Existe uma batalha pela iconografia americana escondida em Kingsman 2

Leandro de Barros
Quadro a Quadro
Published in
9 min readDec 31, 2017

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Iconografia, substantivo feminino, é o conjunto de imagens relativas a um assunto determinado, como define o dicionário Priberam.

Uma iconografia carrega muito poder. Além de representar um certo tema, ela ainda tem a capacidade de trazer uma narrativa à tona apenas ao ser evocada.

Se eu citar “almoço em família”, “futebol na TV”, “Faustão” e “Fantástico”, você já sabe que eu estou falando sobre “domingos” (iconografia). Se esse domingo será “tedioso” ou “típico da família brasileira”, vai depender da narrativa.

Com isso em mente, Kingsman: O Círculo Dourado engaja numa batalha interessante pelos EUA e o que a cultura americana representa.

Mas antes disso… como eu sei sobre o que é um filme?

Você já leu alguma crítica que diz que tal filme foi “mal desenvolvido”? Esse é um jargão comum no meio da avaliação cinematográfica. Até mesmo nós, meros mortais, costumamos dizer isso de um filme que não gostamos.

Mas o que é um filme “mal desenvolvido”? De alguma forma, todos nós sabemos instintivamente reconhecer um projeto com desenvolvimento ruim, mas fica mais difícil explicar como e por que esse filme é assim.

O tema de um filme (ou “sobre o que o filme é”) costuma ser desenvolvido seguindo três elementos básicos:

  • Apresentação;
  • Conflito/Variação;
  • Alteração/Confirmação.

Provavelmente existem nomes melhores para isso e você encontrará explicações melhores em livros técnicos de cinema e storytelling, mas a estrutura básica é essa.

Um tema é apresentado (ou demonstrado, estabelecido), depois ele sofre uma variação ou é conflitado com uma visão diferente. Como consequência disso, o tema é confirmado ou alterado.

Você pode ver essa regrinha funcionando nos contos de fadas, por exemplo. Veja a história da Chapeuzinho Vermelho:

  • A mãe diz para ela não conversar com estranhos no bosque (apresentação do tema);
  • Ela ignora o conselho da mãe e conversa com o lobo mau na floresta (conflito);
  • O lobo mau se aproveita disso e come a vovozinha (confirmação do tema e elaboração da moral: ela não deveria ter conversado com estranhos).

Com isso em mente, vamos voltar para o assunto do dia.

O que Kingsman 2 é e o que tenta ser

Comecemos com uma pergunta simples: qual o tema de Kingsman 2?

Muita gente poderia argumentar que “Kingsman 2 não tem tema, é um filme para desligar o cérebro e se divertir, não ficar analisando as coisas”. Muita gente estaria errada.

Todo filme tem uma estrutura temática. Ela pode ser ruim, mal feita, clichê, boba, simples ou qualquer outra coisa, mas existe.

Então: qual o tema de Kingsman 2?

Talvez sua primeira resposta seja “legalização das drogas”. Afinal, grande parte do plot do filme gira ao redor disso.

Isso explicaria parte das críticas ruins ao longa, já que esse tema é mal desenvolvido no filme. Vamos aplicar nossa regrinha?

Nós temos o assunto sendo apresentado/estabelecido no meio do filme, quando o plano da vilã vivida por Julianne Moore é executado, mas nunca temos um conflito e nem uma confirmação/alteração.

O máximo que temos são vilões dizendo que usuários de drogas devem morrer e mocinhos dizendo que não. Esse é um conflito, sim, mas não sobre “legalização de drogas”, mas sim sobre “criminalização do usuário”.

É por isso que o filme fica meio capenga: ele apresenta um tema, debate outro e não conclui nenhum. Com boa vontade, podemos ver ali uma declaração sobre como o usuário é o prejudicado na briga de poder entre fabricantes e governo.

Porém, Kingsman 2 brilha mesmo, de verdade, quando ele faz o mesmo que o primeiro filme fazia: disputa e questiona uma iconografia.

Peraí… quê?

Uma das coisas mais legais do primeiro filme da série é sua capacidade de fazer um comentário através do questionamento de certos símbolos.

Vamos lá:

O filme pega vários os ícones de filmes de espiões (o herói machão, a super-elegância, os gadgets maneiros, a estrutura governamental secreta) e os contrapõem com o protagonista e suas ações

Eggsy é um criminoso (apesar de ter sido do exército), é pobre, não possui uma educação privilegiada e suas roupas são completamente destoantes do padrão de elegância de um 007… quer dizer, de um Kingsman.

Porém, ele e Roxy são os aprovados a serem heróis e salvam o mundo. Com isso, o filme faz um comentário bem interessante:

O “herói” não é classificado assim por causa dos símbolos que ele carrega; mas o contrário: os símbolos se tornam ícones porque são usados pelos “heróis”.

Ou seja: não é a roupa, os gadgets ou a estrutura secreta que fazem de um Kingsman o que ele é. É o heroísmo e a personalidade que fazem de um herói o que ele é.

É a tendência do Eggsy e da Roxy de salvar todos em cada fase do treinamento que os transformam em Kingsman e não os outros símbolos que todos os outros candidatos já possuíam, incluindo Charlie (vilão dos dois longas).

Beleza, mas o que isso tem a ver com Kingsman 2?

Ok, eu sei que estou escrevendo demais e agradeço a sua paciência de ler até aqui, mas a gente precisava desse passo para seguir para o próximo.

Da mesma maneira que Kingsman 1 trabalha com a iconografia do espião (ou, talvez, podemos chamar de “iconografia britânica”), O Círculo Dourado faz a mesma coisa com outro país: os EUA.

Os “policiais do planeta” são os protagonistas de praticamente qualquer projeto de grande orçamento que vemos nos cinemas e, como tal, geram uma iconografia muito rica de significados.

O cowboy, o presidente, o sulista… são todos ícones de heróis americanos que são propagados por Hollywood e que, de uma forma ou outra, acabam desconstruídos e ressignificados em Kingsman 2.

Eu separei três dos meus exemplos favoritos para ilustrar esse comentário:

O primeiro exemplo é a cena no bar, quando Harry começa a recuperar a sua memória e tenta recriar a famosa cena onde enfrenta alguns capangas no primeiro longa.

Como seu cérebro ainda não está 100%, ele erra tudo que tenta fazer e acaba perdendo a briga. É nessa hora que Whiskey intervêm e diz que os briguentos não estão dando uma típica “recepção do Kentucky”.

Eu gosto dessa cena por dois motivos simples: a expressão “estilo de Kentucky” (que podemos entender como “jeito americano” também) e a “tradução” da cena do primeiro filme para o “jeito americano”.

Ou seja: além de colocar na boca do Whiskey (que é exatamente o “traidor” no fim do filme) a primeira menção ao “jeito americano”, a cena ainda acontece numa espécie de rima de uma das cenas mais tematicamente icônicas do primeiro longa.

Essa é a introdução do nosso tema: o “jeito americano”, a iconografia americana.

A próxima cena que eu separei é a conversa entre Whiskey, Harry e Eggsy depois de Poppy ser derrotada.

Nesse momento, Whiskey se apresenta como um “traidor” e tenta impedir que o antídoto para o veneno seja liberado e os usuários de drogas sejam salvos. O mais interessante da cena é essa troca:

Essa é a exposição máxima do conflito temático do filme. O “herói americano”, representante da iconografia do país, não faz jus ao que representa.

A discussão é poderosa: afinal, qual a essência do “herói americano”, do “estilo Kentucky”? É “fazer dinheiro”, “matar criminosos” ou “manter a paz”?

Não quero entrar numa onda política com esse texto, mas considerando o subplot do presidente dos EUA no filme e traçando o paralelo com a realidade do governo americano hoje, dá para entender mais profundamente o comentário que o filme faz com esse conflito.

Por fim, eu quero chamar uma cenas para o exemplo final, o da “conclusão” do tema. Essa:

O mais interessante da morte de Merlin é que ele está cantando uma música tipicamente americana, mas com um arranjo escocês.

Clique aqui para ouvir a música no YouTube e repare no som da gaita escocesa no arranjo da música a partir dos 28 segundos

É quase como uma mescla cultural, que funciona de duas maneiras: numa primeira vista, é a variação do nosso tema.

Ou seja: o jeito americano, que usa símbolos como o cowboy para transmitir altruísmo e heroísmo, pode ser evocado por qualquer pessoa.

Ao mesmo tempo, numa segunda vista (depois que já vimos a revelação do Whiskey) essa cena parece como uma conclusão ao tema: não só qualquer pessoa pode evocar esses significados, como o “jeito americano” não está obrigatoriamente preso ao americanismo.

No caso, uma pessoa de qualquer nacionalidade pode ser o “herói americano” e o que ele representa.

Existem outras cenas que trazem a mesma conclusão (o convite para Harry ou Egssy integrarem os Statesman, o agente Tequila ganhando um terno da Kingsman), mas eu quis destacar essa por dois motivos:

O primeiro é que ela mostra como uma mesma cena pode dialogar de forma diferente dependendo da quantidade de informações que você possui. Ou seja: na primeira vez que vemos temos a visão X e, depois da revelação do Whiskey, temos a visão Y.

O segundo é que o desenvolvimento do tema não precisa seguir o filme cronologicamente. Ou seja: não precisa ser algo como A — B — C, pode ser A — C — B ou C — A — B.

Por mais que pareça que eu estou me repetindo, queria reforçar que essas três cenas são apenas exemplos do desenvolvimento temático do filme. Existem outras cenas e momentos que ajudam a fortalecer esse assunto. Por exemplo:

  • Merlin discute com Tequila e diz que a palavra whiskey não possui a letra “e” (reforçando as diferentes visões de um “escocês” e um “americano” sobre a mesma coisa);
  • O Agente Tequila, um bom símbolo do “verdadeiro americano”, seria um dos condenados pelo Presidente por usar drogas;
  • O arco da Ginger é bem parecido com da Roxy no primeiro filme e reforça a ideia de mudança de padrões (mulher virando agente, alguém do time de suporte indo para o campo);
  • Todo o universo que rodeia a Poppy reforça a ideia do filme, a maneira como ela se apropria de elementos dos anos 50 (o milkshake, o filme, a estética) e ressignifica cada uma dessas coisas é, basicamente, o que Kingsman faz desde o primeiro filme;
  • Além disso, toda a estética dos anos 50 da Poppy é também uma “estética americana”, faz parte da iconografia daquela cultura, o que reforça a discussão temática do longa;
  • A própria destruição dos símbolos americanos antigos no esconderijo da Poppy por Eggsy e Harry.

Nós poderíamos usar qualquer uma dessas cenas e elementos para discutir sobre essa “ressignificação” da iconografia americana.

Ok…

No fim, apesar de tentar liderar algum tipo de debate ou declaração sobre o uso de drogas, Kingsman 2 é um filme que brilha mesmo quando faz o que sabe fazer melhor: discute símbolos e seus significados.

O que é uma marca registrada da parceria entre Matthew Vaughn (diretor), Jane Goldman (roteirista) e Mark Millar (criador das HQs). Eles já fizeram exatamente o mesmo com super-heróis em Kick Ass.

Se a conclusão que o filme chega é boa ou não, se concordamos ou não, é assunto para outra conversa, em outro dia.

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