As coalizões perdidas

Qualidade da Democracia
Qualidade da Democracia
5 min readDec 15, 2017

10/12/2017

Por Sergio Abranches

Por Sérgio Abranches

Desde a promulgação da Constituição, em 1988, o Brasil discute a necessidade de uma reforma política, que põe a ênfase na mudança das regras eleitorais. Agora mesmo, Geraldo Alckmin, em seu discurso como presidente do PSDB e futuro candidato à presidência da República, a chamou de “a mãe de todas as reformas”. Nas narrativas brasileiras da reforma do regime eleitoral, dois modelos sempre figuraram como referências próximas do ótimo, por supostamente gerarem maiorias sólidas, o clássico modelo de “Westminster”, a democracia liberal parlamentar britânica, que adota o voto distrital-majoritário puro, e o modelo misto alemão, que adota uma combinação de voto majoritário-distrital e voto proporcional. Os dois modelos têm em comum serem parlamentaristas.

Até agora não vi os defensores seja da narrativa que vê o voto distrital-majoritário como melhor saída, seja da versão que considera o modelo alemão próximo do ideal, testar suas hipóteses olhando a conjuntura política atual nos dois países. Maiorias sólidas nesse século tornaram-se uma quimera no Reino Unido e uma impossibilidade na Alemanha.

O voto majoritário-distrital não foi capaz de preservar a integridade do bipartidarismo. Pior, como não é um modelo ágil o suficiente para produzir um realinhamento partidártio pelo voto popular, não oferece saída para os impasses sucessivos que se vão criando. Theresa May equilibra-se, hoje, em uma precária coalizão com o nanico direitista DUP (Partido Unionista Democrático), da Irlanda do Norte, para manter-ser no cargo. Mas sua fragilidade política e a precariedade de seu governo ficam mais evidentes a cada dia. May retornou de Bruxelas com um ambíguo acordo para avançar na Brexit que todos os analistas consideram que gera mais problemas que soluções. A ambiguidade do acordo se deve, sobretudo, à questão central para a saída da Europa: como ficará a relação do Reino Unido com o mercado comum Europeu? May negociou uma fórmula que deixa a questão sem resposta satisfatória. O que negociou é tão ambivalente, que pode derrubar seu governo. O ponto crítico da Brexit nesta questão é o efeito da saída do mercado comum europeu sobre o acordo de fronteiras entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, que impede o retorno de hostilidades entre as duas partes irlandesas. Hoje, ele segue as regras comerciais europeias de liberdade de trânsito de mercadorias e força de trabalho. A fórmula negociada por May diz que a Irlanda do Norte manterá “alinhamento completo” com as regras da Europa. Quer dizer, então, que uma parte do Reino Unido persistirá sob as regras comerciais do mercado comum europeu? Ninguém sabe dizer. Se a resposta for sim, May descontenta o DUP, que quer o alinhamento integral com Londres e pode ficar em minoria. Mas, satisfaz a maioria norte-irlandesa que votou fechada pela permanência na Europa, portanto contra a Brexit e respeita as exigências da república Irlandesa. Agita, porém, demandas pró-Europa na irredenta Escócia, que também quer ficar no mercado comum. Até mesmo a cidade de Londres, mais cosmopolita e integrada, deseja para si este “alinhamento completo”, interpretado dessa maneira. Se assim for, para que a Brexit? Nem os que votaram por ela sabem dizer. Todos já se mostram assustados com os custos cada vez maiores e mais visíveis da saída, enquanto os benefícios continuam duvidosos.

Angela Merkel também está fraca e depende de uma decisão da oposição social-democrata para ser salva de novas e mais incertas eleições. O dilema alemão, todavia, tem também que ser decifrado pelos social-democratas do SDP. O partido perdeu 10 milhões de eleitores desde 1998, 1,2 milhão nas últimas eleições. Muitos analistas atribuem a maior parte dessas perdas ao fato de que, por duas vezes já, o partido aliou-se a Merkel para mantê-la no poder. Vem perdendo sua identidade, por apoiar políticas híbridas, nem totalmente social-democratas, nem totalmente conservadoras, for força dos acordos de coalizão. Agora, tem três opções, todas difíceis e de risco para o partido. A primeira seria celebrar, pela terceira vez, um acordo substantivo com Merkel. O partido teria que se responsabilizar pela política em relação à Europa e à imigração. O líder social-democrata, Martin Schulz, defende a completa federalização da Europa, que se transformaria em “Estados Unidos da Europa”, em 20 anos. Ele é contra a onda conservadora de fechamento de fronteiras e de cotas. Prefere uma política seletiva e não-discriminatória de imigração como a canadense. Quer permitir a reunificação das famílias e incentivar o “retorno voluntário”, em substituição às deportações. O oposto do que prega o emergente ultranacionalista da extrema direita, Alternativa para a Alemanha, AfD. A segunda opção seria tolerar um governo minoritário de Merkel, comprometendo-se a não viabilizar um voto de desconfiança dos outros partidos, até o fim do mandato. Merkel ficaria, como Rajoy, responsável diante da sociedade pelas políticas de governo, mas refém do SDP, para não cair. Uma insustentável posição entre a dependência a um partido que luta para sobreviver e o descontentamento crescente de uma população acuada pelas aflições da radical transição global que atinge frontalmente a Europa. O SDP seria visto inevitavelmente como responsável pelo governo, mesmo sem dele participar. Restaria a terceira linha, de negar-se a um acordo com Merkel e abrir caminho para a convocação de novas eleições. Mas esta é a mãe de todas as dúvidas. O que aconteceria nas novas eleições? O medo maior é a vitória do AfD que, ainda que não conquiste a maioria, poderia levar parte da direita que apóia Merkel a formar uma coalizão com a extrema-direita. O SDP poderia perder ainda mais eleitores. Na dúvida, o mais provável é que feche uma coalizão com Merkel que deixará muitas partes do dilema alemão e da própria social-democracia sem resposta por mais algum tempo.

Quando tucanos como Alckmin dizem que o modelo político brasileiro se exauriu e precisa ser mudado, sempre imagino os conselhos que Schulz, Merkel e May dariam a eles. Talvez lhes disessem que todos os modelos políticos estão dando sinais de exaustão, por não serem capazes de acompanhar os fortes realinhamentos sociais a ocorrer em toda parte. Ou de responder a contento aos desafios da globalização e aos novos problemas, sem similares no passado, que entram na agenda política. Mesmo na Alemanha, que tem uma economia forte e que vem se adaptando bem às mudanças do século 21, o sistema político não tem boas respostas para fenômenos novos como a imigração, as novas modalidades, mais imprevistas, de terrorismo, o desajuste entre a rede de proteção social e as novas formas socioeconômicas em emergência. Isso só para mencionar alguns dos pontos críticos da agenda europeia no século 21. May talvez nem soubesse o que responder. Conservadora demais e pouco imaginativa, parece entender que o próprio modelo de Westminster está em cheque, menos ainda perceber como real o crescimento do sentimento democrático-republicano nos domínios da rainha da Inglaterra.

Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN. É colaborador do blog com análises do cenário político internacional

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