UTOPIA PERPENDICULAR À REALIDADE

Daniel Baima
Quatro Três Três
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3 min readJul 8, 2015

[Publicado em 14/07/2014]

Há duas contribuições verdadeiramente originais do Brasil ao mundo: uma é o jeito de jogar bola, a outra é a maneira de lidar com seus problemas crônicos. São assemelhadas, mas não são iguais. Em ambas, há firula, drible, jogo de corpo e emoção. Uma é motivo de orgulho, a outra, de vergonha.

No futebol, a clareza da meta e a liderança de um técnico competente conferem certa ordem à nossa indisciplina atávica. O time talentoso conhece a estratégia, analisa a situação e arma a jogada com maestria. O resultado é uma eficaz combinação de treinamento, técnica, raciocínio e intuição. Essa é a dimensão mágica do Brasil potência, imbatível, orgulhoso de si. Não por acaso, o maior vencedor da história.

No mundo real, discutir prioridades e soluções não é o forte do Brasil confuso, que anda em círculos, à deriva, que se contenta com a explicação simplória, com a análise rala. Na ausência de um mínimo de método, organização ou liderança, qualquer discurso vazio dito com ênfase, qualquer projeto estapafúrdio com linguagem rebuscada ou teoria da conspiração disparatada bastam para desencadear um falatório inflamado — e inócuo. Não é por outra razão que por aqui as redes sociais grassam como em poucos lugares do planeta.

Pois bem, estou eu também aqui até agora, brasileiro que sou, tergiversando sem um objetivo claro. Desfazendo o engodo: o encanto do esporte e a concretude da realidade são planos distintos que, se não paralelos, interceptam-se em apenas uma reta. Ainda não cheguei lá, então ao ataque novamente: a indignação com a Copa não tem nada a ver com o legítimo sentimento de torcer pela Seleção.

Escusado dizer que esporte é, por definição, ilusão. É simulacro de guerra, de busca por supremacia e pertencimento. Esporte é também negócio e política. Voilà: eis a reta em que o plano da realidade encontra o da fantasia. Là-bas: no Brasil, endemicamente, negócio e política viram negociata e politicagem. É exatamente essa a origem de todos os problemas em torno da realização da Copa no Brasil, do modo como estamos vendo. Essa discussão em torno do evento partiu de indignação genuína contra “tudo que aí está” e reduziu-se a um #nãovaitercopa tolo, quase ingênuo, como se sua realização ou não fosse a questão central do país. Não, não é. A espinha dorsal desses argumentos “patrióticos” é que o resultado da Seleção influencia as eleições e que o mundo precisa ver a inépcia do governo daqui. Desde criança escuto que “se a Seleção ganha a Copa, o governo ganha a Eleição”. Naquela época, em que a democracia ainda nem engatinhava, até fazia algum sentido acreditar nisso. Observando-se os resultados mais recentes, entretanto, não há correlação que sustente tal afirmação! Desde 1998, aconteceu sempre o contrário: Seleção ganhou, governo perdeu, e vice-versa. Ademais, o prejuízo para a imagem do governo já está aí. Em qualquer fila de ônibus, roda de bar ou bebedouro de empresa, o que mais se comenta é como perdemos a chance de deixar algum “legado” disso tudo, nem que fosse moral. A imprensa internacional também descobriu que a “potência emergente” era um embuste resultante de um soluço de crescimento econômico advindo da melhoria de renda da população.

Se a Copa despertou indignação e vergonha, então que se canalize essa energia para o que realmente importa. Que seja durante o torneio, do lado de fora dos estádios. Mas que seja também depois, até a escolha do novo coach da nação. Essa deve ser a meta clara.

Agora, na hora do espetáculo, quero mais é gozar uma licença conscientemente auto-concedida para, durante noventa minutos — e, oxalá, em sete ocasiões -, descer do campo da realidade, em que o Brasil é um país condenado ao atraso e à desimportância histórica, e pular para o campo mágico do esporte. E torcer, torcer muito pela Seleção. Celebrar com família e amigos, gritando euforicamente, ora de desespero, ora de raiva, urrando de alegria desmedida na hora do gol, chorando feito criança com a “Taça”. E, seguindo o embalo intencionalmente apoteótico, ufanista e cafona das despudoradas frases anteriores: sentindo orgulho do Brasil. Do Brasil utópico, de fato — mas deliciosamente utópico.

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Daniel Baima
Quatro Três Três

Da Aldeota a Sampaulo, da Schwarzwald à floresta da Tijuca, copidescando enfim em New Jersey; cartesiano poético, de oxiopia míope: um oximoro errante.