Bone Witch, de Rin Chupeco, um YA de alta fantasia

Carol Chiovatto
Que Bruxaria é Essa?
4 min readOct 6, 2019

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Às vezes, as leituras da pesquisa de doutorado se tornam um pouco demais e a cabeça precisa de um respiro. Nessas horas, procuro algo mais leve para ler (ou algo pesado mesmo, mas de outra área). Este ano, uma dessas leituras de salvação da minha sanidade mental foi Bone Witch, da escritora chino-filipina Rin Chupeco, publicado em 2017 pela Sourcebooks Fire.

Capa, título e catchphrase me chamaram a atenção de cara!

“Que fique claro: nunca tive a intenção de erguer meu irmão do túmulo.”

O livro conta a história de Tea, uma menina que, durante o enterro de seu irmão mais velho, descobre sem querer ser uma bone witch, um tipo de bruxa (ou asha) capaz de ressuscitar os mortos na condição de familiar.

Segundo os termos tradicionais da bruxaria britânica, um familiar é um demônio atrelado a uma bruxa através de um pacto, no qual ele lhe presta serviços em troca do sangue dela, com o qual se alimenta. Neste livro, o irmão não é um demônio e nem fica obrigado a servi-la, mas precisa de sangue para manter uma aparência saudável, e os dois têm seus sentimentos entrelaçados de modo que um sempre sabe da presença do outro e de seu estado emocional.

Umas das coisas mais legais aqui é que o universo de alta fantasia é baseado na Ásia e na interações de seus múltimos reinos com vizinhos que bem poderiam vir de um Oriente Médio sobrenatural. Há um questionamento de costumes e preconceitos, uma dissonância entre diferentes culturas, o choque da mudança do interior para uma grande cidade, tudo isso enquanto a protagonista/ narradora aprende mais sobre si mesma.

A narração em primeira pessoa é dividida entre o relato da própria Tea, partindo de seus doze anos, e o relato de um bardo, que a encontra, exilada num local ermo onde todos julgam não haver possibilidade de vida, aos dezenove. A distribuição desses relatos é estranha e a participação do bardo só faz sentido ao final, quando fica claro o gancho do que ele vê Tea preparar (e que será o enredo do próximo livro).

A mitologia das ashas é muito interessante. Quase todas têm o poder de manipular vários elementos, exceto as bone witches, cujo elemento de poder é the dark, ou as trevas. Esse elemento é tido por maligno, pois tende a viciar por causar uma eterna ânsia de seu grande poder.

Essa parte sobre a fonte do grande poder de Tea é meio lamentável. Algo tão intrínseco à personagem determina como ela é percebida pela sociedade, que usa as bone witches, termo ofensivo para se referir às dark ashas, como uma espécie de guarda com a função de manter o reino a salvo de criaturas capazes de destruí-lo. Essa obrigação das dark ashas tem um custo alto. Inclusive para a mentora de Tea.

Dentro da sociedade, as jovens com poderes elementais são acolhidas por asha-kas, casas onde essas moças serão treinadas e se tornarão ashas. O treinamento envolve, em grande parte — e isso me surpreendeu bastante — , aprender a entreter convidados em festas e outros eventos sociais: elas devem saber dançar, cantar, interpretar. Devem entender de política e economia o suficiente para manter uma conversa. Também aprender a lutar.

Como a maior parte das ashas não manipulam grande poder, ou não são muito necessárias quando a ordem social está em paz, boa parte de seus dias consiste em entreter pessoas. Esse trabalho gera receita para suas respectivas asha-kas, uma maneira de pagar o investimento todo que se fez em seus treinamentos. Algo nesse arranjo todo me lembra as gueixas japonesas.

Por mais fascinante que seja toda essa construção, vem aqui minha crítica ao livro: quase tudo se passa nesse dia-a-dia de aprendizado que ensina o leitor apenas gotas do que Tea de fato está aprendendo. Muito tempo, mas muito mesmo, é gasto descrevendo os huas, as vestes especiais das ashas. Existe um motivo para isso justificado no texto, mas ainda assim é irritante. Os enfeites, as vestes, os arranjos de cabelo, seriam um detalhe interessante, se acrescentaassem algo à história. Em 407 páginas nas quais pouco avança, eu não acho exagerado dizer que 50 consistem em descrição de vestuário e afins. Em cada cena onde uma asha aparece, lá se vai meia página ou mais descrevendo detalhes de tecido, bordado, cor e textura, joias etc.

Além disso, a apresentação das personagens e sua interação com Tea não é muito bem trabalhada, o que deixa alguns momentos que deveriam ser impactantes meio mornos. O enredo em si é muito básico e sem grande desenvolvimento: uma menina com a pressão social de ser diferente chega a um lugar novo para aprender um ofício e sofre percalços pelo caminho.

A história também trata como reviravolta algumas coisas que são bastante previsíveis. Isso não seria de todo um problema se a montanha russa de emoções que geralmente caracteriza esse tipo de narrativas estivesse lá.

No fim, dei três estrelas para o livro no Goodreads porque tem uma ideia interessante e um universo que promete muito. Infelizmente, não entrega.

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Carol Chiovatto
Que Bruxaria é Essa?

Tradutora e escritora. Mestra e doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo, estudiosa de gênero e estereotipagem.