O que é Patriarcado?

Texto de Christine Delphy para o Dicionário Crítico do feminismo

Furiosa
QG Feminista
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9 min readMay 25, 2018

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DELPHY, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, H. et al (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. Editora UNESP : São Paulo, 2009, p. 173–178.

“Patriarcado” é uma palavra muito antiga, que mudou de sentido por volta do fim do século XIX, com as primeiras teorias dos “estágios” da evolução das sociedades humanas, depois novamente no fi m do século XX, com a “segunda onda” do feminismo surgida nos anos 70 no Ocidente.

Nessa nova acepção feminista, o patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres. Essas expressões, contemporâneas dos anos 70, referem-se ao mesmo objeto, designado na época precedente pelas expressões “subordinação” ou “sujeição” das mulheres, ou ainda “condição feminina”.

Antes do século XIX e da aparição de um sentido ligado à organização global da sociedade, o patriarcado e os patriarcas designavam os dignitários da Igreja, seguindo o uso dos autores sagrados, para os quais patriarcas são os primeiros chefes de família que viveram, seja antes, seja depois do Dilú- vio. Esse sentido ainda é encontrado, por exemplo, na Igreja Ortodoxa, na expressão “o patriarca de Constantinopla”.

História semântica

Esse sentido religioso é o primeiro a ser citado pelos dicionários franceses; o sentido “social” só vai aparecer em segundo ou terceiro lugar. Em contrapartida, os dicionários ingleses dão o sentido contemporâneo, feminista, como primeira acepção.

“Patriarcado” vem da combinação das palavras gregas pater (pai) e arkhe[1] (origem e comando). Essa raiz de duplo sentido se encontra em arcaico e monarquia. Para o grego antigo, a primazia no tempo e a autoridade são uma só e a mesma coisa.

Portanto, o patriarcado é literalmente a autoridade do pai. Como o pai é forçosamente o primeiro e a origem em relação às gerações seguintes, a adi- ção de pater com arkhe redobra a autoridade da origem, considerada uma evidência no termo arqui — e evidente na palavra grega archontes (descendentes das primeiras famílias instaladas num lugar e dirigentes da comunidade). Mas a palavra pater em si — a mesma em sânscrito, grego e latim — não designa o pai no sentido contemporâneo. Esse papel é preenchido pelo genitor — genitor. “A palavra pater tinha um outro sentido […] Na língua do Direito [aplicava-se] a todo homem que não dependia de nenhum outro e que tinha autoridade sobre uma família e um domínio” (Fustel de Coulanges, 1864). A palavra “patriarcado” comporta, portanto, triplamente a noção de autoridade e nenhuma noção de filiação biológica.

São Morgan e Bachofen que lhe dão seu segundo sentido histórico, aquele que se manterá até os anos 70. Eles postulam a existência de um direito materno que teria sido substituído pelo direito paterno, explicitamente chamado por Bachofen de patriarcado. Ele é seguido por Engels e depois por Bebel (1893/1964).

Antes das denúncias dos autores socialistas, encontra-se bastante o adjetivo “patriarcal” em autores do século XIX, utilizado de maneira elogiosa em expressões como “as virtudes patriarcais”, a saber, a simplicidade dos costumes, a frugalidade, a vida no campo. A palavra denota pequenas comunidades agrícolas compostas de unidades familiares de produção, cada uma sob o cajado de seu antepassado, sendo a vida comunitária regida pela reunião dos ancestrais, dos chefes de família. Para os autores, essa é a imagem de uma idade de ouro, que eles opõem à corrupção e à decadência provocadas pela vida na cidade, pela indústria e pelo assalariamento.

A mesma imagem de uma sociedade composta de famílias sob a autoridade de um pater familias e a mesma palavra que evocam, para os autores dos séculos XVIII e XIX, uma idade de ouro tornam-se uma acusação para as feministas do século XX.

Atribui-se a invenção do terceiro sentido — o sentido feminista contemporâneo — a Kate Millet, em Sexual politics (Política sexual) (1971). Esse terceiro sentido está em clara continuidade com o segundo. Mas, diferentemente dos autores socialistas — ainda que Engels seja discutido até muito antes nos anos 70 –, as feministas, a exemplo de Simone de Beauvoir, não creem na existência de um matriarcado original, e a maioria não se interessa pelas teorias evolucionistas, desacreditadas pelas atuais Ciências Sociais.

Pai ou marido, é tudo igual, diz implicitamente a definição feminista. E é, na verdade, o caso de nossas sociedades, como da sociedade antiga que criou a palavra. Isso é, entretanto, a fonte de uma das objeções correntes contra a utilização de “patriarcado” para designar o(s) sistema(s) que oprime(m) as mulheres. A palavra exata, dizem aqueles e aquelas que levantam essa objeção, deveria ser “viriarcado”. Na verdade, em certas sociedades, o marido e o pai são distintos: é o tio materno que detém a autoridade “paterna” sobre os fi lhos nas famílias. Mas essa objeção se funda num contrassenso etimológico, pois assimila o pai ao genitor, utilizando pater como “pai” no sentido moderno. O sentido dado pelas feministas prevaleceu, e é compreendido que a palavra designa a dominação dos homens, quer sejam eles pais biológicos ou não. Essa acepção está integrada ao mais recente dos dicionários ingleses usuais (Collins, Thesaurus, 1987: “A form of social organization in which a male is the head of the family and descent” [“Uma forma de organização social na qual um macho é o chefe da família e de sua descendência”]).

Patriarcado e teorias feministas

O patriarcado é rapidamente adotado pelo conjunto dos movimentos feministas militantes nos anos 70 como o termo que designa o conjunto do sistema a ser combatido. Em relação a seus quase sinônimos “dominação masculina” e “opressão das mulheres”, ele apresenta duas características: por um lado, designa, no espírito daquelas que o utilizam, um sistema e não relações individuais ou um estado de espírito; por outro lado, em sua argumentação, as feministas opuseram “patriarcado” a “capitalismo” — o primeiro é diferente do segundo, um não se reduz ao outro. Isso se reveste de uma grande importância política num momento de reemergência do feminismo, em que as militantes são confrontadas a homens e mulheres de organizações políticas para quem a subordinação das mulheres não é mais que uma das consequências do capitalismo.

Patriarcado ou capitalismo, patriarcado e capitalismo: tais são os termos dos debates mais importantes entre os(as) partidários(as) de uma luta feminista autônoma e os(as) partidários(as) de uma luta feminista sujeita às organizações políticas anticapitalistas. Esses debates perdem seu vigor nos anos 80 por duas razões: as organizações de extrema esquerda se “resignaram” à multiplicidade de frentes, e renunciaram à distinção entre luta principal e luta secundária; também perderam sua força com a “crise do militantismo”, que terminou por atingir também o movimento feminista no começo dos anos 80. Por conseguinte, essas lutas perdem seu impacto até desaparecerem nos anos 90.

Os estudos feministas aparecem no fi m dos anos 70 na França, e parecem a expressão da força do movimento feminista, mas muito rapidamente torna-se aparente que, de fato, coincidem com seu enfraquecimento. Elas herdam conceitos forjados pelo movimento militante, mas sua legítima vontade de construir um lugar próprio nas esferas do conhecimento leva-os frequentemente a eufemizar seu vocabulário para se distinguir do militantismo.

Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, em contrapartida, os estudos feministas foram menos tímidos porque foram menos combatidos. Também se encontra a palavra “patriarcado” não somente nos panfletos militantes, mas também em todas as obras teóricas. No entanto, as mesmas linhas divisórias entre feministas de sensibilidade mais “socialista” e feministas de sensibilidade mais autônoma são aparentes no uso ou evitação do termo. Um livro famoso editado por Zillah Eisenstein tenta tomar uma posição intermediária e conciliar as duas tendências, como indica seu título: Capitalist patriarchy and the case for socialist feminism (Patriarcado capitalista e a defesa do feminismo socialista) (1979). Outras feministas socialistas norte-americanas, como Heidi Hartmann (1981), não têm escrúpulos em utilizar o termo “patriarcado” nem em considerá-lo um sistema distinto do capitalismo.

Patriarcado, gênero, relações sociais de sexo

Na França, os debates em torno da utilização do termo têm em parte as mesmas razões. Às vezes, o termo “patriarcado” levanta objeções, frequentemente da parte das mesmas pessoas que se opõem mais tarde ao emprego do conceito de gênero. As razões dessas reticências são às vezes claras: elas denotam a adesão a uma teoria que privilegia o capitalismo, no caso do patriarcado, e a uma teoria que privilegia a “diferença natural dos sexos”, no caso do gênero. Mas às vezes essas reticências parecem manifestar uma hostilidade irracional contra aquilo que é visto como uma “importação do exterior”. As sociólogas feministas criaram termos como “relações sociais de sexo”, que são unicamente franceses e intraduzíveis em outra língua. Esse termo, agora o mais utilizado em Sociologia, foi inicialmente concebido como uma alternativa a “patriarcado”, julgado insatisfatório, e mais tarde ao termo “gênero”.

Uma outra objeção a “patriarcado” é sua generalidade: pode-se reprová- -lo por universalizar uma forma de dominação masculina situada no tempo ou no espaço; ou então correr o risco de cair na falha inversa, de ser trans-histórico e transgeográfico. Alguns autores precisam o tempo e a localização de seu uso (Delphy, 1998), mas o uso atemporal também é legítimo, se não conceder poder explicativo ao termo e “patriarcado” for empregado de maneira descritiva. Assim, numa obra voltada aos feminismos não ocidentais, Chandra Mohanty, Ann Russo, Lourdes Torres (1991) utilizam-no vinte vezes.

O termo “patriarcado” continua a ser muito usado na língua inglesa. Ele é encontrado abundantemente, tanto em obras recentes (Walby, 1986; 1990) como num manual de sociologia da família britânica (D. Morgan, 1985); em francês, segundo uma sondagem efetuada sobre a base Francis por Nicole Girard, entre 1984 e 1996 ele foi utilizado em 47 revistas diferentes (quase todas francesas, com cerca de três exceções) de Sociologia, Estudos Culturais, Antropologia e Arqueologia. Parece, portanto, amplamente aceito nos anos 80 e 90.

Entretanto, nos países de língua inglesa, compete hoje, no domínio dos estudos feministas, com o conceito de gênero, que tem diferentes acepções; com frequência, gênero designa apenas a “variável sexo”, mas possui também a acepção de sistema (sistema de gênero). Só o contexto da frase

ou do parágrafo distingue essas acepções. Não mais que outros termos de Ciências Sociais, os termos “patriarcado”, “gênero” ou “sistema de gênero”, “relações sociais de sexo” ou “relações sociais de gênero”, ou qualquer outro termo suscetível de ser empregado em seu lugar, não têm definição estrita e tampouco uma com a qual todos estejam de acordo.

Esses três termos — ou conceitos — têm, entretanto, em comum o fato de pretenderem descrever não atitudes individuais ou de setores precisos da vida social, mas um sistema total que impregna e comanda o conjunto das atividades humanas, coletivas e individuais. Assim, os três termos têm a mesma pretensão à generalidade e a mesma denotação de organização, que não é absolutamente casual.

No conjunto do léxico feminista, tanto militante como científico, eles se completam e opõem a termos como “sexismo” ou “machismo”, que denotam mais o nível das atitudes e/ou das relações interindividuais. São igualmente mais conceituais ou teóricos que “dominação masculina” ou “opressão das mulheres”. Enquanto estes últimos se contentam em fazer uma constatação — uma constatação orientada, evidentemente –, os termos precedentes visam o nível subjacente, explicativo, implicando no mínimo a existência de um sistema sociopolítico. Os termos podem ser tanto opostos como tomados como sinônimos, ou ainda como complementares, cada um deles, quando são todos utilizados, esclarecendo e enfatizando de modos um pouco diferentes o mesmo fenômeno.

Notas de rodapé

[1] Raiz abonada pelo Dicionário Houaiss, versão eletrônica 2003, verbete patriarcado. (N.T.)

Referências

Bebel, August. La femme et le socialisme, Paris, Éditions du Globe, 1964, 543p. [Édition originale en allemand, 1893].

Coulanges, Fustel de. La Cité antique, Paris, Hachette, 1864, 525p.

Delphy, Christine. L’ennemi principal, Économie politique du patriarcat, Paris, Syllepse “Nouvelles questions féministes”, 1998, 293p.

Hartmann, Heidi. The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism, in Lydia Sargent (Ed.), Women and Revolution, a Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism, Boston, South End Press, 1981, p.1–41.

Mohanty, Chandra; Russo, Ann; Torres, Lourdes. Third World Women and the Politics of Feminism, Bloomington, University of Indiana Press, 1991, 331p.

Walby, Sylvia. Theorizing Patriarchy, London, Blackwell, 1990, 229p.

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