Prostituição na pandemia

Mais precariedade, mais insegurança e mais violência

Fêmea Brava
QG Feminista
8 min readMar 25, 2021

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Matéria publicada originalmente em 05 de fevereiro de 2021, no RTVE.es. Texto por Ebbaba Hameidal, aqui. Tradução Fêmea Brava. As marcações em negrito seguem as da publicação original.

Imagem: Fêmea Brava

Traduzi esse texto em busca de alguma matéria que tratasse com responsabilidade — e não com glamurização — a vida das mulheres em situação de prostituição durante a pandemia de coronavírus. Embora pareça óbvio que essas mulheres estejam profundamente afetadas por essa realidade, as matérias que encontrava pareciam tratar como “escolhas” a permanência dessas mulheres na efetivação dessas práticas. Este tipo de discurso é cada dia mais inaceitável. É nossa responsabilidade tratar a história e a vida dessas mulheres com um mínimo de dignidade. Prostituição não é escolha, é exploração sexual.

Se acendem as primeiras luzes enquanto o sol se põe e a noite surge, é preciso aproveitar a tarde antes do toque de recolher em Madrid. “De manhã mando currículos e depois tenho que vir aqui para ver se consigo comer”, diz Fátima, uma das dezenas de prostitutas que vão para a unidade móvel dos Médicos do Mundo, que todas as semanas vão ao parque industrial de Marconi para distribuir kits higiênico e fazer um acompanhamento a mulheres em situação de prostituição.

Máscaras, gel hidroalcoólico, preservativos, lubrificantes e compressas. Eles entregam o material necessário para essas mulheres, que viram uma situação por si só muito difícil se complicar ainda mais com a pandemia. Elas não encontraram nenhuma alternativa à prostituição. Fátima já completou 50 anos e em setembro voltou a se prostituir, após perder o emprego. “Já fazia seis anos que trabalhava com uma senhora adorável, estava muito feliz e não me faltava nada. Ela foi infectada e morreu de coronavírus. Eu não estava registrada, por isso não pude alegar desemprego. Tive que me jogar na rua”, disse, indignada.

A Espanha é um dos feudos da prostituição na Europa e o terceiro país do mundo onde é mais consumida. Um negócio que movimenta 18 bilhões de euros por ano.

Fátima recolhe seu kit e pergunta aos Médicos do Mundo se há alguma notícia sobre o Ingreso Mínimo Vital (algo similar ao nosso programa Renda Mínima) ou qualquer outro tipo de auxílio. “Tenho que sustentar minha filha que está estudando na universidade e está indo muito bem”, diz, orgulhosa. “É por causa dela”, se justifica. “Eu me pergunto por que eu?”, continua seu relato: “Todas as noites chego em casa chorando e não posso falar nada”. Embora exista o risco de reinfecção, Fátima não tem medo de infectar a filha porque a perda do emprego coincidiu com sua contaminação. Ela é diabética e passou dois meses tentando superar o coronavírus.

Roberta, Paola, Jennifer ou Vanessa não podem evitar o vírus, nem a prostituição: “A prevenção é incompatível com o que fazemos aqui”. Economicamente asfixiadas, são obrigadas a continuar atendendo a uma demanda que não diminui com a pandemia, mas sim com os toques de recolher. Suas condições de vida tem piorado e a precariedade extrema é o que mais as ameaça. Elas não tiveram acesso aos auxílios desde o início, nem pararam de enfrentar o pagamento do aluguel ou de suas dívidas.

Existem nomes que escondem histórias muito mais invisíveis, nestes tempos em que vivem no limite. Silvia está prestes a dar à luz. Todas as tardes ela vai a um parque industrial em Barcelona, precisa se prostituir para arrecadar o máximo que puder antes de seu bebê nascer. “É uma menina, eu teria preferido um menino porque eles sofrem menos”, confessa. Sua expressão se mistura entre a ilusão do que está por vir e o desespero pelo contexto onde está inserida. “Eles pagam mais às mulheres grávidas”, explica. Ela se cansa muito e teme o contágio.

“Esta é a primeira vez que distribuímos comida”

“Recolhemos toda a documentação necessária para solicitar o Ingreso Mínimo Vital, ia sair um regulamento especial pelo qual as ONGs poderiam ajudar a solicitar o auxílio às mulheres com quem trabalhamos há anos”, assegura à RTVE.es Begoña Pablos Criado, técnica do Projeto Prostituição dos Médicos do Mundo. “Com as consequências da pandemia, é a primeira vez que distribuímos comida”, afirma, para destacar a situação de precariedade, vulnerabilidade e invisibilidade que sofrem estas mulheres.

“A maioria tem filhos, familiares em seus países que dependem delas, e muitas perderam o emprego com a pandemia”, relata Pablos. No total, em toda a Espanha, eles atenderam 8.234 pessoas desde 2020, das quais 723 apresentaram sinais claros de tráfico.

“Estamos de mãos atadas. A pandemia era uma oportunidade para que nos dessem auxílio e com certeza muitas colegas teriam deixado [a prostituição]”, denuncia ‘Happy’. Ela é uma das mais jovens, tem 23 anos e é nigeriana. Ela quer ser cabeleireira, tem cinco irmãs e quando saiu do seu país prometeu que sustentaria a mãe — “meu pai morreu e quero ajudá-las a estudar”. Ela esconde de sua família que se dedica à prostituição. “Há dois meses não pagava o aluguel. Não concordo em vender meu corpo, mas preciso do dinheiro para viver”, afirma.

É fácil entrar, mas é muito difícil sair

“Não coloque camisinha para mim, eu quero sair [da prostituição]”, interrompe Jessica durante a distribuição noturna dos Médicos do Mundo. “Eu era ajudante de cozinha e antes também trabalhei na limpeza de uma residência”, explica a nigeriana de 29 anos. “Mãe, vou para encontrar minha vida”, disse ela à mãe um dia, quando tinha 17 anos. Demorou quase três anos para chegar à Espanha, antes passou uma temporada na Líbia e outra no Marrocos.

Tive sorte com os papéis, mas não com o trabalho”, conta ela. A jovem sofre de uma deficiência e confessa: “Nunca fiz isso na porra da minha vida. Quando perdi meu emprego em 2018 uma amiga me trouxe aqui e agora eu só quero sair”. Nos últimos meses, ela fez quatro entrevistas de emprego e às vezes pensa que este não é seu destino final. “Sinto muito nojo e o vírus já não me assusta”, diz. Ela se preocupa com outras doenças mais graves e, acima de tudo, com a frustração que pesa mais a cada dia.

A pandemia também causou uma queda nos preços. “De cinco a 20 euros”, garante Fátima. “Ao competir com tantas meninas eu, que sou a mais velha, às vezes aceito por dez e por 15”. Especialistas denunciam que não apenas os preços caíram, mas que tem-se aceitado práticas mais arriscadas, o que representa um risco muito elevado para a saúde em tempos de Covid.

Denunciam que sofrem mais violência por parte de cafetões e clientes. “Eles sabem que precisamos do dinheiro”, lamenta ‘Happy’. Embora ela rejeite certas práticas agressivas, nem todos respeitam sua vontade. “Corremos riscos sempre que entramos em um carro com um estranho”, confirma a jovem.

E apesar do fato de que a crise causada pela pandemia fez com que algumas mulheres voltassem à prostituição ou caíssem nela pela primeira vez, outras a abandonaram por medo do contágio. “Outros anos, três ou quatro saíram da prostituição e esse ano contamos cerca de 15 mulheres”, asseguram os Médicos do Mundo. “Elas colocam a própria vida em risco, mas não a de suas famílias”, explica Pablos. Querem evitar levar a doença para casa. “Os homens que usam a prostituição sabem que elas não têm mais renda e se aproveitam disso”, e acrescenta: “Trabalho com elas há muitos anos e minha experiência me diz que 90% quer sair. Querem um trabalho digno e isso, elas próprias, consideram indigno”, lamenta. O problema é que ninguém as escuta, afirma.

Pisos*, uma armadilha mortal para contágios

“Os pisos são a armadilha mortal”, alerta, para comparar a situação da prostituição na rua com a dos apartamentos. Em Madrid, existem muitos andares onde é exercida. Lá a fonte de contágio é muito alta, já que se trata de um local fechado por onde podem passar cerca de vinte pessoas por dia. “É muito difícil trabalhar nos apartamentos porque sempre tem o cafetão por perto”, denuncia.

A Polícia Nacional tem o telefone 900 10 50 90 e o email trata@policia.es, para informar ou denunciar um eventual crime de tráfico de seres humanos. No mês passado, eles abriram mais de onze investigações sobre possíveis redes. A maioria das mulheres em situação de prostituição não tem acesso ao Sistema Público de Saúde.

O uso do aplicativo Iris disparou, por meio do qual elas podem receber suporte por telefone em mais de dez idiomas. Muitas demandaram ajuda psicológica das diferentes entidades.

“Os jovens são sempre mais agressivos”, denuncia Roberta, que se afirma trans, tem 33 anos e veio do Peru, onde deixou a mãe com um irmão deficiente. Se encontra ilegalmente na Espanha e só pratica a prostituição quando precisa do dinheiro. “Até agora, em fevereiro, ainda não recebi nada, com o toque de recolher”. Todos os dias, vai ao parque industrial de Marconi das 17h às 22h. “Me oferecem 50 euros sem preservativo e não aceito”, explica. Entende que isso é temporário: “Tenho que ter saúde para quando encontrar algo melhor. Não é um trabalho para mim, só quero sustentar meu dia a dia, pagar o aluguel e comer”. “Somos seres humanos, estamos na rua porque não temos outras oportunidades”, diz, para depois confessar que se sente em abandono completo.

Ilhas Baleares: um exemplo de intervenção da administração pública

A exemplo das ONGs, as administrações públicas também têm constatado que a Covid colocou em evidência a vulnerabilidade das mulheres que estão em situação de prostituição. “Por parte do Governo das Baleares, se reconheceu uma Renda Mínima de Inserção Social que varia o seu valor em função de terem filhos ou não, enquanto por parte dos Conselhos Insulares se encarregaram de lhes oferecer recursos habitacionais”, assegura à RTVE.es a diretora do Institut Balear de la Dona, María Durán Febrer.

Duran Febrer também foi vice-presidenta da Associação Themis de Mulheres Juristas e corredatora da primeira Proposta de Lei Integral contra a Violência de Gênero aprovada na Espanha em 2004. “A pandemia destacou o que deve ser uma oportunidade para que as administrações públicas intervenham, uma vez que conhecemos essa realidade palpável”, afirma.

“Nosso último estudo confirma que mais de 75% teriam desistido se tivessem encontrado um trabalho comum”, explica ela. Por isso, o governo regional propôs resgatar cerca de 150 mulheres, por meio de um plano habitacional, com ajuda psicológica e jurídica para que possam legalizar sua situação. “Queremos que elas nunca voltem à prostituição se não querem e que encontrem um trabalho normalizado”, diz ela.

Nas Ilhas Baleares, cerca de 90 mil homens procuram a prostituição e, em 2020, foram contabilizadas cerca de 2.350 mulheres nessa situação. O fato mais alarmante, considera Duran Febrer, é que “pelo menos 39% dos homens admitem já ter procurado alguma vez por prostituição”. Os perfis variam dos mais novos aos mais velhos. Além disso, acrescenta-se ser possível verificar que entre 30% e 50% das mulheres prostituídas nas Ilhas Baleares são vítimas da violência do tráfico.

Nas ilhas, como no resto do país, a procura diminuiu porque a maioria dos clubes e estabelecimentos foram fechados.

A Organização das Nações Unidas advertiu que “milhões de mulheres, crianças e homens em todo o mundo estão sem trabalho, sem escolaridade e sem apoio social na crise contínua da Covid-19, que os deixa em maior risco de tráfico de pessoas”, revelou esta semana (05 de fevereiro/ 2021) em seu Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas das Nações Unidas. Mais de 90% são mulheres e meninas.

“Milhões de mulheres, crianças e homens em todo o mundo estão sem trabalho, sem escolaridade e sem apoio social na crise contínua da Covid-19, que os deixa em maior risco de tráfico de pessoas.”

*Nota da tradução: Pisos parecem se referir a apartamentos usados para a prática de prostituição.

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Fêmea Brava
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Natalia Kleinsorgen | feminista autônoma, abolicionista de gênero, jornalista, antipunitivista e anticárcere