O estupro muito além das estatísticas

Projeto Sobreviventes

Maya Falks
QG Feminista
5 min readApr 15, 2018

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Existem diversos fatores que levam o crime de estupro a ser, na teoria, o crime mais repudiado que existe e, na prática, o mais subnotificado e o menos punido de todos. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) — órgão base das estatísticas aqui apresentadas — estima-se que somente aproximadamente 10% dos casos de estupro são efetivamente denunciados e menos de 2% geram de fato uma condenação.

Os fatores que levam à subnotificação variam muito conforme a situação e condição da vítima, mas uma das principais razões dessa subnotificação é o fato de 70% das vítimas serem crianças e adolescentes e, entre elas, mais de 50% são vítimas de parentes ou amigos da família, sendo que a maioria dos crimes acontece dentro de casa mesmo entre as vítimas adultas, chegando a 70% do total de casos notificados. Entre mulheres adultas a maioria dos agressores são os próprios parceiros, o que dificulta o acolhimento da vítima e a realização da denúncia.

O estigma social, o medo de represálias, o julgamento público e a forma de tratamento destinado às vítimas nas delegacias e no IML também são fatores que pesam na subnotificação, conforme defende a Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno. “Pesquisas de vitimização produzidas no Brasil e no mundo indicam que os principais motivos apontados pelas vítimas para não reportar o crime às instituições policiais são o medo de sofrer represálias e a crença que a polícia não poderia fazer nada ou não se empenharia no caso” destacou ela em entrevista à revista Carta Capital em novembro de 2016.

Ao contrário do que defende o senso comum, não é o comportamento da vítima, sua vestimenta, os hábitos ou os lugares que ela frequenta que efetivamente resultam no estupro. Segundos os pesquisadores do IPEA, Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho e Helder Ferreira, o estupro vai muito além de um crime de ordem sexual: trata-se de um crime de dominação de gênero.

O crime, em suma, é o reflexo de uma cultura patriarcal extremamente machista que incentiva a violência entre meninos e a submissão entre meninas. Prova disso é que somente 3,3% dos estupros são praticados por mulheres, enquanto estas respondem por 89% das vítimas. Entre os homens, a maioria das vítimas é criança, homossexual ou apenado; ou seja, todos em posição de vulnerabilidade social.

O estupro é também uma ferramenta de dominação social. No Brasil a maioria das vítimas se dividem entre as crianças, as mulheres indígenas, as mulheres negras e uma predominância nas classes mais baixas, pessoas que pela condição étnica, etária e financeira já estavam em posição de vulnerabilidade, situação que facilita não apenas o cometimento do crime, mas também sua impunidade.

Arte de Agatha Damião

A BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA SEXUAL

Embora os índices de estupros coletivos venham aumentando a cada ano, foi em maio de 2016 que essa violência ficou pela primeira vez sob os holofotes quando uma adolescente de 16 anos foi estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro. Embora o crime tenha se tornado público porque os próprios agressores postaram vídeos da ação na internet, o fato de a menina estar em uma favela, saindo de um baile funk e ter se tornado mãe aos 13 anos foi o bastante para que, mesmo com provas, nem o delegado do caso estivesse disposto a punir os 33 estupradores.

O caso virou uma grande polêmica; a vítima foi humilhada diversas vezes tanto na delegacia quanto na imprensa e nas redes sociais, sua vida foi inteira vasculhada e ela enfrentou um julgamento público que não atingiu nenhum dos seus 33 estupradores.

O julgamento público contra vítimas de estupro é extramente comum. Entre os casos que chegam a ser amplamente noticiados, em geral a única identidade revelada é a da vítima e somente ela tem sua vida exposta. Como aconteceu com a ativista Clara Averbuck, estuprada por um motorista do Uber esse ano. Após a denúncia, Clara foi fortemente atacada nas redes sociais enquanto o motorista denunciado recebeu uma ampla rede de apoio na busca por um novo emprego, uma vez que a denúncia resultou no seu desligamento da empresa de transporte.

Casos como o da adolescente e o da ativista são extremamente comuns e contribuem fortemente para a impunidade, já que a vítima encontra no seu próprio feed das redes sociais motivos o bastante para não denunciar.

A banalização vai ainda mais além. “Piadas” sobre estupro são comuns na mídia tradicional e formadores de opinião debocham da violência sem o menor pudor a ponto de um famoso ator pornográfico declarar em rede nacional que havia estuprado uma mulher e asfixiado até seu desmaio. O caso não apenas não resultou em nenhum tipo de punição ao ator como ele venceu em primeira instância um processo contra uma ex-ministra que comentou o caso em uma rede social — vindo a perder na segunda.

O caso do ator em questão não é o único e tem sido cada dia mais frequente. Não há qualquer pudor em nenhum meio para o uso do estupro como uma ferramenta de humilhação e silenciamento, tornando comum para mulheres ativistas de qualquer causa receber ameaças de estupro feitas com a mesma naturalidade como se fosse mais um diálogo qualquer, inclusive em situações bastante públicas como aconteceu com a Deputada Federal Maria do Rosário. O autor da frase “só não te estupro porque você não merece” deixou claro que existem mulheres — ao seu gosto — que ele estupraria. Atualmente o referido autor está em segundo lugar nas pesquisas para a Presidência da República em 2018.

Arte de Ágatha Damião

11 MINUTOS

Mesmo com a subnotificação, somente entre os casos denunciados há um registro de 5 estupros por hora, o que representa um estupro a cada 11 minutos. Segundo especialistas em segurança pública, o mais provável é que aconteça um estupro por minuto, em especial se considerando as alterações do Código Penal realizadas no ano de 2009 em que não é mais considerado estupro somente atos com conjunção carnal — ou seja, penetração.

Essa alteração tornou estupro todo e qualquer ato libidinoso que cause constrangimento à vítima. Isso significa que a “encoxada” no metrô é considerada estupro por lei. Em tese os homens que ejaculam sobre mulheres no transporte público também deveriam ser considerados estupradores, mas infelizmente as decisões judiciais mais recentes andaram na contramão do Código Penal.

É importante ressaltar que os alarmantes números dos estupros no Brasil — mesmo que eles representem somente 10% dos crimes efetivamente praticados — envolvem predominantemente casos de estupro com penetração e/ou violência extrema, uma vez que casos que poderiam ser registrados como estupro pela mudança da lei não o são por diversos fatores que incluem medo de exposição, certeza da impunidade e sensação de culpa por parte da vítima.

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Maya Falks
QG Feminista

Escritora, publicitária, jornalista e caçadora de nuvens.