UM CONTO DO PRESENTE

Melina Bassoli
QG Feminista
Published in
7 min readMay 1, 2023

Por: Andrea Franulic. Publicado originalmente em espanhol, no livro Incitada.¹

Para Ana María
por perseverar no amor

Nasce uma menina em algum lugar do planeta. Sua mãe, acompanhada de outras mulheres, dá a luz a ela. O anúncio de que é uma menina gera alegria geral na sala. Recebem-na com belas canções e não a separam de sua mãe. É uma menina e no mundo isso tem um valor muito positivo. Ela fica nua ao lado de sua mãe, então ela será vestida de rosa ou amarelo ou roxo ou azul. Estereótipos de gênero não existem. A mãe lhe dará um nome próprio. A mãe não está sozinha. Tem a avó, uma tia-avó, as amigas. O bebê está cercado de Amor e cuidados.

Acima de tudo, sabe-se que é um bebê do sexo feminino e isso tem um valor social e simbólico irredutível². Trata-se de uma mulher no singular. Como tal, ela tem a capacidade de dar a vida e a palavra, assim como sua mãe deu a ela, porque sua mãe de forma livre escolheu trazê-la ao mundo. O aborto é uma decisão bastante excepcional. As mulheres não baseiam sua sensualidade na relação heterossexual, mas no prazer clitoriano, no orgasmo feminino, que abre a sensualidade feminina a toda a sua energia criativa³. E, quando uma mulher decide engravidar, faz isso fiel ao seu livre desejo; sem pai ou com pai. Sem dúvida, celebra-se a liberdade, porque celebra-se a vida, ama-se tudo o que vive, e toda recém-chegada e todo recém-chegado ao mundo vem para ser feliz.

Desde antes de nascer e à medida que ela cresce, a mãe ensina à menina a sua língua materna e conta-lhe histórias orais, fábulas infantis, fala de histórias passadas, lê contos e, ao longo de tudo, as mulheres estão presentes como protagonistas da sua própria vida, em cuja grandeza feminina, a menina, que por ora chamaremos de Esperança, representa-se, reconhece-se, olha-se, deixa-se procurar e se encontrar. As genealogias femininas se expandem ao seu redor, referências de mulheres livres e rebeldes, referências de amor entre mulheres, referências milenares, seculares ou recentes; expandem-se nas imagens, no cinema, na literatura, na televisão, nos muros das praças e em todo ensinamento que a menina recebe.

Não existe imagem, nem palavra, nem ícone, nem nada em que a mulher apareça fragmentada, transformada em coisa, transformada em objeto comestível, consumível ou intercambiável. É inconcebível. Como também o é que mulher não seja ouvida, em nenhum aspecto da vida. Agora imagine como é inimaginável que uma mulher seja espancada, estuprada, esquartejada ou morta pelas mãos de um homem ou de vários homens. O corpo feminino é inviolável, é inviolentável, porque é ele que une a palavra ao corpo e o corpo à palavra, é um limite que não se discute, corrijo-me, nem é percebido como limite, é condição essencial da dignidade humana feminina⁴.

Ao léxico da língua materna faltam palavras femininas com conotações negativas e pejorativas. Ao contrário, a linguagem dá conta da simbologia da mãe por inteiro. O relacional está presente acima da competição (a divisão entre superiores e inferiores, entre vencedores e perdedores) e, na língua, em cada língua, o sentido do relacional atua como um sema comum que envolve todas as palavras. Além disso, os gêneros gramaticais marcam a diferença sexual como uma realidade elementar, necessária e enriquecedora. Ninguém tem vergonha de falar no feminino nem pede desculpas.

Esperança cresce e caminha segura pelo mundo: segura, confiante, sem medos irreais, sem falsas lealdades, sem pisar em ovos, sem calar por medo, sem se desculpar por falar, sem temer ser mal interpretada e, claro, sem negar seu sexo nem, muito menos, desejar ser do sexo oposto; também isso é quase inconcebível, pois não tem porquê, se alguém vem ao mundo para ser livre, com todas as possibilidades abertas para se autodefinir e significar sua diferença sexual ao longo de sua existência, sem armários, sem identidades, sem modelos nem moldes. A diferença sexual é considerada uma riqueza, não um estorvo, obstáculo, campo de batalha ou natureza a dominar⁵. Para isso, bastou que a menina aprendesse com a mãe que a liberdade é relacional⁶ e, portanto, é vivenciada quando há confiança na outra, no outro, assim como ela experimentou na primeira infância. Que bonita a união entre liberdade e confiança. Como poderia ser de outra forma se a confiança é contrária ao medo, à defesa, à reação inusitada? Assim, a menina poderá amar livremente. Será capaz de fazê-lo, sendo verdadeira consigo mesma, com seus sentimentos. Isso também aprendeu com sua mãe em sua primeira infância.

O sofrimento não ocorrerá nem mesmo em porções mínimas de sua vida. O sofrimento não é um pedágio que toda mulher que vem ao mundo deve pagar por ter nascido do sexo feminino, nem em doses moderadas nem em doses excessivas, nem uma vez nem ao longo da vida toda. Outra coisa é o sentir.

Entre os saberes femininos que chegam a Esperança, pela sua genealogia, está a arte, ou melhor, a alquimia, de transformar todos os sentimentos em palavras que fazem simbólico. São o sentimento, a emoção e a paixão que informam o pensamento e a linguagem. E esse sentimento não é encoberto, abandonado, resguardado, dissociado, mas toda ser humana e todo ser humano sabe ouvi-lo. Por esse motivo, falar na primeira pessoa e de si mesma é o mais natural.⁷

Está abolido tudo o que invoca hierarquias, força e poder: tudo. A criatividade das e dos seres humanos flui como uma fonte, pois mil possibilidades se abrem à imaginação e à expansão da consciência. Os relacionamentos se tornam mais interessantes, complexos, dinâmicos e profundos. O conflito relacional não é temido. Não são necessárias máscaras de qualquer tipo. A autenticidade é moeda corrente, não é preciso se esconder de ninguém nem fingir. A mentira está abolida. A competição e a traição entre as mulheres também está; o mal sagrado da inveja entre as mulheres nem sequer está representado no vocabulário, já que a medida do mundo não são os homens, pelos quais as mulheres devem competir. Não existe um padrão de perfeição pelo qual elas sejam medidas por eles e pelos valores deles, sejam estéticos, ideológicos, profissionais etc., estejam eles presentes ou não. Por isso, uma mulher é capaz de reconhecer explicitamente em outra mulher o seu mais além, a sua disparidade, a sua grandeza, e vice-versa, sem competição. A vida é tão franca e fácil!⁸

Em outras palavras, Esperança chega a um mundo onde a autoridade feminina, aquela que a faz crescer e florescer, está simbolicamente inscrita em tudo o que diz respeito à existência humana. Então, o augere é corporificado, praticado, nomeado, representado. Em suma, materializa-se e é reconhecido em todas as tomadas de decisão. Pela mesma razão, a violência dos homens contra as mulheres é impensável⁹; é impensável que animais sofram tortura, que crianças desapareçam e seus órgãos sejam traficados, que uma mulher morra empalada após ser estuprada, que indígenas sejam assassinados ou que florestas sejam intencionalmente queimadas. É impensável tudo o que é destruição, depredação; é impensável porque é ultrajante e te aperta o estômago como um nó, a garganta em um sopro de angústia, seu rosto em um acúmulo de sangue. Indigna, porque viola a dignidade.

Entre os significados do adjetivo “digna” estão os de excelência, destaque, e também seriedade, decoro. Portanto, “dignidade” é algo que transcende o material, está mais associado a algo intangível, embora visível. Dizemos “esta pessoa é digna, saiu digna da sala, não perdeu a dignidade”. É como se essa disposição da alma, para chamá-la de alguma forma, estivesse presente em alguém, além das circunstâncias, ou seja, pode-se ser digna, mesmo em situações de precariedade ou deficiência. Nesse sentido, a dignidade tem a ver com a grandeza feminina; grandeza na medida em que o corpo feminino, a diferença sexual feminina, constitui uma passagem entre a natureza e a cultura, algo que traz consigo; é o seu mais além, é o signo da espécie humana, aberta ao infinito¹⁰. Se não for esquecida essa realidade irredutível — embora ainda negada no final do patriarcado — não haverá espaço para precariedade ou enfraquecimento. Dignidade é uma palavra feminina, não por acaso. Esperança também. A menina cresce e é ela mesma.

1. Este texto surgiu, em plena revolta social no Chile (outubro de 2019), quando, com as Feministas Lúcidas, saímos às ruas com a pergunta: “o que é uma vida digna para uma mulher que se pretende livre?”, discutia-se e conversava-se sobre isso, por toda a parte, sobre os conteúdos da dignidade e de uma vida digna.
2. Compreendi melhor a importância fundamental do valor social e simbólico da mulher lendo a obra de Luisa Muraro, La indecible suerte de nacer mujer (“A sorte indescritível de ter nascido mulher”, em tradução livre).
3. Ver Carla Lonzi, “La donna clitoridea e la donna vaginale” e “Sputiamo su Hegel” (“Mulher clitórica e mulher vaginal” e “Vamos cuspir em Hegel”, em tradução livre). Ver María-Milagros Rivera Garretas (2019), “Carla Lonzi y otras. Los manifiestos de Rivolta Femminile. La revolución clitórica” (“Carla Lonzi e outras. Manifestos de Revolta Feminina. A revolução do clitóris”, em tradução livre).
4. Ver María-Milagros Rivera Garretas (2018), “¿Es ya impensable la violencia masculina contra las mujeres?” (“Já é impensável a violência masculina contra as mulheres?”, em tradução livre).
5. Ver María-Milagros Rivera Garretas, “La diferencia sexual en la historia” (“A diferença sexual na história”, em tradução livre).
6. Ver Lia Cigarini, “Libertad relacional” (“Liberdade relacional”, em tradução livre).
7. Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2019.
8. Ibid.
9. Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2018.
10. Ver Luisa Muraro, Op. Cit.

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