Azula e Outros Mundos — Capítulo I (Parte II)

O fim das nuvens

Flávia Carvalho
Quatrocentos Fios
Published in
12 min readFeb 19, 2022

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Ele parecia uma criança em uma loja de brinquedos. Olhava para todos os lados com uma expressão deslumbrada. Queria tocar em todas as coisas, cheirá-las e pegá-las com as duas mãos: os troncos das árvores e o musgo que crescia nelas, as folhas dos arbustos, as flores estranhas e coloridas que apareciam aqui e ali, as agulhas dos pinheiros, a grama e o solo em que estava pisando, as toalhas das mesas e as cadeiras de madeira escura em volta delas, os insetos que rastejavam pela grama, os cabelos de Azula e suas roupas e até mesmo os gatos, que deixaram o homem acariciá-los após Azula insistir com veemência. “Ele nunca viu um gato antes!”, foi seu melhor argumento.

Perguntou que cheiro era aquele que cercava o lugar. Azula explicou que era cheiro de mato, mas com um leve toque de bolo assando. Ele não sabia o que era bolo e ela viu-se obrigada a pedir um grande bolo de chocolate com recheio duplo para os dois.

Ele rolou na grama, abraçou uma das árvores, bebeu a Coca-Cola de Azula e, acima de tudo, olhou para o céu. Seu olhar se voltava para cima a cada dez minutos e o sorriso nunca deixava seu rosto.

Foi só depois de tudo isso (e de comer o equivalente a umas cinco refeições completas), que o homem, Kai2428, estava pronto para conversar.

— Quer dizer que existem outros mundos então? — disse, com a boca cheia de bolo de cenoura.

— Existem. — O gato guia de Kai2428 ocupava um dos poucos espaços disponíveis na superfície da mesa, que agora estava abarrotada de pratos, tigelas e copos vazios. — Incontáveis.

— E você pode ir de um mundo ao outro? — Recostou-se na cadeira e uma xícara de café surgiu em sua mão direita. — Como se pegasse um trem?

— Não, é muito mais complicado que isso — esclareceu o gato preto.

— Infinitamente mais complicado — concordou o segundo gato.

— Mas como eu cheguei aqui então?

— Isso é algo que só você pode responder — disse o felino malhado, com seus olhos azuis e sábios refletindo a toalha vermelha abaixo de suas patas. — Quando você se lembrar como chegou aqui, conseguirá voltar para casa.

— Eu não vou voltar pra casa — afirmou, sem rodeios. — Vou ficar aqui.

Os dois gatos trocaram um olhar entediado e desdenhoso.

— Você não pode ficar aqui — respondeu o gato preto. — Nenhum de vocês pode.

— Por que não? — Kai2428 ficou levemente alarmado.

— Este é um mundo armadilha. Ele atrai pessoas como vocês, viajantes solitários sem nada a perder, que encontram aqui a oportunidade perfeita para encerrar suas jornadas. Todos eles acham que estão tomando a decisão certa e que foram os primeiros a pensar nisso. Sentam em uma dessas mesas, esbanjam em seus pedidos e, quanto mais o tempo passa, menos eles se movem. E então…

— Ficam aqui para sempre — o outro gato completou. — Se tornam uma dessas árvores.

Azula e Kai2428 olharam ao redor e voltaram a se encarar, assustados.

— Cada uma dessas árvores já foi um viajante um dia — o gato preto continuou. — As criaturas deste mundo demandam muito oxigênio e essa foi a forma que a natureza encontrou para manter seu equilíbrio.

— A natureza sempre encontra um jeito.

De repente, a floresta não parecia mais tão acolhedora. A escuridão entre a vegetação se acentuou e o volume de árvores pareceu claustrofóbico.

Kai2428 olhou para Azula e deu um meio sorriso. Seu rosto era anguloso e magro, com uma marca de cicatriz próxima à sobrancelha esquerda. A queda havia provocado hematomas na parte externa de suas mãos, seus dedos estavam arranhados e arroxeados. Os olhos, ela percebia pela primeira vez, eram claros. E, apesar dos sinais óbvios de cansaço, ele não aparentava ter muito mais que 30 anos.

— Não importa — disse, ainda com o meio sorriso. — Eu não vou voltar.

O gato malhado pendeu a cabeça para o lado e, pela primeira vez em muitos anos, demonstrou cerca compaixão:

— Entendo por que se sente assim. E respeito sua decisão.

— Kai, você não pode… — começou Azula.

— Kai2428 — ele corrigiu.

— Eu não posso te chamar só de Kai?

— Não, nomes sem números são muito mais caros. Você pode ser penalizada.

Assim que terminou de falar, fez uma expressão de dúvida e sorriu, como se tivesse acabado de se dar conta de algo maravilhoso.

— Na verdade, pode me chamar de Kai, sim. Aqui, você pode. — Bebericou da xícara de café que, assim como a Coca-Cola, jamais perdia a temperatura.

— Eu não entendo por que você quer ficar — continuou Azula. — Você precisa voltar, deve ter uma família te esperando. E vai que essas árvores ainda têm vida, vai que elas têm consciência de que são pessoas transformadas em árvores e precisam passar a eternidade paradas, sentindo insetos rastejando sobre elas, e animais construindo ninhos e tocas, e…

— Veja só quem me pede empatia e não parece entender nada do sentimento — interrompeu o gato preto. — Você não se esforça para entender o que Kai2428 sente, sequer ouve o que ele diz.

— Pode me chamar só de Kai.

— Desculpe, Kai, explique para Azula por que você se chama Kai2428.

— Mas o meu nome é Kai.

— Sim, nós já entendemos isso, quero que explique por que, em seu universo original, você se chama Kai2428.

— Ah, é que é tão legal dizer que meu nome é Kai! — O homem estava radiante.

Azula e os gatos aguardaram enquanto Kai saboreava o café e o momento. Ele havia pedido uma camisa azul e a vestia sobre a camiseta cinza. Sua pele era tão pálida que conseguia refletir a cor, o que tornava seu rosto levemente azulado.

— Bem, quando eu nasci, a minha mãe não pode pagar por um nome sem número — disse, casualmente. — Ela conseguiu pagar para que eu tivesse só quatro números em vez de seis, mas, para isso, teve que sacrificar outras coisas… Ela achou que o nome era mais importante que meu direito a ver o céu sem nuvens, por exemplo.

— Direito a ver o céu sem nuvens? — perguntou Azula.

— Sim, mas você não acha que ela tava certa? É só você pensar em quantas vezes você olha pro céu e em quantas vezes alguém te chama pelo nome diariamente. O nome acaba sendo mais importante. — Tomou mais um gole do café. — Quando você tem um nome com seis números, é muito mais difícil para seus amigos decorarem. Sem falar que só o fato de você ter muitos números já deixa claro que você é pobre. É ruim quando você é criança e fica ainda pior quando você vira adulto. Minha mãe tomou a decisão certa.

— Você tem que pagar pra ter um nome? — Azula estava indignada. — E pra ver o céu?!

— O céu sem nuvens — corrigiu. — Todo mundo pode olhar para o céu. Tentaram fazer a gente pagar por isso uma época, mas não deu certo porque muitos operários precisam olhar para cima quando estão trabalhando e nenhum patrão quis pagar esse extra. Aí cancelaram essa regra… Mas depois disso criaram um sistema que deixa o céu nublado pra quem não pagou pelo céu aberto. — Olhou para cima e voltou a sorrir. — É a primeira vez que eu vejo o céu assim. Ninguém nunca me contou que é azul. Isso é contra as regras também.

— Você paga pra ter um dia de sol?! — Indignou-se ainda mais.

— Bem… é um luxo, né? Olha só, eu trabalho em várias fábricas, na linha de produção. Quando eu saio de casa, o sol ainda não saiu. Quando volto, já é tarde da noite. Não tem nenhum motivo pra eu pagar para ver o céu sem nuvens se eu nunca tenho tempo pra olhar pra ele. Mesma coisa é o pôr do sol. Você paga pelo céu sem nuvens, mas se quer ver o pôr do sol, tem que pagar um extra. E um “extra” alto! Às vezes vale a pena você pagar pra tirar as nuvens, mas não pagar pelo pôr do sol, já que nesse horário tá todo mundo trabalhando de qualquer forma.

Azula ficou em silêncio, tentando absorver o que Kai acabara de dizer. Receou que ele pudesse notar sua expressão de pena e evitou olhar em seus olhos. Em vez disso, olhou para sua testa e percebeu algo: ele tinha cabelo, mas estava raspado.

— Não me diga que você tem que pagar pra ter cabelo…

— É claro que sim! Quando te olhei pela primeira vez, imaginei que você fosse muito rica! É só olhar as roupas…

— Você é obrigado a vestir cinza também? — Ela começava a ligar os pontos.

— É óbvio. Todas as cores são pagas porque são itens de personalidade. Cabelos, roupas, chapéus, óculos… qualquer tipo de item que não serve pra trabalho.

— Óculos também?! — Azula segurou uma das hastes de seus óculos, como se estivesse com medo de que alguém os levaria embora.

— Se você precisa de óculos e a sua função exige que você enxergue, eles te dão o direito de ter um por um preço até que baixo, mas com a armação padrão. Armações legais, como essa sua, são bem caras.

— Seria isso o suficiente para despertar seu precioso sentimento de empatia? — O gato preto espreitava Azula com seu olhar de julgamento.

Azula olhou para Kai e, desta vez, não conseguiu disfarçar seu sentimento de tristeza pelo homem.

— Por que você tá me olhando com essa cara? — perguntou ele.

— Desculpe. — Ela desviou os olhos. — Eu tô chocada e indignada.

— Ué, por quê?

— Por quê?! Você acabou de me contar que no seu mundo o pôr do sol é pago!

— E o que tem? — Ele parecia genuinamente confuso.

— O que tem?! Isso é um absurdo! Não é à toa que você tava tão desesperado quando chegou aqui.

— Eu me desesperei porque não posso pagar por tudo isso aqui. Se pudesse, tava tudo certo.

— Não, nada disso tá certo! — Azula gesticulava com as duas mãos. — O que tem de errado com o lugar de onde você veio?

— Kai vem do 00030 — o gato malhado respondeu. — Um universo muito parecido com o seu, mas com um sistema econômico substancialmente mais avançado.

— Tão avançado que conseguiram monetizar cada aspecto da vida cotidiana — completou o gato preto.

Kai deu de ombros e limpou a boca com um guardanapo.

— Não entendo tudo o que vocês estão dizendo, mas é assim que as coisas funcionam, certo? Você trabalha pra poder pagar pelas coisas. É sofrido, mas você tem que fazer o que você tem que fazer. Faz parte da vida. O único jeito das coisas serem de graça é com magia, tipo o que acontece neste lugar aqui.

— Não. — Azula cruzou os braços, mostrando seu descontentamento. — Isso não tá certo. Pagar pra ver o céu? Totalmente errado.

— O céu sem nuvens — Kai tornou a corrigir. — E vai dizer que no seu mundo as coisas são grátis?

— Bem, o céu, sim!

— E o resto? Eles te deixam pisar na grama, ter um nome e ter cabelo?

— É claro que sim!

Kai olhou para o chão e sua expressão mudou, como se ele houvesse acabado de se dar conta de algo terrível — a expressão que uma pessoa faz ao descobrir que certa situação vivida por ela foi muito mais traumática do que ela pensava.

— Eles te deixam ter comida também? — disse, ainda olhando para o chão.

— É, pela comida você tem que pagar, mas…

— A água é grátis?

— Também não, mas você não paga tanto assim…

— Você pode ter um gato na sua casa e ele ser só seu? Você pode tocar nele e olhar pra ele o dia inteiro?

— Você pode encontrar um gato de rua e levar pra casa ou ir até um abrigo, mas claro que tem que arcar com as despesas…

— Isso aqui é grátis? — Apontou para o console.

— Não. Na verdade, esse deve ser bem caro. Ainda mais se você tiver no Brasil…

— Vocês não percebem? — interrompeu o gato malhado. — Os universos de vocês são parecidos. Já havia dito isso anteriormente.

— Trabalhar com humanos é sempre um prazer. — Os dois gatos trocaram mais um olhar de desprezo.

— Não, não somos parecidos. — Azula continuava com os braços cruzados. — Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

— Bem, nada disso importa, de qualquer forma.

O gato malhado já estava no chão e começava a se encaminhar para a floresta.

Antes de dar mais um passo, parou por um segundo e olhou para Kai:

— Kai, eu poderia usar nosso discurso padrão, mas não houve viagem e as palavras não se aplicam. Ainda assim, espero que você encontre aqui a paz que buscava. Sinto muito por sua mãe.

Azula notou que os olhos dele tornaram a ficar marejados.

— Obrigado — disse. — Vamos nos ver de novo?

— Apenas se você decidir continuar.

— Não. Não tem chance alguma disso acontecer.

— Neste caso, foi um prazer conhecê-lo.

E assim, o gato malhado seguiu seu caminho — tocando a grama habilidosamente com suas patinhas brancas, sua cauda longa e felpuda balançando atrás de si — deixando para sempre nossa história.

Azula aguardou até o gato sumir em meio às árvores antes de perguntar:

— O que aconteceu com a sua mãe? — E ela sentia que já sabia a resposta.

— Ah, ela morreu. — Ele secou discretamente um dos olhos com a manga da camisa.

— Sinto muito — respondeu ela.

— Tudo bem, isso já faz alguns meses.

— Você tem o costume de reduzir seu sofrimento a quase nada — o gato preto divagou.

— A gente tem que manter o otimismo, né? — respondeu, com um sorriso forçado.

— Otimismo em excesso te impede de questionar se uma vida com menos sofrimento é possível.

— É por isso que você não quer voltar… — disse Azula, vagamente.

— É, bem por isso. — Kai voltou a olhar para o chão. — Ela era tudo o que eu tinha. Não tenho motivo algum para voltar.

Azula resistiu ao impulso de perguntar onde estava o resto da família de Kai. Sabia que seria indelicado e, muito além disso, tinha medo da resposta.

— Nossa vida nunca foi fácil — ele continuou. — Mas pelo menos tínhamos um ao outro. Agora que ela morreu, tudo ficou muito pior. Não só porque eu não tenho mais ninguém e sinto saudade dela, mas porque é muito difícil dar conta das coisas sem ela pra ajudar. Mesmo com três empregos, acabei acumulando dívidas gigantescas.

— Três empregos?!

— Sim, mas isso é normal. Geralmente quem não tem muito estudo não consegue se manter com um emprego só. Mesmo antes dela morrer, a gente era obrigado a trabalhar dia e noite. E por causa disso…

A voz de Kai tornou a ficar embargada e ele limpou a garganta, tentando se recompor.

— Por causa da correria, a gente mal se via. Se tivéssemos passado mais tempo juntos, eu teria notado que ela tava doente mesmo sem ela me contar. — Uma lágrima escorreu de seu olho esquerdo e ele limpou com a mão. — Ela não disse nada porque sabia que eu não conseguiria pagar pelo tratamento. Isso é tudo culpa minha.

Antes que Azula pudesse intervir para dizer o óbvio, Kai continuou:

— Se eu não tivesse largado a escola para ajudar em casa, ou se pelo menos tivesse continuado tentando… Eu poderia ter dado uma vida melhor pra ela se tivesse me esforçado mais. É horrível você perceber coisas assim quando já é tarde demais.

Ele engoliu em seco e usou a barra da camisa para secar as lágrimas que conseguiram escapar. Dava para sentir o esforço que ele fazia para não chorar. Pior que isso: dava para perceber o quanto ele era bom nisso. Havia uma grande probabilidade daquela ser a primeira vez em décadas que ele se permitia expressar tais emoções.

Azula sentia um nó imenso na garganta e esperou suas emoções assentarem antes de falar:

— Eu realmente espero que você entenda que nada disso é culpa sua.

Kai balançou a cabeça em negação.

— Eu nunca vou me perdoar, mas isso não importa. Em breve, vou me tornar uma árvore, não é verdade? — Deu uma risada forçada e olhou para o céu novamente. — Ter chegado aqui foi a melhor coisa que aconteceu comigo em muitos anos.

— Sei o que está pensando. — A voz do gato assustou Azula, que por instante havia esquecido que ele ainda estava ali. — Mas acredito que já saiba que não é possível invocar pessoas aqui.

— Sim, eu já sei que não dá certo. Desde que você me explicou como este lugar funciona, tenho pedido por ela.

Se eu pudesse pedir por uma só coisa na Cafeteria do Tudo, pediria por um(a) leitor(a) como você. Obrigada por ler :)

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