Ministro da Justiça e Lava Jato: quais são os limites dessa relação

Qualidade da Democracia
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6 min readSep 29, 2016

No domingo (25), véspera da prisão do ex-titular da Fazenda e da Casa Civil Antonio Palocci, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, anunciou, sorrindo: “Teve [operações da Lava Jato] a semana passada e esta semana vai ter mais, podem ficar tranquilos. Quando vocês virem esta semana, vão se lembrar de mim.”

No dia seguinte, Palocci foi preso. A declaração de Moares teve como palco um local simbólico. O ministro pedia votos para o candidato tucano à prefeitura de Ribeirão Preto, Duarte Nogueira. Trata-se da cidade natal de Palocci e foi governada pelo petista em duas ocasiões: de 1993 a 1996, e de 2001 a 2002.

O aviso de que a Lava Jato produziria novas prisões na semana seguinte foi dado por Moraes a militantes anti-PT do Movimento Brasil Limpo, em clima de campanha. A questão é que Moraes, como ministro, comanda a Polícia Federal, que integra a força-tarefa da operação.

A fala de Moraes foi interpretada como uma interferência política indevida nos rumos da Lava Jato. “Não pode um ministro da Justiça saber antes da operação e divulgá-la num evento político. Isso é muito grave. Há uma carga de politização muito forte nessas investigações”, disse a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR).

“Antecipar informação sigilosa é um ato criminoso e demonstra a interferência do ministério nas operações político-partidária-eleitorais”, criticou o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP).”.

O próprio ministro negou que tenha feito referência a qualquer operação específica da Lava Jato. Segundo sua assessoria, se tratou apenas de uma declaração genérica.

O Nexo apresentou cinco perguntas sobre esse assunto a dois analistas, um advogado constitucionalista e um cientista político. São eles:

Rubens Glezer, advogado constitucionalista, professor da Escola de Direito da FGV-SP
José Álvaro Moisés, cientista político, professor da USP

O ministro da Justiça deve ser informado das operações da Lava Jato?

RUBENS GLEZER Existe uma relação de subordinação legal da Polícia Federal perante o Ministério da Justiça. Contudo, como a Polícia Federal tem autonomia operacional, essa subordinação tem nuances. A principal forma de subordinação decorre da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal. Além disso, o orçamento da Polícia Federal está atrelado ao do Ministério. Por fim, cabe ao ministro da Justiça estabelecer diretrizes de segurança pública a serem executadas pelo diretor-geral da Polícia Federal.

Por isso, há uma relação de subordinação no sentido de controle, mas jamais de interferência. O ministro da Justiça não pode direcionar ou instrumentalizar investigações para fins pessoais ou políticos. Sendo assim, certamente pode haver um fluxo de informações entre operações da Polícia Federal ao Ministério da Justiça, mas que deve sempre obedecer essa lógica de controle sem interferência.

Dada a natureza sigilosa das investigações, do potencial político da Operação Lava Jato, bem como pelo fato de membros do governo passado e atual estarem sendo investigados, o mais republicano seria que as informações fossem repassadas com antecedência ao Ministério da Justiça apenas quando houvesse estrita necessidade de colaboração institucional.

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS O ministro pode ser informado apenas de uma maneira geral, sem que sejam especificadas nominalmente as prisões que vão ocorrer.

Tudo o que seja da ordem do funcionamento administrativo da Polícia Federal não precisa ser informado ao ministro, pois isso pode gerar um conflito de interesses. Pessoas que possam vir a ser presas podem ter uma inserção política, e pode acontecer de o governo ou o ministro não quererem que essa pessoa seja presa.

Portanto, deste ponto de vista, eu não acho que informar o ministro seja um bom procedimento. A Polícia Federal é uma instituição profissional e especializada, com autonomia relativa, e ela pode reagir com eficiência e com eficácia sem informar o ministro.

Se informado, o ministro deve ou pode comunicar isso publicamente?

RUBENS GLEZER Caso informações sigilosas — como as de investigações policiais em curso — cheguem ao conhecimento do ministro da Justiça, ele tem o dever funcional de guardá-las.

A violação de dever de manutenção desse dever funcional de guarda de sigilo tem pelo menos dois níveis de implicação. O primeiro é de improbidade administrativa, cuja pena é a perda da função pública, conjuntamente com a suspensão dos direitos políticos (de três a cinco anos) e o pagamento de multa. Além disso, a violação de sigilo funcional é crime cuja pena varia de seis meses a dois anos.

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS De modo algum, jamais [deve tornar essas informações públicas]. Nós não temos informações suficientes sobre os detalhes para saber se foi disso de que se tratou. Eu daria o benefício da dúvida. Qualquer pessoa sabe que toda semana há novas ações da Lava Jato. Agora, a maneira como foi feita a declaração [do ministro da Justiça, em Ribeirão Preto] indica que talvez ele soubesse. Isso é totalmente inapropriado.

Como tem sido a relação entre a Lava Jato e os ministros da Justiça desde o início da operação, há 2 anos?

RUBENS GLEZER É tensa desde o início. Na verdade, desde 2013 parte da Polícia Federal se mobilizava por meio de manifestações públicas contra a interferência política nas operações de investigação contra corrupção. Porém, desde a deflagração da Operação Lava Jato em 2014, as denúncias contra o risco de intervenção política aumentaram, especialmente a partir do momento em que políticos de alto escalão passaram a ser investigados.

Durante o mandato de José Eduardo Cardozo foi mantida uma postura pública muito clara de não interferência. A primeira tentativa de uma intervenção mais robusta foi declarada por seu sucessor Wéllington César Lima e Silva, que teve por consequência um mandato curto, de apenas 11 dias.

Desde então, especialmente pelo suporte público à Operação Lava Jato, nenhum ministro expôs a público a intenção de interferir nas operações da Polícia Federal. Uma das primeiras manifestações do ministro Alexandre de Moraes foi justamente de afirmar para a população de que não atrapalharia as investigações.

Esse cenário, porém, depende muito do apoio popular que a Polícia Federal vier a deter no futuro próximo, seja pela Operação Lava Jato, ou por outra operação de ampla repercussão.

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS Houve algumas tentativas de interferência, pontuais e sem maior repercussão. Eu considero que, por exemplo, o ex-ministro José Eduardo Cardozo teve um comportamento republicano.

Houve um momento, no final do governo da ex-presidente Dilma Rousseff, em que um dos ministros teve um comportamento que indicava que ele desejava inteferir, mas não conseguiu fazer isso, não teve esse desdobramento.

De uma maneira geral, nesses últimos anos, o Brasil conseguiu manter uma situação em que as interferências, se ocorreram, não chegaram a ser de conhecimento público.

Um dos pontos muito fortes de divergência entre o ex-ministro Cardozo e setores do PT, incluindo o próprio ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é o fato de que Cardozo pretendia manter a independência da Polícia Federal e evitar interferências na Lava Jato.

Quando o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, prometeu novas ações da Lava Jato, ele estava numa campanha eleitoral tucana, na cidade natal de Antonio Palocci, que foi alvo da Lava Jato no dia seguinte. Isso de alguma forma agrava o ocorrido?

RUBENS GLEZER Com certeza. No caso, há algumas certezas e dúvidas. O certo é que o ministro da Justiça ter informações da Operação Lava Jato, por si só, não constitui ilegalidade. Além disso, é certo que a violação ao dever de sigilo funcional é ilícito, com possibilidade de sanções e penas. No mesmo sentido, o direcionamento e aparelhamento da Lava Jato — ou de qualquer operação policial — também é proibido por lei. Contudo, dada a generalidade da afirmação realizada por Alexandre de Moraes, é muito ambíguo se foi cometida alguma dessas irregularidades.

Por esse motivo, são as peculiaridades do contexto que podem fazer uma eventual decisão da Justiça pender para um lado ou para o outro. Quando o ministro faz essa alegação em meio a uma campanha eleitoral, tentando criar na população um vínculo entre a sua figura e os resultados da operação, ou ainda, aproveitando de informações sigilosos em seu interesse eleitoral, certamente fica muito mais exposto à crítica de que violou seus deveres legais.

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS Foi totalmente inapropriado. Não faz o menor sentido. Um ministro da Justiça tem de ter extremo cuidado com sua ação, com suas intervenções, pois é evidente que elas podem afetar a disputa eleitoral. Na democracia, a disputa eleitoral tem de ser completamente equânime. Qualquer interferência que possa vir a afetar a disputa eleitoral é inapropriada, a meu juízo.

Publicado em O Nexo, em 27 de setembro de 2016

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