Deadpool é o filme que a Internet merece, mas não o que ela precisa
Há anos que o projeto do filme do Deadpool estava engavetado na 20th Century Fox e não saía porque o estúdio não acreditava que um filme de super-heróis para maiores pudesse ser lucrável.
As salas de cinema lotadas pelo mundo todo claramente discordam dessa visão e mostram que, pelo menos do ponto de vista econômico, o filme foi bem sucedido. Assim como toda essa gente, eu fui aos cinemas ver Deadpool. Mas saí insatisfeito.
Se você me emprestar um pouco do seu tempo, paciência e boa vontade, eu explico o porquê nas linhas seguintes. Com spoilers.
O personagem Deadpool foi criado nos anos 90 como uma subversão. Para quem precisa de um pouco de contexto, o final dos anos 80 e começo dos 90 nos quadrinhos norte-americanos são caracterizados pelo excesso de anti-heróis mercenários e violentos, repletos de músculos, armas, espadas e charutos, capazes de atirar com uma metralhadora com apenas uma mão enquanto ouvia um heavy metal e usava a outra mão para dar um tapa na bunda da Kim Basinger (que por acaso passava por ali na hora).
Dois personagens surgiram para questionar, subverter e satirizar esses anti-heróis: o Deadpool e o Lobo (na verdade, o Lobo surgiu diferente nos anos 80 mas foi repaginado com esse propósito no começo dos 90).
A diferença entre esses dois personagens é que o Lobo ridiculariza todo esse pacote machão, enquanto o Deadpool subvertia. Isso, claro, no início da sua existência.
Com o tempo, o personagem evoluiu e passou a ser uma espécie de subversão do gênero de super-herói como um todo. Por exemplo, todo super-herói já morreu em algum momento nos quadrinhos. Superman, Batman, Capitão América, Homem de Ferro, Homem-Aranha, Wolverine… todos encontraram seu fim em alguma história envolvendo elementos que os definiam de alguma forma. O Deadpool também teve uma saga “A Morte do Deadpool” pra chamar de sua mas, como é a essência do seu personagem, todos os clichês e conceitos desse tipo de arco são subvertidos na sua história.
Meu problema com o filme do Deadpool começa quando o filme não subverte nada. Pelo contrário: só contribui e segue os tropes tradicionais de filmes e histórias de super-heróis.
Permita-me utilizar um exemplo direto do filme pra explicar essa parte. Nos créditos de Deadpool, ao invés dos nomes dos atores (como tradicionalmente ocorre), o filme apresenta os seus personagens através dos esteriótipos que eles representam: a “gostosona”, o “alívio cômico”, o “vilão britânico”, o “personagem em CGI”, a “ajudante adolescente”.
Esse é um começo muito bom já que o filme inicia RECONHECENDO vários dos tropes das histórias de super-heróis. O problema é que… o filme só reconhece. Não há subversão. Vanessa continua sendo apenas a “gostosona”. Ajax é só o “vilão britânico”. Colossus é o “personagem em CGI” e a Míssil é a “ajudante adolescente”.
Não há subversão, não há mudança, não há sátira. Há apenas o reconhecimento das tropes, uma piscada e então o aproveitamento desses clichês para manter a história.
Se nós vamos realmente falar sobre subversão de tropes em filmes de super-heróis, então nós precisamos falar sobre quem REALMENTE faz isso: Dr. Horrible’s Sing-Along Blog.
Escrito e dirigido por Joss Whedon muito antes dele fazer Os Vingadores ou mesmo de Deadpool ser um projeto na Fox, Dr. Horrible’s é uma sátira perfeita do mundo das histórias de super-heróis.
Ali, o “Capitão Super-Herói” não é bondoso, escoteiro e gentil — é arrogante, babaca e maligno. O “Cientista do Mal” na verdade tem bom coração e seus planos malignos sempre falham não por causa da sua incompetência, mas porque auto-sabotagem inconsciente. A “Mocinha Par Romântico Que é Sempre Salva Pelo Herói”…. bom, essa a gente comenta outro dia.
Não há subversão quando o trope é seguido à risca em sua definição básica. Deadpool é uma história de origem seguindo absolutamente todos os passos de uma história de origem de super-herói: herói conhece mocinha, ganha poderes, separa da mocinha para protegê-la, enfrenta o vilão, mocinha é sequestrada e feita de refém, herói vem ao resgate e tudo termina com uma panorâmica e o pôr do sol — além, claro, da cena pós-créditos obrigatória.
Agora, é verdade que o filme do Deadpool RECONHECE tudo isso. Afinal de contas, uma das características do personagem é a quebra da 4ª parede, o diálogo direto com o público e a consciência de que se trata de uma HQ/filme. Mas reconhecer é diferente de subverter.
“Mas Deadpool é engraçado!” — bom, eu não disse que não era. Mas é curioso que você puxe esse assunto bem na hora que eu estava pensando sobre o humor em Deadpool.
Deadpool tem algumas piadas ótimas, algumas só boas, algumas ruins e umas bem, bem ofensivas. Meu problema não é só com a proporção da divisão entre essas piadas, mas principalmente com o ângulo da piada.
Eu não acredito que haja temas que não possam ser trabalhados em piadas. Sangue, sexo, gênero, idade… tudo é passível de gerar e ser trabalhado com o humor. A diferença é o ângulo da piada. É onde está a graça.
O Deadpool em certa parte do filme está morando com uma senhora de idade negra e cega. Essa situação é alvo de muitas das piores piadas do filme e vou escolher uma pra explicar meu ponto de vista.
Em uma certa parte do filme, Deadpool chega em casa e faz uma menção a sexo com a Al, se desculpando depois dizendo que “faz décadas” que ela não sabe o que é sexo. Ela responde dizendo que ele “ficaria surpreso”, indicando que faz sexo com alguma frequência — à isso, Deadpool responde com “Nojento, por favor não fale mais sobre isso”. Todos riem.
Mas… onde está a graça? A graça está no fato de ser “nojento” uma senhora de idade fazer “sexo”. A mesma “graça” é repetida pouco depois, quando a Al sobe um pouco o vestido pra tirar uma arma que tem na meia e o Deadpool diz “sobe, sobe. Agora abaixa, abaixa rápido”.
Porque o corpo de uma idosa é nojento e isso é hilário, né pessoal?
A Al é uma personagem muito forte nas HQs e toda a crueldade que o Deadpool faz com ela é realmente retratada como crueldade — embora ela sempre mostre força para dar o troco nele. No filme, Al é apenas uma old rag e serve como propósito de gerar “old rag jokes”.
Isso sem falar na misoginia de Deadpool, que vem em doses de piadas e em doses de cenas sérias. Nas piadas, destacam-se duas particularmente danosas:
- a primeira é feita durante a cena do sexo temático de feriados — que é muito interessante por ser uma maneira inteligente de mostrar a evolução do casal, marcar a passagem do tempo e gerar humor — onde cada feriado gera um tipo temático de atividade sexual, até chegar no Dia Internacional da Mulher onde rola um sexo anal com o Deadpool como passivo (porque é isso que as mulheres fazem com o Dia Internacional da Mulher — e tudo que ele representa, como a luta do feminismo — né?);
- a outra vem na batalha final, quando o seio da Angel aparece, o Colossus tampa os olhos e espera ela se arrumar e leva um soco por isso — é a retribuição típica que as mulheres dão para quem tenta ser legal com elas, né?.
Enfim, todas essas péssimas piadas apenas reforçam esteriótipos negativos e são feitas por e para o que eu carinhosamente chamo de nerde de Internet. Você conhece o tipo: ri quando vê qualquer referência que seja, mesmo que não seja uma engraçada (devem achar Pixels, do Adam Sandler, “épico”); reclama do Tocha-Humana negro porque “nas HQs não é assim”, mas não levanta a voz pra reclamar do Bane que não é latino, do Duas-Caras que não foi ferido no Tribunal e nem da Mary Jane substituindo a Gwen Stacy no primeiro Homem-Aranha (muito provavelmente porque nenhum “nerde de Internet” leu uma HQ de verdade, apesar de compartilhar todas as imagens da Legião dos Heróis no Facebook); não vê problema com a boob window da Poderosa, afinal o “Superman também serve de fan service para as mulheres” e quem reclamar disso é feminazi e attention whore; é apaixonado pela Arlequina e acha o relacionamento dela com o Coringa uma história de amor, e não uma de abuso; passa o dia fazendo piada de friendzone e reclamando que as minas não dão bola pra ele porque ele é nerdão (é sim, filhote, é sim).
No fim das contas, eu não gostei desse filme porque ele não traz o Deadpool dos quadrinhos, mas o Deadpool da Internet, do 9gag, Reddit ou Imgur; da Legião dos Heróis e outras páginas de “humor com super-heróis” no Facebook. É o filme do Deadpool que Internet pediu e merece, mas não aquele que ela precisa para melhorar.
“Ah, mas deixa de ser chato, cara! Esse filme é daqueles de desligar o cérebro e curtir”.
Não, cara, esse filme é praqueles de cérebro desligado.