A Hipótese PCC

Qualidade da Democracia
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6 min readAug 6, 2015

Nove anos após a crise da segurança pública de 2006 surgiram novas evidências de que existiu um pacto entre o governo de São Paulo e o PCC. O depoimento do Delegado José Luiz Ramos Cavalcanti no processo judicial que investiga a relação de advogados com o crime organizado revela que ocorreu um encontro dos então secretários Saulo de Castro Abreu Filho, da Segurança Pública, e Nagashi Furukawa, da Administração Penitenciária, com o principal líder do PCC. O objetivo da reunião era estabelecer um pacto para por fim à rebelião nos presídios e nos enfrentamentos generalizados entre criminosos e policiais que ocorria nas principais cidades do Estado.

Na visão de parte importante dos observadores e analistas da segurança pública, a confirmação do pacto em 2006 por uma testemunha que presenciou a ação e os detalhes narrados favorecem a hipótese de que o PCC é o grande agente responsável pelo que acontece na segurança pública de São Paulo. O PCC, por meio de seus ‘tribunais’, ‘sintonias’ e ‘salves’, deu voz e unidade aos negócios dispersos das ‘biqueiras’ do Estado e submeteu os 130 mil policiais de São Paulo e o maior sistema prisional do país à sua lógica. Essa é a “hipótese PCC”, que atribui à organização criminosa o papel de agente moderador da violência. Por desfrutar de um enorme poder social e ter se firmado como a voz da unidade do crime, a organização teria sido capaz de controlar a forma como os negócios ilícitos são operados em São Paulo, restringindo as práticas violentas entre criminosos sempre que possível. Debate semelhante ocorre em vários países da América Latina. Em El Salvador o governo praticamente assumiu a negociação pública com os principais grupos criminosos do país pela redução de homicídios, no México o governo nacional é acusado de conivência com determinados cartéis para facilitar a repressão de concorrentes e em Medellín, na Colômbia, há um intenso debate sobre as causas da redução de mais de 70% na taxa de homicídios entre o início da década de 2000 e a década atual. Seria a política urbana dos prefeitos Sergio Fajardo e Salazar Jaramillo a causa principal da mudança no padrão da violência, ou o acordo com os grupos criminais “Oficina de Envigado” y “los Urabeños”? O debate em São Paulo é basicamente o mesmo: políticas públicas versus conivência e negociação com o crime organizado.

A forma como organizações criminosas atuam nos mercados ilícitos pode ter efeitos significativos sobre a segurança pública. No caso de São Paulo, a presença nos presídios e o controle dos nichos mais importantes do crime nos grandes centros urbanos do Estado garantem ao PCC o poder de atingir instituições públicas e afetar a vida de amplos segmentos da população. No entanto, há grandes diferenças na atuação do crime organizado dentro e fora dos presídios. Comparações internacionais indicam que organizações criminosas estão presentes na maioria dos sistemas prisionais. David Skarbek, no seu livro The social order of the underworld, mostra que há um poderoso mecanismo de governança extralegal dos presídios no Estado da Califórnia — algo que muito provavelmente também ocorre em São Paulo. Não é possível entender como funcionam os presídios, sem conhecer como operam as estruturas informais de controle mantidas pelos próprios presos, em particular por aqueles que fazem parte de organizações criminosas como é o caso do PCC — ou da Fraternidade Ariana e dos Crips na Califórnia. As normas informais nos presídios, mantidas por organizações criminosas, existem para coordenar a convivência entre os presos e para regular o mercado de bens e serviços ilícitos que prospera no interior de qualquer grande prisão. Embora o governo do Estado de São Paulo mantenha o sistema prisional blindado contra qualquer tentativa de investigação externa e independente, as evidências etnográficas disponíveis atestam o total controle do crime organizado intramuros. Esse caminho nos leva a reconhecer que muito provavelmente as autoridades do Estado negociaram em 2006 o fim das rebeliões nos presídios e continuam negociando até hoje as regras que garantem a convivência no sistema prisional. Trata-se de um pacto não no sentido macro, mas sim, da negociação de regras restritas a unidades prisionais específicas. Não é difícil aceitar o argumento de que em um lugar onde todos os bens e serviços, do papel higiênico ao lugar para dormir na cela, são conseguidos e transacionados de forma ilícita, há uma forte disposição dos agentes públicos para aceitar e tolerar algum nível de participação de grupos organizados na gestão do dia a dia dos presídios. Na Colômbia e no México, Pablo Escobar e El Chapo Guzman cumpriram suas penas cercados de todos os confortos possíveis, em presídios que foram especialmente construídos para abriga-los. É verdade que os líderes do PCC tenham, talvez, recebido alguns privilégios, como não passar o tempo que deveriam passar no sistema disciplinar diferenciado, mas não consta que vivam em celas decoradas com antiguidades e que recebam prostitutas ou tenham acesso livre a bebidas alcoólicas e drogas. O presídio de Presidente Bernardes definitivamente não é ‘La Catedral’, a prisão mítica que abrigou Escobar, mas talvez se pareça um pouco com San Quentin da Califórnia, no que diz respeito à forma como a administração lida e negocia com os grupos criminosos que governam a vida dos presos.

Outro problema muito diferente é a atuação do crime organizado fora dos presídios. E é nesse aspecto que a hipótese PCC se mostra menos plausível. Há dois caminhos principais para entender a atuação de grupos criminosos organizados na sociedade: podemos olhar para a organização criminosa em si — sua estrutura organizacional, divisão de tarefas, hierarquia, etc. -, ou podemos investigar os sinais que indicam a presença de negócios ilícitos e a partir daí chegar à organização ou organizações que realizam essas atividades. O relatório final do grupo de trabalho dedicado a monitorar as atividades criminais no Estado de São Paulo divulgado em dezembro de 2014 mostra que há uma extensa atividade criminal organizada distribuída ao longo de dois grandes corredores que ligam as cidades de Presidente Prudente a Santos. Crimes como roubos de carga, o refino e o tráfico de cocaína, roubos de banco e de carga e a exploração de caça níqueis refletem a presença difusa de centenas de organizações criminosas em São Paulo, com ramificações inclusive no comércio legal e na burocracia estatal. A grande dúvida é saber como essas organizações se conectam sob a denominação comum de PCC e como atuam coletivamente. Estudos recentes sobre o crime organizado enfatizam a importância das redes formadas entre organizações e a existência de vínculos que podem ser criminalmente explorados. Nessa linha, podemos entender o papel do PCC como um arquipélago formado por centenas de grupos com estruturas diferentes que se conectam com o fim de realizar atividades ilícitas e que compartilham uma estrutura de coordenação para administrar a vida nos presídios. Fora dos presídios, a rede do PCC garante canais seguros de comunicação entre infratores e atua esporadicamente para sancionar os que violam as regras de convivência acordadas pelo que seria o poder legislativo do crime, formado pelas lideranças oriundas de diversas organizações e quadrilhas que se encontram encarceradas nos presídios do Estado. Em larga medida as regras ditadas são respostas racionais e adaptativas à pressão exercida pelas polícias e pela justiça.

Desde o final da década de 1990, o sinal emitido pelas políticas públicas de segurança indica claramente que os crimes violentos não seguiriam impunes. A Polícia Militar mudou radicalmente a distribuição de seu efetivo, a lei que penalizava mais severamente o porte de arma entrou em vigor em 2003, o Departamento de Homicídios da Polícia Civil aumentou muito a taxa de elucidação de crimes, e o Ministério Público teve bons resultados nas condenações de homicidas e na desarticulação de grupos de extermínio, na maioria formados por policiais. É possível destacar dezenas de ações de política penal e de segurança pública que foram empreendidas, não por determinação de um governo específico, mas que parecem decorrer de pequenos ciclos virtuosos produzidos pelas próprias instituições do sistema de justiça criminal. No entanto, os bons resultados na redução da taxa de homicídios que essas políticas produziram, e que foram capazes de salvar milhares de vidas de jovens nas áreas mais pobres do Estado, parece apenas um detalhe pouco importante para alguns observadores. O motor da engrenagem que levou à redução de 75% da taxa de homicídios em uma década seria a presença do PCC. Tivemos “sorte” de ter uma única organização criminosa atuando no nosso estado, sorte da qual se beneficiaram os governantes que estabeleceram com essa organização um pacto de convivência lucrativo para ambos. Considero um equívoco confundir a capacidade institucional do Brasil em matéria de justiça criminal, e do estado de São Paulo em particular, com o que existe em El Salvador, na Colômbia ou no México — apesar dos notáveis avanços da Colômbia nas últimas décadas. Um equívoco que pode ter um custo pesado para a sociedade no futuro próximo e que contribui para a desinformação sobre o papel que a política de segurança pública e a política penal desempenham na contenção do crime violento em uma sociedade democrática.

Leandro Piquet Carneiro é Professor do Instituto de Relações Internacionais e Pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo

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