Considerações sobre flexão de gênero para produtos digitais

Antes de propor soluções, é necessário entender a origem dos substantivos em relação ao gênero. Entendendo de onde vem, faz mais sentido discutir o que fazer a respeito.

Karine Lima
QuintoAndar Design
9 min readMar 26, 2021

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Photo by Dainis Graveris on Unsplash | Imagem: dois ovos de galinha com marcações dos símbolos escudo de Marte, que representa o masculino, e espelho de Vênus, que representa o feminino.

Nós, UX Writers do QuintoAndar, começamos um movimento para aprofundar discussões e trazer mais autonomia de decisão sobre particularidades da escrita. Nesse movimento, inclui-se a elaboração de textos didáticos para desmistificar conteúdos, contextualizar a origem dos problemas, esclarecer dúvidas e convidar ao questionamento de forma embasada, para designers e não-designers.

Agora, é o momento de dividir esse primeiro tema com a comunidade.

Vamos lá?

Um tema polêmico, mas que precisa de aprofundamento. A discussão sobre gênero neutro surgiu como um símbolo de defesa da igualdade e personalização de tratamento. Depois, ganhou dimensões radicais como Manifesto ILE, de 2014, criado por Pri Bertucci (CEO da Diversity Box) e Andrea Zanella (Psicóloga), e contrapontos como Gênero na Escrita, de 2017, instigados por Débora Diniz (antropóloga e pesquisadora).

Mas, antes de saber como proceder, precisamos entender de onde o tema surgiu e como surgiu, da maneira mais direta possível:

A origem do gênero na língua

De acordo com o linguista Joaquim Mattoso Câmara Jr., em pesquisas sobre linguagem desenvolvidas desde 1940, a interpretação do gênero masculino é, na verdade, a representação de um gênero neutro. Indo além, em “Considerações sobre o gênero em português”, um dos principais trabalhos produzidos no Brasil sobre o tema, o linguista explica que:

A relação entre sexo e gênero para a definição dos substantivos é fragmentada e reducionista, uma vez que masculino e feminino são estruturados por processos distintos, muito além das terminações em -o e -a.

Acervo pessoal| Imagem: relação gramatical entre diferentes processos de definição de gênero, na flexão de substantivos masculinos e femininos.

Em seguida, Câmara Jr. reafirma sua dura crítica à gramática tradicional e propõe que a classificação dos substantivos pudesse ser mais ampla e didática. Nessa proposta, percebe-se que não há definições segmentadas em masculino e feminino, nem registros sobre a possibilidade de um terceiro gênero.

Acervo pessoal | Imagem: classificação dos substantivos segundo Câmara Jr.

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Diante de tantas polêmicas, como reagir?

Não com respostas prontas, mas com considerações fundamentais na hora de optar ou não pela revisitação dos termos, três perspectivas são muito relevantes para aprofundar a discussão:

Considerações fundamentais:

1. Complexidade da atuação

Ao identificar um termo específico que precisa ser revisto, devem ser levados em consideração todos os outros termos que também carregam o gênero padrão masculino.

Por isso, mapear todos os cenários em que o termo é exibido, as relações com outros termos existentes e o conjunto de toda construção textual (subtítulos, subtextos, textos de apoio, referenciais etc.), é muito importante para entender a complexidade da reestruturação.

Por exemplo, não faria sentido flexibilizar Consumidor e Consumidora, se continuassem sendo usados Vendedor, Fotógrafo, Comprador, Produtor, Usuário etc. em outros pontos da interface, porque haveria uma quebra de continuidade e de argumentação das mudanças.

Ainda, se a flexibilização do termo não faz parte do vocabulário comum das discussões internas em reuniões e projetos, o processo de inserir a mudança na interface pode criar um abismo comunicacional, e isso soar como uma forçação de barra que começa a vir de decisões que subestimam processos.

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2. Contexto de uso

Em quais cenários o termo aparece? Um nome de botão, um item do menu ou um assunto do e-mail são cenários completamente diferentes, que têm pesos e medidas diferentes e, impactando mais ou menos (ou até nada), devem receber tratativas específicas.

Por exemplo, “Olá, novo Proprietário!” quando faz parte de uma comunicação nominal, para um usuário que se define pelo gênero feminino, soa como um descuido de atendimento e não-pertencimento àquela relação. Em contrapartida, “Área do Proprietário” é uma comunicação ampla que se refere ao espaço, dizendo muito mais sobre a característica do lugar e muito menos sobre a percepção do sujeito.

Não menos importante, também vale considerar a interface: estamos falando das plataformas site e aplicativo, ou das redes sociais Twitter e Instagram?

A estratégia envolvida em cada disposição de interface é diretamente determinante no processo de decisão por qualquer readequação de termo.

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3. Estratégia do negócio

Por mais capitalista que isso possa parecer, é importante distinguir intervenções linguísticas, causadas por modismos publicitários, de estruturas de termos que interferem diretamente no negócio.

Por exemplo, “Alugar sem fiador e comprar imóveis no QuintoAndar” — na Home do site, é uma mensagem prática, que resolve a ideia de soar objetivo e convidativo e, apesar do termo “fiador”, com marcação masculina, não causa estranhamento de gênero porque caracteriza e identifica o negócio como um todo.

Portanto, qual o impacto de uma reestruturação de um termo? De onde veio e como surgiu a dor? Vale esforço? Quanto esforço? Como vamos medir o sucesso ou insucesso da mudança? As alterações mais agradam aos críticos midiáticos e aos olhares criteriosos de designers, ou afetam diretamente o comportamento do nosso público?

Quem são as pessoas com as quais nos comunicamos? O que é mais importante nessa comunicação? O quanto a representatividade pode ser tão decisiva quanto o serviço que oferecemos?

Pontos de atenção!

Por último, mas não menos importante:

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Variações de o(a), os(as)

Essa, talvez, tenha sido umas das primeiras alternativas da língua ao reconhecer o incômodo da variação de gênero. Mas, à medida que o incômodo foi sendo explorado, hoje representa uma solução ineficiente porque se define como em cima do muro. Soa automaticamente engessada, não toma partido, não se responsabiliza pelo uso de um nem de outro, e ainda reforça o masculino como primeira opção. Além disso, só funciona em contextos rigorosamente curtos, já que sua repetição também pode incomodar:

| Exemplo:
Isso: Seja bem-vindo(a), novo(a) inquilino(a)! É um prazer tê-lo(a) conosco.
Poderia ser isso: Boas-vindas ao QuintoAndar! É um prazer ter você com a gente.

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Identificação de gênero

Perguntar sobre gênero é delicado porque novos problemas podem surgir quando tentamos classificar a identidade das pessoas em caixas tradicionais.

Aliás, dentro da comunidade LGBTQIA+ existem: Agêneros, Cisgêneros, Transgêneros, Crossdressers, Drag Queens, Não Binários etc.

Embora a definição do que é ser 'homem' ou 'mulher' tenha surgido a partir de uma divisão biológica, a experiência humana nos mostra que um indivíduo pode ter outras identidades que refletem diferentes representações de gênero e que não se encaixam nas categorias padrões.
Referência: Gênero e identidade, muito além da questão homem e mulher.

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Variações com a terminação da vogal E

A substituição de aluno pela criação do termo alune, todos por todes, e demais versões, ignora o contexto de regras gramaticais. Mais uma vez, vale lembrar, nem sempre o masculino termina com a grafia “o”.

Print do Twitter | Imagem: Tweet sobre a dificuldade de entender qual seria a pronúncia correta de “todes”.

Em outras variações, seja pela alteração do artigo inicial ou o complemento da vogal final, também corremos o risco de mudar a semântica do termo, mesmo tratando-se de uma mesma palavra:

Acervo pessoal | Imagem: Relação entre a flexão de gênero das palavras e o significado discrepante entre elas.

“Chamar um homem de ‘minha amigue’ pode ser provocador, mas não acaba com o binarismo e ainda cria confusões, especialmente na linguagem formal escrita. Não existem regras previstas nos dicionários, corretores ortográficos ou manuais de redação, e sequer há uma unanimidade entre os que apresentam soluções para aplicar o gênero ‘e’.
Referência: Manual de linguagem inclusiva — André Fischer

“Conversa pra boi dormir (…) Soltaram Todes eu falei prefiro Nescau. Essa grafia sou contra. Criou-se uma cultura, totalmente panfletária, as pessoas fazem da boca pra fora, não day by day, é para a Internet ver.
Referência: Movimentos LGBT Nanny People

Pronome neutro não é exatamente um debate. Pronomes ile/dile/elus muito provavelmente nunca pegarão. O que pode acontecer, no entanto, é que essa nossa luta se expresse numa escolha mais consciente de pronomes ou locuções verbais, que façam com que nossos textos se tornem mais inclusivos.
É uma questão de ginástica vocabular.
Referências:
Linguagem neutra e Pronome neutro via Rita Von Hunty

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Variações de X e @

Mesmo já muito disseminado, vale reforçar: muitos estudiosos enxergam a alteração -x e -@ como um cuidado paliativo que, ao invés de propor a discussão, abafa a causa com uma substituição preguiçosa.

“A busca por uma linguagem neutra de gênero é uma iniciativa simpática, que demonstra intenção de incluir pessoas não-binárias e fomentar a discussão sobre a igualdade de gêneros. No entanto, X e @ não são recursos inclusivos pois criam problemas de leitura para deficientes visuais que utilizam leitores de texto, pessoas com dislexia, alfabetismo elementar, em processo de aprendizagem da leitura ou que simplesmente não tenham sido informadas sobre o significado desse código específico. Além disso, não promove uma real mudança na maneira de pensar mais inclusivamente.
Não faz muito sentido ser neutro sem ser inclusivo.
Referência: Manual de linguagem inclusiva — André Fischer

Como um leitor de tela lê?

Todxs, tod@s, todes, todos(as):

Erro ortográfico tôdi-xis-ésse. Erro ortográfico tôdi-arroba-ésse. Erro ortográfico tôdes. Todos-abre-parênteses-as-fecha-parênteses.

Photo by Tim Mossholder on Unsplash | Imagem: muro pichado com "E agora?", em inglês.

Conclusões

Na dúvida, sempre que possível, abstenha de gênero ao invés de criar neologismos.

Todas as variações colocadas ao longo desse texto são intenções legítimas que partiram de causas importantes. A discussão sobre representatividade sempre será uma luta essencialmente necessária a favor da igualdade. Mas, em produtos digitais, podemos trazer alternativas que sejam menos ruidosas e mais amplamente compreendidas.

Afinal, o papel da comunicação, parafraseando Marcos Bagno, é possibilitar um ambiente social (e linguístico) verdadeiramente democrático.

"É um esforço árduo e inútil tentar impor uma regra que não encontra justificativa na gramática intuitiva do falante"
Referência: Preconceito Linguístico — Marcos Bagno

Explore conjuntos ao invés de termos específicos, oculte pronomes pessoais, generalize atendendo ao masculino e feminino, explore o termo pessoas, opte por instituições ao invés de elementos, oculte o sujeito, teste gerúndios, abuse de infinitivos… É o momento de quebrar a cabeça para desafiar a extensa riqueza de vocabulário e gramática da Língua Portuguesa, a nosso favor.

& Exemplos práticos para produtos digitais

Algumas situações hipotéticas que poderiam ser adaptadas:

D: Seja um revendedor parceiro.
P: Faça parte do time de revendedores.

D: Saiba mais sobre como ser um bom investidor.
P: Saiba mais sobre como investir melhor.

D: Indeciso sobre qual modelo escolher? A gente te ajuda!
P: Qual modelo escolher? A gente te ajuda!

D: Quando os fotógrafos liberarem as fotos, o anúncio será publicado.
P: Com a liberação das fotos profissionais, o anúncio será publicado.

D: Depois disso, o vendedor vai gerar um boleto.
P: Depois disso, será gerado um boleto.

D: Falar com um(a) representante.
P: Falar com representante.

D: A vendedora Manu irá finalizar seu pedido.
P: Manu irá finalizar seu pedido.

D: É novo por aqui? Crie uma conta.
P: Não tem cadastro? Crie uma conta.

Resumão:

  • Se for necessário revisitar termos específicos, considerações fundamentais sobre o negócio devem ser incluídas no processo de decisão;
  • Reflexão de ouro: Quem são as pessoas com as quais nos comunicamos? O que é mais importante nessa comunicação?
  • Soluções “fáceis demais” escondem conceitos problemáticos;
  • Na dúvida, evite neologismos.

Referências:

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Karine Lima
QuintoAndar Design

designer gráfico, designer de produto e content designer. esportista, hiperbólica e desmistificadora de breguices.