Um chamado para feministas lembrarem a história da opressão feminina baseada no sexo
(Parte I) Como tudo começou
O real brilhantismo do patriarcado…é que ele não apenas naturaliza a opressão. Ele sexualiza atos de opressão. Ele erotiza dominação e subordinação. Ele os institucionaliza como masculinidade e feminilidade. Então, ele naturaliza, erotiza e institucionaliza dominação e subordinação. A beleza do feminismo é que nós descobrimos isso.
-Lierre Keith
Nos meses recentes, muita legislação foi passada e proposta nos EUA e em outros lugares que indicam uma assustadora intensificação na guerra- sim, é uma guerra- contra as mulheres. O parlamento russo acabou de votar (380 votos a favor, 3 contra) para descriminalizar violência doméstica. Este é um país aonde 40 mulheres por dia- 14.000 por ano- são assassinadas por parceiros homens. Os Estados Unidos, aonde 1.000 mulheres são assassinadas por seus parceiros por ano, acaba de eleger um presidente que se gaba que “quando você é uma estrela, elas deixam você fazer isso, agarrá-las pela buceta”, e que esteve envolvido em pornografia e tráfico sexual. Ele planeja eliminar o financiamento de 25 programas voltados para violência doméstica e está ordenando que colegas de trabalho do sexo feminino “se vistam como mulheres”. O Texas está buscando caçar o direito ao voto de mulheres que fizeram abortos; o Arkansas possibilitando que estupradores processem mulheres por terem sido estupradas.
Todos esses avanços residem, claro, na noção longamente estabelecida de que mulheres são propriedades masculinas. O estigma do aborto reside na ideia de que mulheres não criam vidas humanas através de um processo de 9 meses de gestação e parto; homens ejaculam a vida dentro das mulheres, e mulheres, como incubadoras reguladas pelo estado, são obrigadas a levar a gestação à termo. Violência doméstica, as indústrias de pornografia e prostituição que alimentam tráfico sexual, códigos de vestimenta- tudo isso se baseia no mesmo princípio de direito sexual do homem. Não é surpresa que críticos estejam chamando a adaptação de “O Conto da Aia”, de Margareth Atwood, uma nova era de regras mais ortodoxas e papéis estritamente designados para mulheres. Tudo isso justificado através de mitos de que mulheres são biologicamente pré-dispostas a essas regras e papéis.
Dada a situação que nós enfrentamos, é alarmante confrontar a realidade de que a esquerda é igualmente mal equipada e relutante em discutir a opressão feminina quanto a direita conservadora. Hoje em dia, noções de identidade de gênero, por exemplo, ameaçam engolir completamente o entendimento coletivo de que mulheres são oprimidas por causa do seu sexo biológico. Uma ideologia de “identidade de gênero” alega que gênero é uma questão de identificação pessoal e que o sexo biológico de alguém pode ser trocado e mudado quando quiserem. “Cis” é uma palavra que mulheres estão cada vez mais adotando para sinalizar que elas entendem o “privilégio” de ter uma identidade de gênero que combina com seu sexo biológico. Ao mesmo tempo, é claro, mulheres estão sendo pressionadas a engolir a ideia de que sexo biológico em si não é real.
O problema é que, ser mulher, é bastante real, e ser enquadrada no gênero feminino também- e isso não é uma forma de privilégio. É uma forma de opressão que mulheres resistem desde a criação do patriarcado. Oferecendo a história enlatada do canceroso, globalizado sistema ocidental de objetificação sexual em que nós vivemos hoje, eu espero oferecer um pequeno lembrete disso tudo aqui. Esse artigo acompanha o desenvolvimento da opressão baseada no sexo biológico pela sua raiz, através da caça às bruxas, da comercialização de escravas, patologização do corpo das mulheres na ginecologia e os backlashes contra o movimento feminista até os dias de hoje.
Matriarcado e a criação do patriarcado
Apesar da insistência ortodoxa que a regra masculina reflete a ordem “natural” das coisas, o patriarcado é um desenvolvimento relativamente recente da história humana. Por 99% da nossa existência, seres humanos não vivam sob as regras patriarcais. A autora feminista Marilyn French aponta os grupos de subsistência horticulturais e de linhagem matriarca, como matriarcais; Audre Lorde escreveu sobre o culto à deusas como Afrekete, Yemanjá, Oyo e Mawulisa; o filme de Max Dashu, “Woman Shaman” explora a arte e descobertas arqueológicas que restaram das culturas matriarcais ao redor do mundo. “A História das Mulheres” de French e “A Criação do Patriarcado” de Gerda Lerner são textos incríveis sobre o processo histórico que forma a base das sociedades ocidentais. Isso tudo aconteceu ao longo de 2.500 anos, desde 3100 a.C, durante a revolução agricultural. De acordo com Lerner, a transição de subsistência para a agricultura significa que crianças se tornaram uma ferramenta econômica, força de trabalho — e mulheres se tornaram a primeira forma de propriedade privada.
French mostra como a dominância masculina foi primeiramente estabelecida através de ordens paternais de posse e direito de nomear crianças. O assassinado de primogênitos era comum nos primeiros grupos patriarcais, quando homens queriam se assegurar que o primogênito de suas mulheres realmente eram “deles”. O fato de o aborto ainda estar no Código Criminal da Nova Zelândia é uma prova contemporânea da presunção de que a vida humana é feita por homens e é propriedade deles. Em 2016, a Organização Mundial de Saúde (OMS) também santificou o “direito” dos homens à herdeiros através de uma nova política declarando uma “deficiência” o fracasso em encontrar uma parceira sexual.
Com a instituição do casamento, veio o dote, e o valor principal de ter filhas era seu potencial de ser noivas; “roubo de noivas” e “ritual de defloração” eram comuns, como ainda é comum, por exemplo, no Quirguistão. “Noivas” sequestradas são geralmente crianças, e hoje em dia cerca de 15 milhões de meninas ao ano são forçadas a casar. Em 2013, uma menina iemenita de oito anos morreu de hemorragia interna na noite em que casou com um homem que tinha cinco vezes a sua idade. Isso é o que o patriarcado faz com meninas.
Uma das práticas que melhor exemplifica a mercantilização através do casamento era o suttee indiano, banido legalmente apenas em 1829. Essa prática envolvia queimar viúvas vivas, incluindo meninas sequestradas como child brides na pira funerária de seus maridos. Um mito de que meninas e mulheres perdiam os maridos através dos seus próprios carmas ruins sublinhava a prática. Como o ritual era para ser de “limpeza”, homens tipicamente evitavam queimar mulheres enquanto elas estavam menstruando e esperavam dois meses depois do nascimento de uma criança se elas estivessem grávidas. Várias mulheres poderiam ser queimadas após a morte de um único e precioso homem.
Depois que os homens se apropriaram do controle de mulheres e da esfera doméstica, o status das mulheres foi mais amplamente institucionalizado e codificado em leis através da construção de religiões monoteístas, do estado e do desenvolvimento da prostituição comercial. Se alguém tentar lhe dizer que prostituição é a “profissão mais velha do mundo”, eles estarão sendo condescendentes e essencialistas: como mostra Max Dashu, mulheres medicinais praticavam bem antes de homens descobrirem como objetificar e lucrar com mulheres através da prostituição.
Como escreveu Moana Jackson, colonização sempre vem com a apropriação da memória histórica, saqueada até que grandes silêncios se proliferem. “Às vezes esse silêncio é descrito como ‘amnésia social’, disse Jackson, “em que o passado escapa da mente no tipo de esquecimento quase acidental e não culpável que ocorre com a passagem do tempo”. O que realmente acontece, diz ele, é que histórias são conscientemente redefinidas de uma forma que vai contra a realidade política e social do colonizado. A mesma coisa se aplica à mulheres. Hoje em dia, poucas de nós sabemos nossa história- ou a história da nossa opressão e da nossa resistência à ela, já que a história é ditada pelos patriarcas. Mas nós podemos tomá-la de volta.
Continua na Parte 2.
Texto original: https://reneejg.net/2017/02/07/a-call-to-feminists-to-remember-the-history-and-sex-based-nature-of-womens-oppression/