Politizando o discurso sobre aborto

Fúria Raiz
QG Feminista
Published in
8 min readDec 2, 2016
(Na Ponta da Língua)

Politizando o discurso sobre aborto

Uma das pautas mais importantes e paradoxalmente mais negligenciadas do feminismo é o aborto. Isso acontece porque há um entendimento geral de que as discussões sobre essa pauta estão superadas — que tudo que há para saber sobre o assunto já é sabido, e não há mais o que se discutir. Porém, como todo o discurso feminista, o aborto foi relativizado de tal forma que as pretensas feministas da atualidade parecem ter esquecido que ele é pauta inegociável dentro do movimento pela libertação das mulheres: toda feminista é necessariamente a favor do aborto. Não só da legalização e descriminalização, mas da prática do aborto em si.

Por conta disso, a militância pela descriminalização e legalização do aborto é extremamente falha em vários aspectos, justamente pelo fato de o assunto já não ser mais discutido e do movimento feminista ter sido relativizado e adaptado a concepções liberais. Mais do que nunca, é necessário afinar o discurso sobre direitos reprodutivos, como nossos opositores fizeram e fazem há séculos.

Susan Faludi, jornalista estadunidense, escreveu Backlash: O Contra-ataque na Guerra Não Declarada Contra as Mulheres, um livro sobre as táticas de contra-ataque dos movimentos masculinistas à luta feminista. Nele, destaca que a linguagem do movimento antiaborto apropriou-se da retórica feminista em favor do próprio discurso inúmeras vezes:

“”A criança tem direito de escolha” tornou-se um dos refrãos preferidos nas manifestações antiaborto. As publicações antiaborto apresentavam os praticantes de abortos quase como estupradores que submetiam as jovens a indizíveis horrores para arrancar o dinheiro delas e viver uma vida de luxo. Identificando as mulheres como vítimas do seu próprio direito de abortar, o movimento antiaborto não se limitou a aviltar a retórica — procurou impor a tese do contra-ataque. A causa da liberdade da mulher era mais uma vez definida como causa do sofrimento da mulher. As mulheres infelizes, afirmavam os porta-vozes do movimento, estavam provavelmente sofrendo os efeitos residuais da “síndrome pós-abortiva”, a nova praga que segundo o movimento estava afligindo a população feminina.”

É possível identificar qual discurso deu margem a esse tipo de apropriação: o clamor pelo direito de escolha individual da mulher como argumento para a legalização do aborto, e a estigmatização do processo abortivo. A segunda é consequência da falta de pesquisa e embasamento sobre o assunto, que faz com que mulheres feministas o propaguem como inerentemente traumatizante, porém necessário. O processo abortivo, quando respaldado pela regularização institucional, ou seja, o aborto legal, é simples, dura pouco e não dói muito mais que uma menstruação normal. Não há quaisquer sequelas psicológicas comprovadas e quando há, é pela culpabilização imposta à mulher que escolhe não ter filhos. Reproduzir a concepção de aborto enquanto um trauma inescapável serve à agenda patriarcal. Um aborto é só um aborto.

Há uma disputa ideológica do debate sobre aborto entre o feminismo radical e as distorções liberais, entre tratar o aborto como uma questão de classe e um problema de saúde pública ou clamar pelo “meu corpo, minhas regras”, que advoga pela escolha individual, e, como visto, dá margem a apropriações pelo discurso conservador. Aborto é uma questão social, uma medida extremamente necessária que advoga pela autonomia corporal de metade da população mundial, que se encontra em situação de exploração. Não é sobre direitos individuais, é sobre direitos reprodutivos de todas as mulheres.

A militância pretensamente feminista que advoga pela escolha — colocando também a maternidade como uma escolha possível de forma livre da pressão patriarcal — é incoerente e pouco politizada. Igualizar a relevância de ambos os caminhos a serem tomados ignorando o peso político de uma mulher que recusa a maternidade e a sina de perda de identidade e exploração do cuidado da mulher mãe é contraproducente e não é prática feminista. Feministas devem tentar contestar a idealização patriarcal da maternidade da mulher que decide seguir com a gravidez. Não há qualquer outra pessoa que o faça dentro da sociedade patriarcal. Aborto não é sobre escolha, é sobre maternidade compulsória. A partir do momento em que a maternidade é mecanismo de exploração de mulheres e não há como escapar disso dentro da conjuntura patriarcal, o feminismo deve ser pró-aborto, e não pró-escolha.

O debate sobre o aborto cooptado pela lógica liberal tem pouca ou nenhuma clareza do lugar em que ocupam as pautas paliativas dentro do movimento feminista, bem como de seus objetivos finais. Dentro de uma sociedade capitalista cujo estado de direito burguês é também patriarcal o encaixe dos direitos reprodutivos das mulheres dentro dos termos da lei é importante, porém paliativo. É crucial que mantenhamos isso em mente, que a conquista de projetos de lei que contemplem a mulher na questão reprodutiva é inevitavelmente provisória e nada segura, na medida que o estado sempre a adaptará para seus próprios interesses. Por exemplo, o aborto é um mecanismo que pode ser e é usado de forma eugenista, sendo imposto junto com a esterilização a mulheres negras, indígenas e não-brancas. É importante que estejam incluídas na nossa militância formas de retirar essa prática do poder masculino, na forma do estado, na escala macro, ou do marido, numa escala menor.

“A política da população doméstica do governo dos Estados Unidos tinha um gume racista inegável. Americanas nativas, mexicanas nascidas nos Estados Unidos, portoriquenhas e mulheres negras continuaram a ser esterilizadas em números desproporcionais. De acordo com o estudo da National Fertility (Fertilidade National) conduzido em 1970 pelo departamento de controle da população na Universidade de Princepton, 20% de todas as mulheres negras casadas foram permanentemente esterilizadas. Aproximadamente a mesma percentagem das mulheres mexicanas nascidas nos Estados Unidos foram declaradas à infertilidade cirúrgica. Mais ainda, 43% das mulheres esterilizadas através de programas subsidiados federalmente foram negras.”

Angela Davis em Mulher, Raça e Classe

Nesse contexto, alguns argumentos pontuais reproduzidos sobre o aborto são aparentemente anti-patriarcais mas reforçam ideologias criadas para dar manutenção e respaldo à exploração reprodutiva das mulheres. Um deles é a militante pró-escolha que se diz contra o aborto, mas a favor da legalização. Esse discurso pode parecer positivo mas é análogo àquele que diz “sou feminista porém não sou peluda, lésbica ou feia”, ou seja, se apóia na crença de que a feminilidade e a heterossexualidade podem proteger mulheres da violência, enquanto as não feminilizadas e as lésbicas podem ser violentadas. Novamente, toda mulher que se pretende feminista é automaticamente a favor do aborto, independente de suas escolhas pessoais, porque feminismo não é sobre escolhas pessoais. Há, dentro disso, a estigmatização da mulher feminista que aconselha outras mulheres a abortarem enquanto insensível ou doutrinadora, em oposição à feminista compreensiva que entende os processos de cada mulher e os respeita independente da materialidade de cada um deles.

É importante que saibamos que não é apenas a criminalização que impede mulheres de abortarem. A necessidade de abortar é fruto da maternidade compulsória, que constrói a vida sexual feminina em torno da masculina e majoritariamente desprovida de proteção anticoncepcional. O aborto é também uma afronta ao sistema, e além do mecanismo legislativo há toda uma cultura que não dá respaldo a essa prática. Mesmo em países onde o aborto é legalizado o patriarcado realiza seu papel convencendo mulheres a manterem a gravidez pelo seu mecanismo mais eficiente: a culpa. Isso só reafirma que a maternidade não pode ser encarada como uma escolha pessoal, pois essa concepção simplista ignora o contexto em que esse tipo de escolha é tomada.

Também por isso o argumento de que “as ricas abortam, as pobres morrem” é mais uma redução simplista do debate que não serve ao feminismo. É importante, sim, que pautemos as mortes de mulheres pobres e pretas, indígenas e não brancas provindas de abortos clandestinos, mas não é necessário que para tal se coloque a mulher que possui acesso aos bens de consumo como numa situação livre de opressão. Precisamos ter em mente que esses bens de consumo muito raramente estão sob controle dessas mulheres, e sim de seus maridos ou pais, fazendo com que dependa também da vontade de homens seu acesso ao processo abortivo minimamente seguro. E que a pressão social pela maternidade também as atinge e faz com que tomem decisões que não correspondam às suas vontades.

A relativização do direito ao aborto e autonomia reprodutiva está impregnada também na esquerda. Existe a convicção de que com o fim do capitalismo as mulheres também serão libertadas do patriarcado, automaticamente. E isso não é novo. Na URSS, o aborto foi legalizado em 1920, de forma pioneira no mundo, e mesmo assim o acesso ao procedimento não era garantido a todas as mulheres:

“Em relação ao aborto, a autora argumenta que, embora a União Soviética tenha sido a primeira no mundo a dar às mulheres uma oportunidade legal e gratuita de interromper a gravidez, nunca reconheceu o aborto como um direito da mulher. Ela também afirma que, devido a requisitos administrativos e ao processo de inscrição; as mulheres não tiveram acesso igual ao aborto gratuito. A alta frequência de abortos legais e ilegais indica que o estado não foi capaz de mudar as condições que levaram as mulheres a limitar o tamanho de suas famílias nem a tornar acessíveis o abortamento autorizado a todas as mulheres.”

(Andjela Radovanovic sobre Wendy Goldman em Emancipation of Soviet Women: Liberty or Chaos?, tradução livre)

Em 1936, devido ao déficit populacional proveniente da guerra, porém, o aborto foi novamente proibido, na tentativa de aumentar a taxa de natalidade do país. No referido decreto, o texto começa ressaltando que as mulheres são livres e respeitadas dentro da URSS, e na tentativa de justificar a nova medida é colocado que no socialismo a exploração das mulheres acabou, portanto não há nada de mal em combater o aborto com medidas proibitivas:

“Somente sob condições do socialismo, onde a exploração do homem pelo homem não existe e onde a mulher é um membro igual da sociedade, enquanto a melhoria contínua do bem-estar material dos trabalhadores constitui uma lei do desenvolvimento social, é possível seriamente organizar a luta contra o aborto por leis proibitivas e por outros meios ”.

(Decree on the Prohibition of Abortions. June 27, 1936, tradução livre)

Isso mostra que o aborto nunca deixou de ser considerado um mal, e nunca foi um direito garantido das mulheres. Dentro da esquerda, nossos direitos são negociáveis — são moeda de troca, são os primeiros a serem sacrificados pelo bem maior, e sua permanência existe apenas enquanto não surge nada considerado mais importante. Fica cada vez mais claro que não se pode confiar na esquerda para priorizar as pautas das mulheres. Nem a legalização e descriminalização do aborto tirarão o domínio de nossos direitos reprodutivos das mãos dos homens. Precisamos do fim do patriarcado.

O aborto é e sempre será um assunto das mulheres. Somos a classe que é explorada pelo seu potencial reprodutivo, nosso corpo é o veículo pelo qual a opressão reverbera, o corpo da fêmea humana foi e é subjugado pela política patriarcal. Nossos corpos importam, nossa autonomia corporal foi conquistada pelos homens. É tempo de tomá-la de volta.

“A boa esposa se submete; a má esposa pode ser forçada a se submeter. Todas as mulheres devem se submeter. Uma das consequências da submissão, conformada ou forçada, é a gravidez. As mulheres são obrigadas a se submeter à relação sexual, e as mulheres podem ser obrigadas a se submeter à gravidez. As mulheres são obrigadas a se submeter ao homem, e as mulheres podem ser obrigadas a se submeter ao feto.”

(Andrea Dworkin em Right Wing Women, tradução livre)

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