Um chamado para feministas lembrarem a história da opressão feminina baseada no sexo

(Parte III) Objetificação feminina

Patricia Costa
QG Feminista
8 min readDec 25, 2017

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Fonte: Barbara Kruger

Sexologia, pornografia e feminismo

No seu artigo Sexologia e Anti-feminismo, Sheila Jeffreys descreve como a “disciplina” de sexologia surgiu como uma represália à primeira onda do feminismo das sufragistas.

Esse período, que se seguiu imediatamente após da Primeira Guerra Mundial, era uma época em que mulheres tinham consideravelmente maior liberdade e independência do que elas tinham antes. O fato de que um grande número de mulheres não estavam casando, estavam escolhendo ser independentes e estavam lutando contra a violência masculina, causou um alarme considerável. O alarme é aparente na literatura de sexologia.

Muitas mulheres tinham pouco interesse em relações sexuais, e mais além, pensavam que “nenhuma mulher deveria ser obrigada a ter relações sexuais”(claro, isso foi muito antes das feministas da segunda onda lutarem para criminalizar o estupro marital). Em resposta à essa resistência e independência crescentes, e para defender o status quo da opressão feminina, foi que a subordinação sexual de mulheres foi naturalizada na sexologia. Havelock Ellis, o fundador da sexologia, argumentou que:

A sexualidade masculina era absolutamente e inevitavelmente agressiva, tomando a forma de perseguição e captura, e que era normal e inevitável para os homens sentir prazer em infligir dor à mulheres. A sexualidade da mulher, ele disse, era passiva. Mulheres eram para ser capturadas e sentir “prazer” nas mãos de parceiros homens.

Sexólogos também inventaram o conceito da “frigidez” da mulher: mulheres “frígidas eram defeituosas e tinham que ser mandadas à ginecologistas e psicanalistas.

Seguindo os passos da sexologia, veio a indústria pornográfica como conhecemos hoje. Com a conclusão da Segunda Guerra Mundial, existiam grandes negócios em promover essa objetificação da mulher. Empresários pornógrafos, como Hugh Hefner(Playboy), Bob Guccione (Penthouse) e Larry Flynt (Hustler) começaram a preparar o mercado para fazer com que a pornografia fosse socialmente aceita. Pelos anos 90, produtos de coelhinhas estavam sendo consumidos por garotas em todo lugar- o coelhinho estampado em tudo, desde itens de papelaria até calças de pijama. As pessoas que publicavam a Cosmopolitan, a Bauer Media, tem estado envolvidas nesse lobby de comércio sexual, e já teve a licença de publicação da Playboy na Alemanha.

“Era um mundo muito diferente,” diz a escritora feminista Gail Dines, “depois que Hefner corroeu as barreiras culturais, econômicas e legais da produção em massa e distribuição da pornografia.” Agora é até considerado para debate se pole dancing é a melhor atividade extracurricular para crianças de 8 anos.

Como essa passagem para a cultura de massa aconteceu? A resposta é simples: ela foi fabricada. O que nós vemos hoje é o resultado de anos de estratégia cuidadosa e marketing da indústria pornográfica para “limpar” os seus produtos… reconstruindo a pornografia como divertida, inovadora, chic, sexy e quente. Quanto mais “limpa” a indústria se tornou, mas ela foi absorvida pela cultura pop e para dentro da nossa consciência coletiva.

As feministas de segunda onda reconheceram e resistiram o abuso e normalização da pornografia- mas os departamentos de Estudos Femininos das universidades, aonde boa parte dessas críticas poderiam ser feitas não existem mais. Até os livros agora estão sob ameaça. A disciplina que usurpou os Estudos Femininos foi a teoria queer, e de acordo com feministas, a teoria queer é para a segunda onda de feminismo o que a sexologia foi para a primeira: uma represália. Sheila Jeffreys relata como essa represália veio:

Dos liberalistas sexuais da esquerda — em particular, homens- e de grande parte do movimento gay formado por homens. É daí que vem a represália, mas ela está também sendo representada dentro do feminismo.

Lierre Keith ilustra a representação dessa represália dentro do feminismo:

Logo em 1982, Ellen Willis inventou o termo “sex positive”(ou pró-sexo) para se distinguir das femininistas radicais- porque nós radicais somos tão negativas. Estupro, estupro, estupro- é tudo que nós queremos falar a respeito. Bom, eu vou fazer um acordo, quando homens pararem de estuprar, eu vou parar de falar sobre isso.

Keith também aponta que a procura de “pornografia de tortura” tem 32 milhões de resultados online. Vale à pena lembrar da estética, os instrumentos e as práticas da pornografia moderna e BDSM endorsadas na “inovadora” e “pró-sexo” teoria queer, e “kinks”(ou fetiches), vêm desde a época da caça às bruxas. O artigo Reino dos Demonologistas de Max Dashu mostra como a tortura de bruxas era sexualizada, através de rotinas de tortura e equipamentos que eram fetichizados, e confissões forçadas de sexo grotesco com demônios. Uma entrevista com Audre Lorde em Burst of Light critica o sadomasoquismo por razões similares.

Sadomasoquismo é congruente com outros desenvolvimentos nesse país que tem a ver com dominação e submissão, com disparidade de poder- politicamente, culturalmente e economicamente… Sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada de relações de dominância/subordinação… Sadomasoquismo alimenta a crença que dominação é inevitável e legitimamente prazerosa.

A feminista Susanne Kappeler oferece um lembrete para quando nós acharmos esses tipos de prática aceitáveis e celebradas como inovadoras na academia.

Como feministas, nós fazemos bem em lembrar e ressaltar o fato que a história do liberalismo, do libertarismo e libertinagem tem sido uma história de homens reivindicando liberdades e licenças para homens- liberdades pelas quais os direitos e liberdades de mulheres tem sido rotineiramente sacrificados.

Cópia de “pornografia de bruxa”, de 1515. Desenho de Hans Franck.

Comodificação e “escolha”

A produção de robôs sexuais é um avanço contemporâneo da objetificação das mulheres que disciplinas como a teoria queer deixam passar, e até celebram. Distúrbios alimentares e a demanda por cirurgias plásticas como a labioplastia, são apenas dois exemplos do impacto que a objetificação crescente causa em mulheres. Nós também estamos vendo outras invenções bizarras no mercado: o FitBit, um acessório bucal para boquetes.

Outra maneira que o lobby da indústria do sexo afeta mulheres, suga confiança, encoraja competição e cria dependência, como um parceiro abusivo ou um cafetão, é através da mídia, através de revistas femininas. 70% das mulheres afirmam ter tido experiências de culpa e vergonha depois de três minutos olhando revistas desse tipo. É bem sabido que as pessoas que publicam e os publicitários se alimentam de insegurança- e abuso. A maioria das modelos nessas revistas pesam 25% a menos que a mulher comum, e se enquadram na faixa de peso da anorexia. Agora, nos EUA e na Europa, 50 milhões de mulheres sofrem de distúrbios alimentares e meninas tão jovens quanto 6 anos estão cada vez mais expressando ansiedade sobre os seus corpos.

A Bauer Media publica a Cosmopolitan, a Woman’s Day e a revista para adolescentes Dolly. Ela também lucra com a pornografia online e possuía a licença de publicação para uma variedade de revistas pornográficas alemãs: a Playboy alemã; Das neue Wochenend; Blitz Illu, Schlüsselloch (que significa ‘buraco da fechadura’); Sexy; Praline e Coupé. A Bauer Media também é dona de um terço do famoso canal de TV privada, RTL II, que exibe realitity shows “pró-trabalhos sexuais” quase todos os dias. Não é surpresa que a edição mais recente da Cosmopolitan oferece conselhos sobre tratamentos cosméticos invasivos, desde tatuagem de sobrancelha, até preenchimento labial, tratamentos com laser e fototerapia.

A labioplastia- a redução cirúrgica da lábia da mulher- é outra crescente tendência ocidental que tem conexões com práticas mais brutais, nesse caso, mutilação genital feminina. De acordo com a WHO (que na verdade chegou a endorsar essa prática em 1958), mais de 200 milhões de meninas e mulheres vivas hoje em dia, foram mutiladas em 30 países na África, no Oriente Médio e Ásia, aonde se concentra a prática de mutilação genital. Essas práticas podem fazer com que meninas tenham o clítoris ou lábia removidos; Na Somália,exista a prática de costurar a lábia, deixando apenas uma pequena abertura. A mulher somali Hibo Wardare diz que urinar através dessa abertura parece com “uma ferida aberta esfregada com sal ou molho de pimenta.” O feminismo precisa trabalhar para acabar com a mutilação genital feminina, não se ocupar em glorificar novas variedades comerciais e “escolhas” pró-sexo.

O patriarcado mina e mutila corpos femininos enquanto o valor da mulher é enfraquecido. Desde o século X, e claro, por dez séculos, patriarcas chineses se certificaram que meninas e mulheres nunca correriam livres aprisionando seus pés, e fetichizando esse ato de aleijar mulheres. Hoje em dia, nós vemos a comercialização do cabelo de mulheres, dos nossos óvulos, leite materno e úteros alugados através das barrigas de aluguel. Enquanto barrigas de aluguel são geralmente mulheres pobres, doadoras de óvulos geralmente são mulheres jovens e educadas, que passam por exames para detectar doenças hereditárias e que não são informadas das implicações ou possíveis efeitos colaterais da coleta de óvulos.

O feminismo branco e midiático, hoje em dia, enquadra labioplastia como algo que mulheres “escolhem”. Como a imolação era “escolhida” por mulheres através da prática do suttee indiano. Como mulheres “escolhem” aprisionar os pés de suas filhas, “escolhem” cortar os seus clítoris; como mulheres “escolhem” ser prostituídas ou até traficadas, “escolhem” usar a burca, usar salto-alto, não comer, aprisionar os seios. Não somente essas práticas são comercializadas e chamadas de “escolha”, mas também de altruísmo. Prostituição, barrigas de aluguel e imolação foram chamadas de práticas “altruístas”. Mulheres, obviamente, querem poder escolher e contribuir. E que escolhas a sociedade permite que nós façamos? Essas. Então nós dizemos que fazemos essas escolhas por nós mesmas. Mas o feminismo precisa reconhecer o que Meagan Tyler reconhece- que sim, “nós fazemos escolhas, mas elas são moldadas e podadas pelas condições desiguais em que vivemos”.

NZPC vende a prostituição como “escolha” da mulher.

Quando se trata de tendências modernas, como transgeneridade, nós não podemos separar o desejo masculino de acesso à espaços femininos e transplantes de útero do histórico de apropriação patriarcal (incluindo imitações de “prótese de útero”). Nós não podemos separar esse movimento da história inteira que o precede, da simultânea exploração do corpo feminino e diminuição do valor da mulher. Nós também não podemos separar o desejo masculino de sufocar e apropriar a discussão e capacidade da mulher de criar vida da história dos mesmos. O sistema branco e masculino tem trabalhado para se apropriar do controle dos corpos das mulheres e sua capacidade de gerar vida humana e para abafar as discordâncias feministas, desde que ele veio ao poder. Na era de Trump, isso continua.

Por outro lado, nós não podemos separar os desejos fabricados de mulheres por privilégio masculino e as “escolhas” de mulheres de se submeterem a esconderem os seios, mastectomias e cirurgias invasivas de uma história de opressão, demonização e auto-mutilação.

Nós não podemos separar nenhum discurso sobre gênero das realidades da opressão baseada em sexo biológico, se nós quisermos liberdade.

Texto original: https://reneejg.net/2017/02/07/a-call-to-feminists-to-remember-the-history-and-sex-based-nature-of-womens-oppression/

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