Um chamado para feministas lembrarem a história da opressão feminina baseada no sexo

(Parte II) Das bruxas que fomos e a ginecologia

Patricia Costa
QG Feminista
7 min readDec 18, 2017

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Parte I

A “pera”. Durante a caça às bruxas, torturadores esquentavam esse instrumento no fogo, depois o introduziam na vagina de mulheres e o abriam.

As queimas de bruxas e a ginecologia

Mulheres medicinais continuaram suas práticas amplamente na Europa até o período chamado de Iluminismo. Entre o a época do Império Romano até aquela época, a caça às bruxas e o “mito da maldade feminina” resultou na morte de nove milhões de pessoas, quase todas mulheres, por mais de 300 anos. A história lembra dessa missão de 300 anos, se é que lembra de alguma forma, como um episódio supersticioso(pense em “As Bruxas de Salém” de Arthur Miller). Porém, escritoras feministas como Mary Daly, Andrea Dworkin e Max Dashu oferecem uma perspectiva diferente.

Dworkin escreve sobre quantas mulheres chamadas de bruxas eram mulheres medicinais, uma verdade que ainda existe na nossa memória cultural, no estereótipo dos sapos e caldeirões. Mas essas não eram mulheres de rosto verde e malvadas. De acordo com Dworkin, foram especialmente parteiras, que sentiram na pele que mulheres realmente ofendiam a Igreja.

As bruxas usavam drogas como beladona e acônito, anfetaminas orgânicas e alucinógenos. Elas também foram pioneiras no desenvolvimento de analgésicos. Elas praticavam abortos, providenciavam toda a ajuda médica em partos, eram consultadas em casos de impotência, que elas tratavam com ervas e hipnose e foram as primeiras a praticar a eutanásia.

Anna Göldi é dita ter sido a última mulher a ser executada como bruxa na Europa. Ela era empregada doméstica de um médico, que a acusou de ter colocado agulhas no pão de seus filhos através de poderes sobrenaturais. Depois de uma tentativa de escapar do julgamento, ela foi capturada e decapitada na Suíça em 1782.

No seu livro “Gyn/Ecology”, Mary Daly aponta como a ginecologia foi estabelecida como uma prática governada por homens depois da caça às bruxas. 1873 marcou a publicação da invenção da “castração feminina”, pelo Dr. Robert Battey: a remoção dos ovários da mulher para “curar insanidade”. Desde então, ginecologistas homens tem rotineiramente patologizado, medicamente e cirurgicamente torturado e machucado mulheres e o corpo de mulheres através de práticas de parto violentas, mastectomias radicais e histerectomias, “terapias” de choque e hormonais e lobotomias.

Por meados de 1980, existia um interesse insano em prostéticas de madeira ou vidro ou “úteros” mecânicos (“mães artificiais” ou “chocadeiras de crianças”)- tecnologias que tentavam desafiar que o corpo da mulher era indispensável. Nessas incubadoras nós vemos como o esforço presente dos transativistas para neutralizar e desumanizar a linguagem da gravidez e do parto, e romper sua conexão com o corpo da mulher e da saúde da mulher foi ecoado através da história.

Daly aponta que a apropriação masculina da saúde da mulher depois da caça às bruxas não foi uma coincidência:

Muitas feministas apontaram a significância do fato de que o massacre de mulheres sábias/curandeiras durante a caça às bruxas foi seguida pela ascensão dos homens- parteiros que eventualmente foram dignificados com o nome “ginecologista”. A ginecologia demorou a engatar. Homens parteiros do século dezesseis, dezessete, dezoito e dezenove enfrentaram resistência de mulheres parteiras como Elizabeth Nihell, que descreveu seus instrumentos como “armas da morte”. De qualquer forma, o século dezenove viu o erguimento da ginecologia sobre os corpos mortos de mulheres.

O amontoado de abusos

J. Marion Sims, “o pai da ginecologia moderna”, usou mulheres escravas afrodescendentes para conduzir experimentos cirúrgicos. Sims fez experimentos médicos em mulheres negras para pesquisas de doenças como câncer — sem providenciar anestésicos ou outros medicamentos para dor. Se uma mulher morresse devido a complicações ou sangramento excessivo, Sims simplesmente a substituiria por outra escrava, e sua prática era completamente legal.

O amontoado de opressões sofridas por mulheres negras é um tópico em “Mulheres, Raça e Classe” de Angela Davis. Nele, Davis discute as experiências de mulheres negras durante o tráfico de escravos; incluindo Harriet Tubman(na foto), que resgatou mais de 300 pessoas através da Underground Railroad e foi a única mulher nos EUA a liderar tropas em batalhas.

Mulheres negras, diz Davis, tinham que trabalhar tão consistentemente em plantações quanto os homens, exercendo as mesmas atividades, apesar dos mitos que o patriarcado perpetua acerca das mulheres.

Mulheres não eram “femininas” demais para trabalhar em minas de carvão, forjando ferro ou para serem lenhadoras ou escavadoras de valas. Quando o canal Santee foi construído na Carolina do Norte, mulheres escravas eram cinquenta por cento da força de trabalho.

Além desses trabalhos, mulheres eram escravas sexuais. “Se as punições mais violentas para homens constituíam chicoteamentos e mutilações”, Davis escreve, “mulheres eram chicoteadas, mutiladas e também estupradas”. Homens também enxergavam mulheres negras como “reprodutoras”:

Durante as décadas que precederam a Guerra Civil, mulheres negras passaram a ser cada vez mais avaliadas por sua fertilidade(ou pela falta dela): aquela que era potencialmente a mãe de dez, doze, quatorze ou mais se tornava um tesouro cobiçado. Porém, isso não significava que como mães, mulheres negras gozassem de um pouco mais de status respeitável do que elas gozavam enquanto trabalhadoras. Exaltação ideológica da maternidade- popular como era no século dezenove- não se estendia à escravas. De fato, aos olhos dos donos de escravos, mulheres escravas não eram mães de forma alguma; elas eram simplesmente instrumentos que garantiam o crescimento da força de trabalho. Elas eram “reprodutoras”- animais cujo o valor monetário poderia ser precisamente calculado nos termos de sua habilidade de multiplicar seus números.

Já que mulheres escravas eram classificadas como “reprodutoras” ao invés de “mães”, seus bebês poderiam ser vendidos como bezerros.

“Como incluir pessoas que menstruam de todos os gêneros em mensagens de saúde pública sobre menstruação.”

Esse é outro motivo pelo qual nós devemos olhar torto para a introdução de termos como “pessoas que menstruam” e “incubadoras” na linguagem da saúde da mulher, gravidez e parto como resultado do transativismo hoje em dia. Essas frases tem uma história, elas estão ligadas especialmente ao tratamento desumanizador que mulheres negras sofreram como escravas sexuais. O documentário “Google Baby” mostra como mulheres são atualmente forçadas a tolerar a vida sendo tratadas como “incubadoras” em clínicas de barrigas de aluguel na India, geralmente dando à luz à bebês brancos através do óvulo e esperma dos doadores. Esse tratamento de mulheres que dão à luz em clínicas de barrigas de aluguel como linha de produção é de gelar a espinha, porém o negócio das barrigas de aluguel vê 12.000 estrangeiros por ano vindo à India para contratar os últeros, de mulheres geralmente pobres, em uma indústria que lucra um bilhão de dólares por ano.

Uma expressão da colonização tão racista e patriarcal quanto as barrigas de aluguel na India seria difícil de encontrar, se não fosse pela forma mais antiga de opressão: a prostituição. Hoje, 80% das pessoas usadas na prostituição são mulheres, assim como 98% das vítimas de tráfico humano. Quase todos os cafetões são homens, e o tráfico sexual gera aos homens 32 bilhões de dólares ao ano. Uma indústria pornográfica cada vez mais violenta lucra aproximadamente 97.06 bilhões de dólares, o que é mais que a renda das dez melhores indústrias de web tecnologia juntas. A última “moda” na pornografia é que mulheres sejam estupradas pelo ânus até que sofram um prolapso retal (“rosebudding”). Apesar disso, a Anistia Internacional sinalizou o seu suporte para essa indústria, se curvando à pressão de cafetões influentes.

Como aponta Cherry Smiley, mulheres indígenas são desproporcionalmente afetadas. Na Nova Zelândia, 15% das mulheres são maoris. No tráfico sexual completamente descriminalizado do nosso país, 32% das pessoas prostituídas são maoris. Uma narrativa está ganhando tração na Nova Zelândia, sem dúvidas alimentada pelos programas comandados por homens brancos no Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia (NZPC), que é “racista” criticar a prostituição das mulheres maoris e do Pacífico que estão na indústria. Lembre-se que a demanda dessa indústria vem de homens brancos e ricos. Em 2017, liberais ainda estão sendo induzidos a acreditar que mulheres indígenas são de alguma forma pré-dispostas inatamente a serem subjugadas aos abusos de homens brancos.

O livro de Angela Davis aponta que mulheres negras não tem apenas sido afetadas pelo acúmulo de opressões baseadas em raça, classe e sexo, como também tiveram que lutar mais que todas por representação política, até nos movimentos de resistência. Seu livro explora a intersecção do movimento abolicionista para acabar com a escravidão e a primeira onda do feminismo; nenhum dos dois representava suficientemente as demandas de mulheres negras. Sojourner Truth contestou as feministas brancas da primeira onda, assim como Bell Hooks com feministas da segunda onda. Hoje em dia, nós ainda vemos um movimento branco, classe média e liberal vendendo liberalismo “pró-sexo” e baseado em auto identidade como direitos da mulher. Isso aconteceu porque o backlash sofrido por cada onda do feminismo se certificou que o feminismo midiático se saísse domesticado, embranquecido e sexualizado.

Texto original: https://reneejg.net/2017/02/07/a-call-to-feminists-to-remember-the-history-and-sex-based-nature-of-womens-oppression/

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