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USS Callister — A fragmentação do Eu e nossa relação com os outros

Leandro de Barros
Quadro a Quadro
Published in
6 min readSep 24, 2018

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A quarta temporada de Black Mirror começa com USS Callister, um episódio tematicamente muito rico e que possui alguns conceitos que serão melhor explorados nos capítulos seguintes.

Como sempre, a tecnologia apresentada no episódio guarda a chave para explorarmos a temática principal da história. Nesse caso, estamos falando do mundo virtual criado por Robert Daly.

Apesar dessa tecnologia servir como base para um video-game em realidade virtual, o grande lance do episódio é que Daly guarda uma versão própria do jogo para si, onde ele pode criar avatares das pessoas do seu dia a dia e jogar com esses “clones”, exercendo todo seu poder e vontade sobre eles.

Essa tecnologia permite ao episódio discutir dois temas muito interessantes: a fragmentação do eu (e as expectativas sociais que derivam disso) e nossa complexa relação com nós mesmos.

Pareceu complicado? Vamos por partes.

Você já notou que existem “diferentes versões” de você mesmo para cada situação ou relacionamento da sua vida?

Existe o “você profissional”, que levanta de manhã e vai trabalhar, interagindo com patrões, clientes e colegas, discutindo questões de trabalho e afins. Ao mesmo tempo, existe o “você cônjuge”, que mantém um relacionamento com um(a) parceiro(a).

Tem também o “você doente”, que é a sua versão que apenas seu médico conhece quando você vai a uma consulta. O “você bodybuilder”, aquela sua versão que se matricula na academia, aparece na primeira semana e depois some.

E por aí vai, milhões de fragmentações de você, diferentes versões e “papéis” atribuídos a sua pessoa com base nas centenas de interações e relações do seu dia a dia.

Se você já sentiu ou percebeu isso, saiba que não está sozinho: o ser humano está fragmentado na sociedade moderna. O sociólogo Peter Berger descreve esse fenômeno no seu livro The Homeless Mind:

“Diferentes setores da vida cotidiana se relacionam a mundos de significados e experiências altamente diferentes e severamente discrepantes. A vida moderna é tipicamente segmentada em um nível muito alto”

Ok, e o que exatamente isso tem a ver com USS Callister? Vamos ver.

Nós somos apresentados a diferentes versões de Robert Daly durante todo o episódio. O capítulo, aliás, começa com a apresentação do Capitão Robert Daly, líder da USS Callister, a visão que o personagem tem de si mesmo.

Logo depois nós vemos Daly no seu ambiente de trabalho, como o profissional perdedor e ignorado / desprezado pelos colegas.

No mesmo dia, nós vemos a nova funcionária Nanette, que está ansiosa para trabalhar com o “Robert Daly dos seus sonhos”, o lendário programador.

Conforme o episódio prossegue, nós ainda vemos o “malvado” Capitão Robert Daly, a versão do personagem no seu mundo próprio, mas do ponto de vista dos “clones”.

Além de Daly, esse mesmo efeito é replicado em outros personagens. Veja Nanette, por exemplo:

Temos a versão “de escritório” dela: dedicada, sociável, talentosa e que admira o chefe. Ao mesmo tempo, temos a sua versão “real”, que faz tudo para evitar que seus nudes vazem.

Ainda continuamos com a “Tenente Cole”, o papel fantasioso designado por Daly, e o seu clone “real” dentro daquele mundo.

Os conflitos do episódio nascem da maneira como as pessoas lidam com essa fragmentação.

Quando Daly começa a ser humilhado, diminuído e anulado pelos seus colegas de trabalho (o termo psicológico seria “castrado”, mas falaremos sobre isso mais adiante), ele entra em um conflito: ele se vê como o “Capitão Daly”, mas é tratado como “Daly, o perdedor”.

O personagem possui duas opções: ou combater esse tratamento e se tornar o “Capitão Daly da vida real” ou aceitar essa fragmentação e se tornar duas pessoas: o Daly-perdedor do lado de fora e o Capitão do lado de dentro.

Ele decide pela segunda opção e cria seu jogo e mundo virtual próprios. Cada vez que uma pessoa do lado de fora o relembra dessa fragmentação ou a reforça, ele revida ao criar um clone desse alguém (ao fragmentá-lo também).

Essa é, de certa forma, a visão de Peter Berger sobre a fragmentação do eu. De maneira simplificada, ele afirma que “não é uma surpresa que o homem moderno seja afligido por uma permanente crise de identidade, uma condição que favorece um nervosismo considerável”.

Esse ciclo se repete inúmeras vezes até a chegada de Nanette, que direciona o conflito máximo do episódio: e se você se recusar a aceitar a fragmentação imposta por outrem?

Ela luta contra e até chega a fingir ter assumido o papel imposto, para finalmente se libertar das projeções de outras pessoas e assumir o comando da sua “própria nave”. Entendam como quiserem.

Ao concluir a história nesse tom, a série parece seguir a visão proposta por danah boyd, pesquisadora em tecnologia e redes sociais, que trabalha atualmente com a Microsoft.

Na sua tese de mestrado, boyd defende que teorias como a de Berger “falham em reconhecer a ação do indivíduo em separar suas identidades internas e sociais”. Segundo ela, nós fragmentamos apenas nossas identidades sociais, ou seja, aquilo que somos perante os outros, ou os papéis que interpretamos publicamente.

Nossa identidade real, interna, permanece a mesma, abrigando todas essas diferentes versões sem danos.

É o caso da Nanette, capaz de navegar entre os diferentes papéis impostos socialmente, sem nunca aceitar que essas versões sociais possam sobrepor sua identidade pessoal.

Por isso mesmo, ela consegue liderar a USS Callister a fugir do mundo digital imposto por Daly e anular o “Star Fleet mod” aplicado por ele.

Aliás, aqui já começamos a entrar na “relação com nós mesmos”, segundo grande tema do episódio.

Não é a toa que esse mundo de clones criados por Daly é totalmente digital, como em um video-game, que ele acessa quase que “dentro da própria cabeça”.

O jogo do episódio serve como uma excelente metáfora para nossa própria consciência e a projeção de nós mesmos (e dos outros) que fazemos dentro dela.

Um dos grandes exemplos disso é a questão da masculinidade tóxica da nossa sociedade retratada no episódio, já bem debatida por aí em vários sites (indico os textos do Delirium Nerd e do Nebulla para quem quiser se aprofundar).

No episódio, nós vemos Daly sendo “castrado” pela vida ao seu redor. Essa castração remete a sua fragmentação já citada: incapaz de corresponder ao papel que ele tem na própria cabeça, Daly fica incapaz de tudo.

Ele parece ter pouquíssimo poder no seu dia a dia, sendo até mesmo incapaz de entrar no prédio da sua empresa sem a ajuda de outra pessoa.

A maneira que ele encontra para lidar com isso é criar um mundo próprio (sua cabeça), invertendo os cenários: se na vida real ele é castrado e seus colegas possuem o poder, na sua projeção são os outros que não possuem genitais.

Esse fato mostra um dos aspectos mais nocivos da masculinidade tóxica: a relação de poder entre os gêneros como fonte real de prazer.

Quando Daly castra seus companheiros na USS Callister, além de retirar seus genitais, ele está também os dessexualiza. Mesmo assim, mesmo com todas as moças removidas de sexualidade, ele ainda exige “tributos” com símbolos sexuais: o beijo no final de cada missão, por exemplo.

Fica claro que o que importa para ele não é a sexualidade das moças, mas sim o ato de submissão. Também fica claro como certos gestos que são comuns no nosso dia a dia têm a mesma dinâmica.

Por exemplo, os “fius-fius” na rua. São menos sobre sexualidade e muito mais sobre poder.

Com tantos temas para trabalhar, não é uma surpresa ver que o episódio é denso e que dá origem a múltiplas interpretações. A própria roupagem de Star Trek, por exemplo, permite discutir como esses elementos se manifestam na cultura dos fandoms, especialmente na Internet.

Aliás, quando foi feito, o episódio não sabia da reação dos “fãs” ao lançamento de Star Wars: Os Últimos Jedi. Mas considerando as notícias que vieram a seguir, é difícil imaginar Daly como um dos “fãs” de Star Wars?

Recentemente, a Netflix anunciou uma nova temporada de Black Mirror. Vamos torcer para que venham mais episódios como USS Callister.

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