CAPOEIRA, ORIXÁS E KUNG FU

Nossa juventude deveria estudar mais as tragédias negras. Isso mesmo, tragédias negras, e não gregas como já deve estar questionando o atento leitor. Até porque a sanha revisora do nosso bravo Daniel Baima jamais permitiria que algo assim fosse publicado por engano. Não que eu não valorize os escritos de Ésquilo, Sófocles e cia. sobre seus concidadãos, deuses e semideuses. Não é que eu não entenda e valorize a importância do gênero para formação do pensamento ocidental, mas o que nos falta de verdade hoje é o entendimento da nossa própria alma. Entendimento da mitologia particular de um povo fundamental na formação do Brasil. Queria muito que a nossa garotada fosse versada também em Ganga Zumba, Zumbi, Dandara, Aqualtune e Acotirene. Que falassem de Ogum, Oxum e Xangô com a mesma familiaridade com que citam as características de Zeus, Afrodite e Apolo, por exemplo.

Por isso, quando sentei-me para assistir Besouro — Da capoeira nasce um herói, gastei o infindável tempo da lista de patrocinadores que caracteriza os filmes nacionais, pensando em como eram corajosos seus criadores. Que ousadia fazer um longa contando a história de um herói negro e analfabeto do Recôncavo Baiano. Que coragem falar de resistência, de religiões afro-brasileiras e, acima de tudo, de abordar assuntos passados tão presentes, como discriminação e abuso sexual. Não bastasse isso, ainda encontraram uma forma delicada e elegante de contar uma linda história de amor.

Eu que só queria saber se capoeira era dança ou luta, acabei descobrindo que também poderia ser o kung fu dos cinemas poeirinhas da minha adolescência. Vi também um pouco da história de como, apesar de todas as proibições e preconceitos, a capoeira seguiu viva para se tornar um esporte global. Bem que Exu tentou o spoiler, “Como matar o que não morre?”, mas na suspenção temporária de realidade causada pelo cheiro de pipoca segui temendo pelo futuro da capoeira. Pelo futuro de Besouro Cordão de Ouro. Na minha cabeça, seu fracasso significaria não só o fim de uma lenda, mas também o fim de uma das maiores características do brasileiro — a ginga. Da ginga derivam coisas fundamentais de nossa essência, como a maestria no futebol, o improviso, o jeitinho, breque do samba e tantas outras sinuosas coisas que nos definem com a mais exata retidão. No escuro, calado e impactado, vi nascer o meu filme brasileiro de ação predileto, que vai durar por muito tempo em mim .

Como em toda boa tragédia a história de Besouro também resulta numa catarse, onde purificamos nossa alma através dos dramas de seus personagens, e por 90 minutos o Monte Olimpo era apenas um canavial.

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