O que aprendi com Henry Miller sobre a Grécia e literatura de viagem

Comentários sobre “O Colosso de Marússia”: as melhores aspas e a pior de todas

Julia Latorre
Viagem
7 min readMay 6, 2017

--

Primeiras páginas saboreadas na ilha de Corfu

Não consigo dizer em que momento da minha vida conhecer a Grécia se tornou um objetivo pessoal do topo da lista, sei que foi antes de ser introduzida a Henry Miller, o estadunidense que é mais conhecido pela obra “Trópico de Câncer”.

Quem me apresentou a Miller foi a Lud, ex-chefa, amiga. Em 2015 voltou deslumbrada da Grécia e me contou que era mesmo tudo aquilo que eu imaginava. Catso, eu precisava conhecer aquele lugar.

Naquele ano, teve uma época que eu morri de inveja da Lud. E não era a experiência grega que eu cobiçava, eu sabia que um dia conheceria a Grécia e já me planejava para isso. Mas era a maneira como ela chegava encantada no trabalho à medida em que a sua leitura de “O Colosso de Marússia” avançava. Queria eu estar apaixonada daquele jeito por qualquer uma das últimas obras que eu tivesse lido.

Relato da Lud sobre a Grécia:

Um ano depois, finalmente, comprei minha passagem só de ida para a Grécia. Mas eu não partiria antes de que “como é mesmo o nome daquele livro sobre a Grécia que você amou?” chegasse.

A empolgação com o inglês que fluía melhor a cada dia e a dificuldade em encontrar uma edição em português em plena Barcelona me convenceram a encomendar a versão em inglês. Escrita purinha de Miller, sem qualquer intervenção ou distorção por tradução. Ó as ideias.

Grécia surreal, sem filtro — Zakynthos

Iniciei minha jornada na Grécia na ilha de Corfu, nas Jônicas, sem saber que também foi o ponto de partida para Miller começar a registrar as páginas do seu diário de viagem. Estar no mesmo lugar em que aquelas páginas retratavam era um baita de um incentivo para me convencer de que tudo bem desperdiçar alguns minutos para não olhar o mar ou o sol e dedicá-los às páginas que falavam sobre o lugar certo na hora certa.

“O pôr do sol no mar, para mim, é um espetáculo terrível:

é brutal e desalmado”

Passado um mês do que hoje chamo de uma das melhores viagens da minha vida, eu não tinha chegado da metade do livro, que a essa altura já tinha a capa amolecida por maresia e as páginas texturizadas por legítima areia grega.

O Colosso, de Miller, é um diário de viagem. Lançado em 1934, o autor relata sua experiência sabática na Grécia em pleno início da Segunda Guerra. A começar por aí, dos aprendizados que essa obra me trouxe, um deles foi sobre esse sentimento de estar conhecendo lugares incríveis, as praias mais lindas do mundo, enquanto uma guerra acontece lá fora.

No caso de Miller, ele estava bem ciente da movimentação naval que antecedia anos sangrentos. No meu caso, a cada clique “instragramável” em uma paisagem surreal eu tinha ciência dos milhares de refugiados que chegavam naquele momento no mesmo país cuja experiência, para mim, focava-se na satisfação do meu ego.

Ego, aliás, que é um dos temas centrais da narrativa de Miller e raramente oculto em obras de literatura de viagem. Já tem tempo que concluí que viajar sozinho é egoísmo puro. Após essa e outras leituras de relatos de viagem, concluí que narrar essas experiências fala bastante sobre egoísmo. E isso, não necessariamente é ruim. Existem níveis e tipos de egoísmo, alguns deles aceitáveis.

Ler a obra em inglês era possível, mas não tão prazeroso. Em poucas páginas eu não me questionei se o que eu havia entendido era mesmo aquilo que ele queria dizer. No começo desse ano, reli em português (que delícia). E confirmei aquilo que ainda não tinha 100% de certeza: Henry Miller é extremamente egoísta, adora afirmar como é um escritor prestigiado, passa o tempo todo difamando o estilo de vida dos Estados Unidos e romantiza a pobreza grega colocando os pobres no mesmo patamar dos mitológicos. E os americanos, pobres dos americanos descritos por Henry Miller.

Houve o momentos, ainda, em que o que eu mais desejei foi que ele realmente não quisesse dizer aquilo que eu estava lendo, como quando ele descreve os sentimentos que teve por uma menina de “no máximo 14 anos” na Acrópole:

“…minha sinceridade quando digo que nenhuma mulher, nem mesmo a mais linda das mulheres que já vi, foi, ou é capaz de despertar em mim o sentimento de adoração que essa menina despertou. Se o destino a pusesse no meu caminho novamente, não sei que loucuras não seria capaz de cometer. Ela era criança, virgem, anjo, sedutora, sacerdotisa, cortesã e profetisa, tudo ao mesmo tempo.”

Esse parágrafo é argumento mais do que válido para interromper a leitura por aqui, do livro e dessa resenha. Mas eu resolvi continuar, o aprendizado que tirei dessa página foi que, independente do seu prestígio como escritor, não fantasie seus pensamentos pedófilos, não deixe-os públicos.

Distúrbios patológicos a parte, a Grécia de Henry Miller não é a mesma Grécia que um viajante encontrará em Mykonos ou Santorini, mas é a mesma em ilhas ainda não tão badaladas, ou vilas que se escondem pelas grandes ilhas ou continentes.

Finalizo com os aprendizados sobre escrita de viagem e Grécia representados pelas minhas aspas favoritas do livro:

“Sempre achei que a arte de contar histórias está, principalmente, na capacidade de estimular de tal maneira a imaginação do ouvinte, que ele acabe mergulhando em suas histórias bem antes do final…”

Miller sabe fazer exatamente o que ele descreve como a arte de contar histórias. O melhor exemplo é a sua própria obra.

“A paz do coração é positiva e invencível, não impõe condições, não requer proteção. É. Só. Se é vitória, é uma vitória muito especial, porque se baseia inteiramente na rendição, mais especificamente, na rendição voluntária.”

Tá aí um ponto em que Miller pegou no meu calcanhar de Aquiles. Concordamos que a Grécia é um lugar ideal para buscar paz interior. Talvez todos que passem por lá também sintam isso.

“Destruí todos os meus inimigos, um por um, mas sequer reconheci o maior de todos: eu mesmo.”

Os melhores insights filosóficos de autoajuda que já tive foram em viagens. Miller explica. Literatura de viagem tem um espaço gigantesco para autoajuda. E tudo a ver.

“Ser livre, como, naquele momento, eu senti que era, é chegar á conclusão de que toda a conquista é vã, mesmo a conquista do próprio ser, que é o último ato de egoísmo. Ser feliz é levar o ego ao ápice e entregá-lo triunfalmente.”

Egoísmo, felicidade e liberdade: uma coisa só.

“As viagens se fazem para dentro e, desnecessário dizer, as mais perigosas se fazem sem sair do lugar. Mas o sentimento do viajar pode esmorecer e sumir por completo.”

Encerrando meus esforços em ser escritora séria por aqui. Só um meme traduz o sentimento dessa aspa: não sei o que dizer, só sentir!

“Zero é o significado grego de visão pura.”

Uma das maiores dificuldades na escrita de viagem é dosar e evitar ao máximo o uso de adjetivos. Em 8 palavras Henry Miller dá uma lição de como descrever um sentimento viajante sem qualificar.

“É o que se esperaria que a Terra fosse, desde que lhe dessem uma chance. É o portal subliminar da inocência. Está como sempre esteve, desde que nasceu, nua e inteiramente exposta. Não misteriosa ou impenetrável, não é terrível, desafiadora ou pretensiosa. É feita de terra, ar, fogo e água. Modifica-se de acordo com as estações num ritmo harmônico e ondulante. Repira, sente e responde.”

Respira, respira e respira.

“A Grécia me fizera livre e indivisível. Eu estava pronto para enfrentar o dragão e dar cabo dele, pois isso já acontecera no fundo da minha alma.”

Particularmente, essa aspa pelo fato da experiência de paz extrema na Grécia te deixar pronto, novamente, para encarar o ‘mundo real’.

“Não sei por que — mas talvez o fato de estar vivo e respirando num lugar inteiramente novo do globo baste para que eu veja a intolerância e inimizade como as coisas realmente absurdas que são.”

Preocupada com o tamanho deste textão. Mais preocupada ainda em espalhar o sentimento dessa aspa para o mundo, que se complementa com essa. Viajantes, intercambistas e imigrantes entenderão:

“…uma vez afastado do lar e dos laços familiares, a inimizade e os preconceitos vão por água abaixo.”

Escolhi não publicar as aspas em que Henry Miller comenta os mitos e a importância deles na nossa maneira de ver o mundo. Escolhi fazer isso porque preferi reproduzir um trecho grande que falasse sobre a arte do encontro e desencontro, minha grande certeza enquanto viajante e habitante deste planeta. Com vocês, em tempos de guerras, Henry Miller, novamente, para fechar o textão:

“Quando nos encontrarmos novamente, alguns estarão cegos, alguns não terão mais as pernas, alguns estarão velhos, de cabelos brancos, alguns terão virado cínicos amargos, outros estarão dementes. Talvez o mundo seja um lugar melhor para se viver, talvez esteja exatamente igual, talvez esteja ainda pior do que está hoje — quem sabe? O mais estranho é que numa crise universal deste tipo, a gente sabe, instintivamente, que alguns estão condenados de saída, ao passo que outros sobreviverão.”

--

--

Julia Latorre
Viagem

Comunicadora especializada em gênero.♀ Escrevo aqui sobre o que dá vontade. linkedin.com/in/julialatorre