aplicação é que é errônea, pois a forma como se entende uma identidade (por exemplo, a identidade lésbica) é carregada de inerência, atribuindo a essa ou aquela posição social o caráter de imutabilidade, e não de posição social atribuída por estruturas de poder. E, embora reafirmar a identidade lésbica, por exemplo, tenha um caráter político inegável na sociedade atual, se esquece que esse caráter político se dá pelo fato de que a heterossexualidade é compulsória, e não por uma inerência da sexualidade estratificada. Ao se reduzir a política feminista a reafirmar essas categorias ao invés de questionar a construção social delas enquanto demarcadoras de posições sociais, perde-se a base do nosso questionamento inicial: a estrutura de poder que coloca as pessoas nessa ou naquela classe por serem mulheres, ou pela sua raça, é que é o problema.

Dadas essas definições: o que é identidade de gênero?

Identidade de gênero é a expressão utilizada para definir a forma como cada pessoa se lê e identifica socialmente no que diz respeito ao gênero (feminino ou masculino), independente de sua biologia (fêmea ou macho). A princípio, isso não parece um problema, afinal, é pauta feminista que se entenda que o sexo biológico não define personalidade, gostos e ações, e por isso as características entendidas enquanto inatas da mulheridade não o são. Ou seja: que feminilidade é uma construção patriarcal. Mas o conceito de identidade de gênero reivindica o direito de pessoas, independente do seu sexo, se reivindicarem como pertencentes ao outro gênero, ao invés de questionar a existência do gênero em si. Ignora que gênero não é algo que se “é”, é uma imposição patriarcal. Isso evolui cada vez mais para a criação de novos e novos gêneros, pois as possibilidades de identificação pessoal de 7 bilhões de pessoas são praticamente infinitas.

Essa concepção advoga que gênero seria um espectro, alongando um espaço entre a construção social do gênero masculino e a do gênero feminino para abrigar novas identidades, as chamadas não-binárias. Assim, ao invés de questionar a existência das categorias, criam-se novas categorias, e dividem-se prioritariamente todas as pessoas em dois grupos: pessoas cisgêneras e pessoas transgêneras. Por definição, transgênero seria “alguém que tem uma identidade de gênero diferente daquela esperada pela sociedade em função do seu sexo biológico ou do sexo que foi atribuído a esta pessoa em seu nascimento”, e cisgênera seria a pessoa cuja “identidade de gênero seria “correspondente” ao esperado pela nossa cultura. Se nasce no sexo biológico masculino, se identifica no gênero masculino (homem cis). Se nasce no sexo biológico feminino, se identifica no gênero feminino (mulher cis).”

O problema não está, como muitos opositores da teoria radical querem que se acredite, especificamente no conceito de transgeneridade enquanto não conformidade com a imposição social do gênero, e por consequência na existência de pessoas que se reivindicam enquanto transgêneras. A não conformidade com o gênero feminino é pauta feminista. A questão que torna a ideologia de gênero incompatível com a teoria e prática feministas é a defesa de que a não-conformidade se dá pela existência de outras identidades de gênero com as quais se identificar, tanto femininas ou masculinas quanto as chamadas não-binárias, e não pelo fato de o gênero ser uma imposição social patriarcal que precisa ser abolida. A ideologia de gênero reduz um mecanismo político de dominação a um problema causado por incompatibilidades pessoais de cada um.

O conceito de transgeneridade como é colocado só pode existir em oposição ao conceito de cisgeneridade, e o conceito de cisgeneridade é antifeminista per se. A afirmação de que existem mulheres cuja natureza é compatível com o que é entendido por essência feminina, em termos do ativismo trans, mulheres cis, serve ao patriarcado. Não é possível ao mesmo tempo rejeitar esse estereótipo e reivindicá-lo. O conceito de identidade de gênero se baseia numa suposta essência feminina para existir, essência essa que é justificativa para que pessoas do sexo masculino se identifiquem com o gênero feminino: elas não teriam escolha, seria parte de quem elas são; essência essa que é uma construção social patriarcal cuja existência deveria ser questionada e não reafirmada pela militância feminista.

Não bastasse a nocividade desse conceito por si só, a ideologia de gênero dá margem para a criação de outros novos conceitos. A opressão patriarcal, por exemplo, nessa ideologia, se expressaria também a partir dos chamados binarismo e cissexismo. O cissexismo seria, primeiramente, a “desconsideração da existência das pessoas trans* na sociedade”, e o binarismo seria a noção de que existem apenas dois gêneros e que as pessoas devem necessariamente se encaixar em algum deles, ou seja, a desconsideração das chamadas identidades não-binárias. Esses dois conceitos são baseados em falácias.

A teoria feminista não reconhece a existência de pessoas cis. Na verdade, consideramos que as pessoas que não se identificam com o que é imposto a elas por uma cultura patriarcal são simplesmente… todas as pessoas da sociedade, pois esses estereótipos são sociais, são mecanismos patriarcais, e não uma característica pessoal imutável, inata ou inerente. A divergência entre o feminismo e o ativismo trans está em concluir que, por uma pessoa não se identificar com o que se espera do que é designado a partir de seu sexo, ela seria do outro gênero ou de um novo gênero. É ilógico pensar que o feminismo é essencialista ou que defende que as pessoas continuem se conformando com os estereótipos atribuídos ao seu sexo simplesmente porque é justamente pela abolição desses estereótipos que ele se propõe a lutar.

E gênero não é um binário. A feminilidade e a masculinidade não estão em pólos opostos; uma está acima da outra. A masculinidade não existe sem a feminilidade para dominar, e a feminilidade não existe sem a masculinidade para se submeter. Por isso mesmo que não é possível que se reinvente os gêneros masculino e feminino sem manter essa estrutura hierárquica: porque gênero por si só é uma hierarquia.

O cissexismo e o binarismo comporiam uma opressão que o ativismo trans nomeia como transfobia. Opressão não existe sem um opressor, e nesse caso as opressoras seriam as chamadas pessoas cisgêneras. Assim, isso relega todas as mulheres que não se reivindicam enquanto transgêneras à categoria de cisgêneras, e, portanto, opressoras de pessoas transgêneras. Para piorar, seriam opressoras pelo fato de supostamente se identificarem com a mulheridade, a essência que foi criada e imposta para as oprimir e explorar. Atribuir a um grupo oprimido a condição de opressor pelos mesmos motivos que o oprimem é extremamente violento.

Existe alguém nesse mundo que seja “cisgênero”? Existe alguém que se identifique com todos aspectos da feminilidade ou da masculinidade? E no que diz respeito à luta feminista, a defesa de que uma pessoa do sexo feminino que não se identifica com a feminilidade não é uma mulher, mas sim um homem ou uma pessoa não-binária, não é justamente aquilo que se quer combater? Existe alguma forma de explicar a transgeneridade sem recair em estereótipos característicos do gênero que, lembrando, é um mecanismo patriarcal?

O ativismo trans respondeu a essa pergunta dizendo que identidade de gênero seria diferente de expressão de gênero, ou seja, que uma pessoa do sexo masculino não precisa performar feminilidade para reivindicar-se mulher. Mas então qual seria o critério para definir uma identidade de gênero? Se a identidade de gênero de uma pessoa não necessariamente exige que ela performe feminilidade ou masculinidade, no que ela se baseia? O ativismo trans responde novamente: a auto-identificação. Se diz que se sente mulher, é mulher e ponto, independente de como a pessoa é lida pela sociedade. Aliando-se isso à liberdade que o ativismo trans reivindica de inventar uma infinita quantidade de novos gêneros, forma-se o suprassumo da política identitária, lutando pelo direito de cada um se afirmar de acordo com uma categoria política partindo unicamente do que se sente, ou do que se afirma sentir. Lutando ainda para que todo um movimento político se baseie nisso para existir e reivindicar suas pautas.

Não bastasse a ineficácia desse tipo de política, o ativismo trans foi além: exige que pessoas que se identifiquem com o que se entende por gênero feminino são mulheres e devem participar e pautar a luta feminista. Pressupõe-se, assim, que sua posição na sociedade é definida pela sua identidade, por como você se sente ou diz sentir, e não pelo que lhe foi imposto — desse raciocínio, novamente, subentende-se que existe uma identidade correspondente às pessoas que se encontram numa classe oprimida, identidade essa que as colocou ali, o que é culpabilizador, imaterial e incoerente.

E quando se pergunta o que exatamente é esse ser mulher, respondem: se sentir mulher. Qualquer outra concepção de mulheridade é considerada transfóbica. Dessa forma, retira-se a autonomia de pessoas do sexo feminino de definirem sua própria natureza, suas pautas, suas lutas. Essas mulheres são escrachadas com a conivência dos movimentos de esquerda, inclusive partidários, enquanto pessoas que violentam, detestam, desejam a morte de pessoas transgêneras por questionar um conceito antifeminista. O nome disso é backlash.

A incorporação do conceito de identidade de gênero ao movimento feminista fez com que se perdesse a definição do que é uma mulher — pois definir mulher como alguém que se identifica como mulher não é definir, esse significado é completamente vazio e circular na medida que utiliza a própria palavra “mulher” para definir o que é uma mulher. Esvaziar a categorização do que é uma mulher é esvaziar a luta feminista, pois não há como lutar pelos direitos de um grupo se esse grupo não está definido. Hoje, vê-se mulheres recém chegadas ao feminismo liberal da internet e da mídia dizerem que feminismo é a luta contra todas as opressões, que mulher é um conceito ainda indefinido, entre outros absurdos — pois é considerado opressor centralizar uma luta apenas em pessoas do sexo feminino.

O movimento trans que se auto-nomeia transfeminismo defende que o feminismo precisa ser desgenitalizado, ignorando séculos de opressão patriarcal baseada em sexo biológico, e colocando como se questionar a existência do gênero fosse se importar com os genitais dessa ou daquela pessoa, e não considerar a realidade material de que a classe sexual das mulheres é oprimida e explorada pelas suas potenciais capacidades reprodutivas. A lesbianidade, por si só, se torna transfóbica a partir do momento em que mulheres que resistem arduamente à heterossexualidade compulsória se recusam a considerar lésbica qualquer pessoa do sexo masculino.

A esquerda agora luta pela aprovação de leis que legitimam uma prática que homens usam há tempos: entrar em espaços exclusivamente femininos para espionar e estuprar mulheres. Ignora que o direito a esses espaços, que não se resumem a banheiros mas também a abrigos para vítimas de violência, foi duramente conquistado por mulheres feministas, e não um fato dado pela sociedade patriarcal. O acesso masculino aos espaços foi relativizado de tal forma que basta que se digam do gênero feminino. Se o banheiro masculino é uma zona perigosa para pessoas abertamente transexuais, então que ocupem o banheiro das mulheres, as que sempre são sacrificadas pelo bem maior, mesmo que isso esteja sendo usado por homens para abusar e estuprar com a conivência da lei. Quem se importa com opressoras cisgêneras, não é mesmo? As consequências para a luta das mulheres são incontáveis.

Quando se entende o gênero enquanto mecanismo patriarcal utilizado para socializar mulheres de acordo com a feminilidade, estereótipo esse que serve à manutenção do patriarcado, a saída lógica é desmantelar a categorização das pessoas a partir do seu sexo. Em palavras simples, logo que se conhece o feminismo, a primeira coisa que se aprende é que não existe objetos ou comportamentos de homem ou de mulher; que isso é uma construção social imposta. As feministas que se aprofundaram nessa questão foram além e disseram que não só não existem objetos (brinquedos, roupas, etc) específicos de cada sexo, também os aspectos de personalidade atribuídos aos sexos são falaciosos, ou seja: emotividade, complacência, condescendência, passividade, entre outros, não são características definidas pelo nosso sexo biológico, e se assim parece é porque as pessoas do sexo feminino foram socializadas para se comportarem dessa forma principalmente por acreditarem que é assim que é.

É disso que feministas radicais estão falando quando reivindicam a abolição do gênero: que nada seja imposto a essa ou aquela pessoa a partir do seu sexo.

“Todas as fêmeas são coagidas à transição para a noção patriarcal do que é ser mulher (e não fêmea). Toda mulher lida como mulher é trans.

O sistema endócrino masculino parece produzir as características físicas da masculinidade, mas, por alguma razão, o sistema endócrino feminino não produz características femininas, estas são forjadas e forçadas pelo patriarcado.

Quando machos entram na puberdade, eles começam a ficar fisicamente completos e caso não façam nenhuma alteração (como deixar de fazer a barba, por exemplo) não são visto como menos homens, apenas como um homem diferente dos outros. Exótico, mas ainda masculino.

Fêmeas parecem entrar numa zona de desastre ao início da puberdade, tendo que passar por uma série de implicações artificais para caber dentro do conceito de feminilidade, como depilação, sobrancelha, adornar as unhas, pintar os cabelos, dietas excessivas etc.

A feminilidade, ao contrário da masculinidade, tem que ser criada e mantida. A feminilidade, ao contrário da masculinidade, não existe em ambientes onde há sujeira, suor, gordura, corpos em estado natural.

A masculinidade, por sua vez, existe desde uma trilha de terra com corpos sujos de lama quanto dentro de um terno italiano, e permite que os homens sejam homens em qualquer espectro e qualquer situação — não os limita.”

Autoria Desconhecida

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