Azula e Outros Mundos — Capítulo I (Parte I)
Todas as coisas que existem, um dia existiram ou irão existir
De todos os lugares que já estivera, aquele, sem dúvidas, era o melhor.
O ar cheirava à terra molhada, a pinheiros e, por algum motivo, a bolo assando. As mesas redondas se espalhavam em meio às árvores de forma irregular, com suas toalhas xadrez causando um contraste gritante em meio ao verde.
Não havia mais ninguém ali além dos dois. O silêncio era interrompido apenas pelo cantar de pássaros estranhos e o que ela presumia ser um tipo de sapo coaxando.
Havia tirado os sapatos e as meias. Seus dedos afundavam na grama e no solo úmido. A brisa que nunca deixava de soprar fez seu suor evaporar num instante e, depois de ter passado tantas horas no subterrâneo, tal frescor era um prazer mais que bem-vindo.
Segurava a bebida gelada e escura com as duas mãos, percebendo que ela nunca perdia a temperatura. Os cubos de gelo permaneciam intactos, não importava quanto tempo se passasse.
— Você poderia pedir literalmente qualquer coisa que existe, um dia existiu ou irá existir e mesmo assim escolheu um refrigerante?
— Bem… é uma Coca-Cola — respondeu.
— Saber que a bebida tem nome realmente muda tudo.
— Você queria que eu pedisse o quê? Pra voltar pra casa?
— Ora, você sabe que isso não é possível. Seria desnecessário perguntar.
— Você acha tudo desnecessário.
Como todo gato, ele parecia não dar a mínima para o que humanos pensam. Permaneceu sentado em posição de esfinge sobre a toalha xadrez, com suas patas dobradas sob o corpo. Quando não falava, parecia com um gato normal. E Azula temia o dia em que se esqueceria disso e afagaria as orelhas da criatura, que certamente encararia tal atitude como um desaforo.
— Pelo menos peça algo que seria impossível de se conseguir em seu universo — disse o gato, rompendo com sua normalidade.
— Um Playstation 6 então?
— Isso é… impressionante. Você é um espécime impressionante.
Uma das desvantagens de se conversar com um gato é que a ausência de expressões faciais e linguagem corporal tornava praticamente impossível identificar sarcasmo.
— Se você quer profundidade, eu posso pedir para que alguém me explique o sentido da vida — Azula disse.
— Bem, isso você pode pedir.
— Sério? E como eles me entregariam isso? Num livro?
— Deseja receber essa informação no formato de livro?
— Depende, que tamanho teria esse livro?
— Provavelmente teria a sua altura.
— Tudo isso? É… acho que prefiro um podcast.
Imediatamente, um aparelho desconhecido surgiu ao lado do copo da Coca-Cola. O aparelho tinha um único botão, um fone de ouvido acoplado e uma tela pequena, onde se lia: o sentido da vida.
Azula pegou o dispositivo, apertou o botão e ficou boquiaberta.
— Oitocentos e quarenta e duas horas?!
— O que você esperava? — perguntou o gato.
— Não sei… não teria uma versão resumida?
— Essa já é a versão resumida. A versão oficial é tão longa que seria impossível para uma pessoa da sua idade ouvir tudo. Você teria que ter começado a, pelo menos, 10 anos atrás.
— Eu não tô aqui pra julgar, mas… — disse Azula, com cautela. — Já vi compositores de música resumirem tudo isso em um parágrafo ou menos.
O gato soprou o ar pelo nariz com desdém.
— Isso é algo esperado de vocês, humanos do 2. Vocês preferem fingir que tudo é simples. Que a vida, a experiência máxima das criaturas mortais, pode ser resumida em palavras vagas como “amor” e “família”, que por si só já têm significados complexos. — O gato levantou e arqueou as costas, espreguiçando-se. — Se vocês tivessem sequer 1% de compreensão sobre a complexidade que os cercam o tempo todo, todos seriam lunáticos e possivelmente suicidas.
— Brindemos a isso! — Azula levantou o copo e terminou a bebida que restava em um só gole. Copo esse que, no instante seguinte, se encheu novamente.
O silêncio repentino à mesa trouxe de volta o canto dos pássaros e o som da brisa balançando as folhas das árvores.
— Eu acabei de tomar uma decisão. — Azula quebrou o silêncio.
— E qual seria essa decisão?
— Vou ficar aqui. Não quero encontrar a próxima porta. Este lugar é perfeito. E eu sinto que se pedisse um Playstation 6, eles entregariam.
Assim que ela terminou de falar, o console surgiu sobre a mesa. Era grande, cheio de curvas e totalmente transparente, mostrando os cabos e placas em seu interior.
— Eles finalmente trouxeram a estética dos anos 2000 de volta, é? O futuro é incrível. — Azula deslizou os dedos pelo aparelho e tornou a olhar para o gato. — Você pode voltar para seu escritório ou seja lá onde for e esperar pelo próximo viajante. Eu já tomei minha decisão.
— Ora, que surpresa. Que inesperado de sua parte tomar tal decisão. Muito original.
— Beleza, dessa vez ficou claro que você tá sendo sarcástico. O que quer dizer com isso?
Subitamente, Azula ficou em silêncio e arregalou os olhos. Se inclinou em direção ao gato e sussurrou:
— Tá ouvindo isso?
— Sim, já faz algum tempo — o gato respondeu, sem demonstrar emoção alguma. — Estava esperando o momento em que você ouviria também. Tem alguém vindo correndo em nossa direção.
Azula levantou da cadeira e esquadrinhou a floresta densa, procurando sinais de onde a pessoa (ou seja lá o que for) estava.
— Acha que devemos correr também? — perguntou, alarmada.
— Não há perigos aqui.
— Tem certeza?
Os passos ficavam cada vez mais altos e pareciam desesperados e inconsistentes. Quanto mais perto a pessoa (ou seja lá o que for) chegava, mais assustada Azula ficava.
— Tem certeza mesmo?
— É antinatural para a minha espécie cometer erros. E não tenho motivo algum para mentir para você.
A justificativa do gato de nada adiantou. Azula começou a imaginar o que poderia estar provocando aqueles passos. Seria apenas um humano ou outra criatura bípede de algum universo inconcebível? E por que ela corria? Estaria procurando por eles ou, pior ainda, correndo de algo muito pior?
Azula havia acabado de chegar àquele lugar. Sabia que era como se fosse um café em meio às árvores. Um café em que você poderia pedir não apenas café, mas literalmente qualquer outra coisa que existe, um dia existiu ou irá existir. “É mais conveniente dizer que este lugar é um café, um estabelecimento que existe em praticamente todo universo”, explicara o gato.
O gato também havia dito que aquele era um dos lugares menos perigosos que poderiam cruzar seu caminho. “O único risco é você pedir algo perigoso e acabar se machucando, se envenenando ou destruindo o ambiente ao seu redor”.
— À sua direita — disse o gato de repente.
Azula olhou naquela direção, ainda apreensiva, e finalmente conseguiu enxergar algo na escuridão da floresta: um homem. Sentiu certo alívio ao descobrir que se tratava de outro humano como ela. Porém, quanto mais ele se aproximava, menos alívio ela sentia. Havia algo de muito errado com aquele homem.
Ele era muito magro, muito pálido e completamente careca. Estava vestindo roupas cinzas e gastas, cobertas de grama e terra. Havia marcas em seus braços, provavelmente provocadas pelos galhos das árvores, e suas mãos estavam sobre o rosto. Ele corria com os olhos tapados, as mãos presas ao rosto firmemente. Era como se a luz do sol pudesse deixá-lo cego.
Tudo nele aparentava desespero. Corria o mais rápido que podia e não parecia ter o tipo físico para tal. Sua respiração era irregular e entrecortada por um tipo de grunhido, como se ele estivesse em um sofrimento intenso, como se aquela corrida fosse questão de vida ou morte.
E ele teria continuado correndo para sempre se não tivesse esbarrado em uma das mesas e caído com violência no chão — sem tirar as mãos do rosto para apoiar sua queda.
Imediatamente, ele se sentou e abraçou as pernas, escondendo o rosto entre elas. Respirou fundo e caiu em lágrimas.
Azula olhou para o gato, sem saber o que fazer. O felino não parecia impressionado.
— …moço? — disse ela, tentando encontrar o tom de voz certo.
O homem continuou com seu choro silencioso, até tomar coragem e perguntar, ainda com o rosto escondido:
— Tem gente aqui?
— Sim, tem eu e o gato.
— Um gato?! — ergueu a voz. — Eu não olhei pra ele! Vocês não podem me fazer pagar por isso!!
Ele agora soluçava alto, demonstrando um desespero ainda maior.
— Moço… — Azula começou a se aproximar do homem, ainda sem saber o que fazer. — Gato, faz alguma coisa!
Antes que o gato dissesse algo, o homem voltou a gritar:
— EU NÃO POSSO E NÃO VOU PAGAR POR ISSO! EU TAPEI OS OLHOS, VOCÊS TÃO VENDO? EU TÔ TOCANDO NA GRAMA PORQUE NÃO TEM ONDE EU SENTAR!
Ele então fez silêncio, como se ter gritado tivesse eliminado suas últimas reservas de energia.
— Me tirem daqui, me levem pra casa… — disse, em um sussurro.
Azula se agachou ao lado do homem e percebeu seu cheiro de suor — havia manchas ao longo de toda a sua camiseta cinza. Era evidente que ele estava correndo há um bom tempo.
Cautelosa, voltou a tentar conversar com ele:
— Você tá bem longe de casa e eu sinto muito por isso. A gente tá no mesmo barco, cara… — Estendeu a mão para tocar em seu braço, mas mudou de ideia. — Venha sentar com a gente ali na mesa… Sabia que você pode pedir qualquer coisa aqui? Que tal uma Coca-Cola?
O homem não respondeu e continuou imóvel. Seus soluços haviam diminuído, mas o corpo todo continuava tenso, a testa pressionada com força sobre os joelhos, os olhos tão bem fechados que se tornaram pequenas linhas horizontais.
— De onde você veio? — disse o gato, com sua voz grave.
Como sempre fazia, o gato havia se aproximado sem fazer barulho e, quando falou, provocou um leve susto em Azula.
— Gato! Eu juro por deus que vou colocar uma coleira com sininho em você.
— Gostaria de ver você tentar. — Sentou-se em frente ao homem, como se tivesse certeza de que ele levantaria o rosto a qualquer momento. — E de qualquer forma, não é minha culpa que seus ouvidos sejam tão inferiores.
— Eu tentando ajudar o cara e você falando de ouvidos?
— Preciso saber de onde ele veio para conseguir ajudar.
— Não é hora pra isso! Espera o cara se acalmar antes. Todo gato guia é assim sem empatia?
— Empatia é um sentimento restrito a seres pertencentes a mundos onde o sofrimento existe.
— Tudo o que você fala parece que foi extraído de um livro muito chato de ler!
— Gatos falam? — A voz do homem, agora muito mais calma, interrompeu o diálogo entre os dois.
— Ah, você tá mais calmo! — Azula conseguia sentir que a tensão do homem havia diminuído. — Não, gatos não falam. Quer dizer, no meu universo eles não falam. No seu, eu não sei. Provavelmente, não. Mas esse gato fala porque ele é um gato guia e…
— Não é sua função explicar isso a ele. — A voz surgiu atrás de Azula e fez ela levar outro susto.
— O quê? — Virou-se repentinamente e deu de cara com outro gato. Que obviamente também falava, mas tinha a pelagem preta e branca.
— Prazer, eu sou seu gato guia. — O novo gato tomou seu lugar ao lado do gato preto e iniciou seu discurso padrão: — Vamos ao protocolo: Kai2428, em algum momento, em algum lugar, você fez alguma coisa que não devia, e/ou atravessou uma porta que não devia, e/ou proferiu palavras que nunca fizeram parte de seu vocabulário original. E isso ocasionou em uma ruptura na fronteira que separa a sua dimensão original do caos completo, do qual o verdadeiro universo é constituído. Seu corpo foi atirado para A Cafeteria do Tudo, que está localizada a uma distância inimaginável de onde você deveria estar, o que não é bom. Você precisa voltar antes que a sua ausência cause um alarde e você precise se explicar. Porque vai ser impossível fazer isso sem que as pessoas o acusem de insanidade e isso não vai ser bom para você. Por isso, toda e qualquer situação que você presenciar durante o seu retorno deverá ser mantida em segredo. Ao continuar sua viagem, você concorda com todos os nossos termos e condições.
O homem ficou em silêncio por cerca de cinco minutos antes de responder:
— Eu posso olhar pro céu então? — Sua voz era fraca e incerta, como se ele não esperasse uma resposta afirmativa.
— Você pode fazer o que quiser, desde que saia daqui dentro de 48 horas — respondeu o gato preto e branco.
— Por que ele tem que sair daqui dentro de 48 horas? — perguntou Azula.
— Porque vai ser difícil ele voltar para casa depois de se transformar em uma árvore.
Antes que Azula pudesse perguntar mais alguma coisa, sua atenção se voltou novamente para o homem.
Ele começou a levantar o rosto lentamente e respirou fundo. Seus olhos se abriram com hesitação e, no instante seguinte, se encheram de lágrimas que prontamente começaram a escorrer. De repente, seu olhar cansado, com olheiras profundas e marcas de expressão, iluminou-se.
— Ele é azul… — disse, com um sorriso que cortava seu rosto de ponta a ponta.
Este é o primeiro capítulo de uma aventura em construção. Seus aplausos valem mais que Coca-Cola. Obrigada por ler :)