Um desabafo sobre feminilidade e a escolha que eu não tive
Eu lembro da primeira vez em que um adulto falou sobre os pelos que nasciam nas minhas pernas de menina. Eu tive excesso de hormônio durante a infância e, por conta disso, comecei a desenvolver características sexuais secundárias ainda muito nova. Já era difícil ter seios grandes e pelos embaixo dos braços enquanto as minhas amigas ainda tinham seus corpos de crianças, ainda que ninguém falasse nada. Tornou-se mais árduo ainda quando um professor, de quem eu gostava muito, me chamou no canto da sala de aula para sugerir que eu depilasse minhas pernas. Ele falou sobre o quanto eu era bonita, assim como as minhas “coleguinhas”, mas salientou que nenhuma delas tinha as pernas peludas como eu. Naquele tempo, com meu olhar de menina, não consegui ver maldade. Hoje, consigo perceber como nós somos aliciadas para suprir ás vontades do patriarcado desde muito cedo. Aquele dia foi só mais um na vida do meu então professor, mas a necessidade da depilação e o ódio pelo meu corpo foram coisas que eu carreguei comigo durante cada instante do resto da minha infância e da minha adolescência.
Eu cresci como uma garota que gostava de se expor — fotos de biquíni aos montes nas redes sociais estavam aí para isso. Mesmo tendo adquirido um profundo apreço pelo estudo da História, da Sociologia e da Filosofia, nada disso garantiu minha salvação do discurso liberal de que a feminilidade poderia, de algum modo, me “empoderar”. Como li por aí certa vez, embora o conhecimento seja emancipador, devemos desconfiar de todo tipo de ciência e teoria que é construída aos moldes da supremacia patriarcal. Eles podem até nos contar sobre diversas tragédias acontecidas no mundo, mas eles nunca vão se importar em falar do cunho político da Caça às Bruxas ou da profundidade de “O Segundo Sexo”, escrito por Beauvoir, por exemplo. Falar sobre Sartre é mais fácil, cabe melhor na grade curricular e não faz com que jovens descubram sobre a materialidade de sua opressão.
O que eu quero dizer com isso é que eu nunca fiz o tipo “garota alienada”, nos moldes estereotipados. Ao contrário: eu sempre gostei de ler, de falar e de ser escutada na escola, nos cursos que fiz e em todos os espaços que ia, era uma das primeiras da turma e todo mundo virava o rosto para mim, a fim de saber o que eu falaria frente a algum debate considerado polêmico. Eu me considerava, então, muito cheia de poder. Coitada. Mal sabia eu que, por mais esforçada que eu fosse em adquirir autoconfiança, jamais seria livre enquanto não me libertasse do peso que comecei a carregar quando, com 9 ou 10 anos apenas, um homem adulto me pediu que eu depilasse a perna. Por muito tempo, fizeram-me acreditam que não poderiam existir marcas piores do que aquelas deixadas pelas celulites e pelas estrias em meu corpo. Agora, posso dizer com convicção que não existe marca mais dolorosa do que a que o patriarcado deixa em uma menina, ao socializá-la de forma cruel e ardilosa, por toda a sua vida.
Minha primeira depilação foi aos 11 anos. Depois dela, passei muito tempo sem ir a festas com pelos aparentes nas pernas ou nos braços. Preferia usar calça jeans em dias calorentos do que aceitar a ideia de que me veriam com as pernas não depiladas — sim, a menininha de 9 anos que ouviu o pedido de um professor nunca deixou de existir aqui dentro e de falar comigo, pedindo que eu não a constrangesse outra vez. Todas nós que já nos depilamos, com pinça, com cera ou com o que quer que seja, sabemos que dói. A depilação é incômoda. Mas, pior que isso, é a dor de recusar um convite para ir para algum lugar que você queria muito apenas porque a depilação não estava em dia. É a de ir para uma confraternização de família e ouvir da sua mãe, das suas tias e tios, das suas avós e avôs que você deveria “fazer” a sobrancelha com mais frequência. Essa dor é terrível, porque ela te diz, disfarçada de palavras de “carinho”, que você não vale mais do que o que a sua aparência mostra.
Foi assim, ouvindo discursos aparentemente carinhosos de que “eu era linda, mas poderia ser ainda mais se… (me depilasse, escovasse meus cabelos, pintasse minhas unhas etc etc etc)”, que eu me tornei uma adolescente exibicionista. Com 14 anos, eu vestia roupas de academia só para tirar fotos e publicar no Instagram e no snapchat, na ânsia de que as pessoas me dessem a validação que eu mesma não conseguia me dar. Mesmo sendo uma leitora assídua, uma das primeiras da minha turma e tendo várias qualidades superiores a quaisquer padrões de beleza, eu sentia necessidade de exibir a minha aparência, porque me ensinaram a ser refém dela. Eu esperava que os likes e os comentários pudessem suprir o “está tudo bem” que eu não ouvi quando tinha apenas 9 anos, excesso de hormônio e dificuldade em respeitar minhas diferenças corporais na infância.
Fiz dietas irresponsáveis e emagreci 12kg em alguns meses aos 15 anos, acreditando que aquilo não era algo tão horrível assim, porque, “se eu me sentisse bem estando mais magra”, deveria fazê-lo. Era o discurso liberalista batendo em minha porta, me fazendo crer à qualquer custo que a feminilidade exacerbada e todo o meu exibicionismo eram escolhas, e não consequências, de uma infância roubada, de uma socialização dolorosa e de todo o sofrimento que as meninas passam apenas por serem… meninas em uma sociedade patriarcal e misógina. Eu achava que me arrumar, vestir roupas justas e publicar várias fotos nas redes sociais era legal, porque acreditava fielmente que estava fazendo isso por mim, pelo meu próprio bem-estar, pelo meu “amor próprio” (com muitas e muitas e muitas aspas). Eu queria falar de amor sem nunca ter tido a chance de me amar verdadeiramente.
Foi assim que eu me permiti entrar em relacionamentos com homens que elogiavam meu intelecto querendo apenas usufruir do meu corpo. Foi assim que eu achei que homens gostavam de mim pelo que eu era, quando eles só “curtiam” aquilo que eu publicava no Instagram. Foi assim que eu mergulhei de cabeça em relações rasas e tive minhas primeiras frustrações ao ver que os homens não estavam interessados em relacionamentos profundos, mas na superficialidade da feminilidade que me foi “ensinada” (mais como um adestramento). No corpo exposto nas fotos de biquíni que eu postei nos meus perfis em dias que eu sequer estava a fim de tomar um banho de piscina — apenas queria ter conteúdo para alimentar minhas redes e, consequentemente, todas aquelas pessoas que só queriam ver o meu corpo e nunca tiveram vontade de me conhecer como eu era. Com todas as minhas dores e cicatrizes, não só físicas, mas de vida. As internalizadas. As que eu expus aqui nesse texto, mesmo depois de anos dos acontecidos, porque ainda doem. Porque aquela garotinha de 9 anos ainda fala comigo e ainda me pede para não sair de casa sem estar depilada. Mas, hoje, após conhecer o feminismo radical, eu converso com a menina que um dia eu fui e digo que ela é muito mais. E sempre foi.
Estaria mentindo se dissesse que a solidão não foi, para mim, uma consequência da tomada de consciência. No cotidiano, eu me vejo muitas vezes só. Agora que sei quem sou e me policio para não reproduzir os ideais que me foram “enfiados goela abaixo” por muito tempo, não sirvo mais para muitas pessoas. Não sou “convite fácil” para saídas “leves”, porque sempre abro a boca para falar de assuntos considerados “pesados” (a realidade dói, e as pessoas não querem ouvir o que não lhes acaricia os ouvidos). Não sou a amiga mais legal nas redes sociais, porque não posto mais selfies que mostram mais os meus peitos do que o meu próprio rosto. Às vezes, isso dói. Dói descobrir que meu valor, para muitos, era o mesmo que o de um pedaço de carne. Mas é uma dor necessária. A dor de me separar de uma vida que não era minha. A dor de me desprender de um lugar que nunca me coube e que, não importa quanto esforço eu fizesse, jamais me caberia. Porque o patriarcado nunca está 100% satisfeito e sempre cobra mais de nós. A feminilidade é uma ferramenta usada pelos homens para que nós, mulheres, os satisfaçamos e os enriqueçamos.
Eu não optei pela feminilidade. Eu segui o caminho dela porque não me deram outra escolha. Não me ensinaram a valorizar todas as minhas potencialidades incríveis, mas se importaram constantemente em me lembrar de que eu deveria estar com a “beleza” em dia. Foi a teoria feminista de verdade — e não a apropriação que o liberalismo fez dela — que me apresentou um leque de opções até então desconhecidas. E é por isso que o feminismo luta: para que nós, mulheres e meninas, tenhamos escolhas de verdade. E não aquelas obrigações fantasiadas de “vontade própria” e “empoderamento” que o capitalismo e o patriarcado nos obrigam a cumprir. Desde muito cedo.
Somos escravas de um sistema que nos odeia. Só o nosso amor , por nós mesmas e umas pelas outras, pode nos libertar.