Metacrônica

Ou “as incertezas malucas de um Tempo inesperado”

Mariana Prates
QUARANTENADA
4 min readMay 18, 2020

--

(Foto: Icons8 Team /Unsplash)

A palavra crônica vem do latim chronica, que por sua vez vem do grego khronikos, crônico, que por sua outra vez, veio de um moço chamado Cronos.

Cronos é o Tempo. Não apenas tempo, mas Tempo, com T maiúsculo, em toda a honra e a glória de ente divino cuja compreensão se encontra longe demais para o entendimento ínfimo de nosso ser. Na mitologia grega ele é considerado o Rei dos Titãs, entidades poderosas que surgiram muito antes de o Mundo ser Mundo, que governavam a existência de tudo que existiu, que existe e que tudo aquilo que ainda há de existir.

O Tempo, diziam os gregos, é cruel e incansável. Ele carrega consigo o destino de todas as pessoas, e pode num estalar de dedos mudar o que estivera certo até então. Ele não sente pena ou compaixão — apesar de todos os nossos esforços, o Tempo segue devorando existências dia após dia, sem se importar que vidas são essas das quais está se tratando. É, como já disse, cruel. Mas também é um processo bastante democrático. Ao meu ver, ao menos.

Talvez seja por isso que nós, humanos, tenhamos tanta ânsia em registrar o tempo em que passamos no Tempo. Porque se Ele é infinito, e nós, passageiros, a gente precisa deixar algum tipo de marca. Algum sinal: ei, eu tô aqui! Se Ele vai nos devorar, o mínimo que espero é que alguém lembre que estive aqui, viva e forte, antes de ser servida para o jantar.

Quando me pergunto o que significa fazer uma crônica — este gênero incompreendido que homenageia nosso ilustre carcereiro — , eu penso que é nada mais, nada menos do que registrar os deslizes do dia a dia, que do contrário, acabariam se perdendo na imensidão desse Tempo que acabamos de mencionar. Isso porque a maioria das crônicas não vem de grandes acontecimentos. Quer dizer, nada impede que venham, afinal precisamos ser democráticos. Mas elas costumam nascer nos pequenos detalhes do dia; uma cena que você presenciou na rua sem querer, uma palavra solta numa conversa qualquer, alguma reflexão surgida durante o ócio no transporte público; qualquer coisa minúscula que haveria de passar em branco uma semana depois.

Qualquer coisa pode se tornar uma crônica. Ao contrário de outros gêneros mais exigentes, o cronista não precisa (usando o jargão jornalístico) de uma pauta quente para colocar suas palavras no papel. Do contrário! Ele pode escrever sobre qualquer coisa minimamente interessante, na simples intenção de não deixá-la se perder no tempo e no espaço. Até a falta do que fazer pode se tornar uma reflexão curiosa, se a gente souber a maneira certa de reclamar sobre ela.

É diferente do tempo jornalístico, o tempo minunciosamente planejado pelos editores de plantão: quantas fontes quero entrevistar, qual o número máximo de palavras que posso colocar nesta notícia? Que perguntas devo fazer para que a fonte responda aquilo que quero ouvir? E daí a gente fecha o jornal de hoje já pensando no que será noticiado na próxima semana, atropelando a sequência desse tempo que ousamos registrar.

Só que a vida não é igual às pautas da primeira edição do noticiário. A gente pode sair de casa com um dia inteirinho na cabeça, mas basta uma pequena intercorrência para todos os planos virem de cabeça pra baixo. É um mistério! Além de deixar todo o trabalho demasiado complexo — e muito mais emocionante.

Meu nome é Mari. Na verdade é Mariana, mas sempre achei Mari um apelido mais simpático. Minha vida não é cheia de dramas e empolgações, como aquelas que estamos acostumados a acompanhar em filmes de Hollywood. Não sou herdeira de um sheik do petróleo (infelizmente). Não vivi um romance desafortunado e cheio de reviravoltas adolescentes durante meus anos de ensino médio (infelizmente). Também não sou a heroína de um mundo distópico onde nada além de minha força de vontade e minhas habilidades marciais serão capazes de derrotar o Governante Cruel e salvar toda a humanidade (felizmente, pois me parece muita responsabilidade para uma pessoa só).

Na verdade, se Aquela Heroína distópica visse meu cotidiano, acharia ele bem entediante. Mas isso não importa, porque isso daqui é uma crônica. Partindo do pressuposto que tudo pode se tornar uma crônica, minhas emoções não-Hollywoodianas continuam dignas de relatos. Ainda bem.

A partir de agora, me proponho a desbravar meu cotidiano em busca de tudo aquilo que possa se tornar um relato. Pode não ser tão inesperado quanto se eu realmente fosse filha de um sheik, mas nada impede que seja uma busca interessante. Pode ser que todos esses desabafos que estão por vir terminem de um jeito completamente diferente do que vínhamos imaginando, e está tudo bem. Como algo que surge de um detalhe efêmero da vida cotidiana, eles estão à mercê do que o tal do Tempo ainda há de nos presentear.

E é aí, meus amigos, que eu contesto essa crueldade incansável de Cronos, no olhar dos gregos mais antigos. Porque ao mesmo tempo que a incerteza dada a nós por Ele pode soar como um martírio, ela me parece mais algum tipo de milagre. Qual é a graça de saber o que vai acontecer? Seja no seu dia, na sua vida ou num pequeno relato. A certeza é muito boa em uma redação de jornal, mas no que diz respeito à vida cotidiana, ela consegue acabar com toda a diversão.

Bom, ao menos é o que me parece até agora, às duas da tarde de um sábado tedioso. Pode ser que mudemos de ideia mais para frente. Mas, de qualquer forma, isso só serviria para confirmar minha teoria de que a incerteza do Tempo é um dos deuses mais bonitos.

--

--

Mariana Prates
QUARANTENADA

devaneios de uma escritora em crise de (pouca) idade