8

Raphael Concli
Quiquiriqui
Published in
4 min readApr 17, 2019

Chegou em casa e notou algo diferente na porta. O oito não estava mais lá. Ele já vinha querendo cair há um tempo, é verdade. Andava desalinhado entre os uns, meio solto. Ela não arrumava porque achava graça daquele 181 torto, vizinho de outras portas brancas e corretas.

Dias atrás o mesmo havia acontecido com a senhora do apartamento em frente. Seu 8 também havia sumido. Era engraçado pensar que poderia haver um ladrão de números no prédio, obcecado por oitos.

Qualquer hora teria de ir comprar um oito. Poderia até comprar dois, um pra vizinha. Um gesto de gentileza que talvez a aproximasse da senhora. Ou até mesmo quatro, um de reserva para cada uma.

Embora visse o vazio na porta todo dia, não dava falta do número. Aliás, o oito talvez fosse o melhor número pra ser roubado em seu andar, bastava olhar nas portas ao lado pra saber o que faltava.

Era até bom que tivessem sumido com o oito. Quem sabe assim ela não aproveitava pra pintar a porta de uma vez, como vinha planejando, mas sempre deixando pra depois. Ao invés de colocar um número de metal, pintaria 181 na vertical, numa fonte bem moderna, enorme, na lateral direita da porta. Algo diferente daquele velho número de metal com borda de plástico dourado, que ela — agora mais do que nunca — via como cafona naquele prédio cheio de velhos.

Não gostava do lugar, isolado, vazio e distante das áreas vivas da cidade onde um dia imaginou viver. Foi o que deu pra pagar com o emprego que conseguiu. O tipo de lugar para onde se muda na esperança de ali pouco ficar, ainda que não se veja perspectiva de saída.

Das pessoas pouco podia dizer, via poucas. Dentre estas, a vizinha, uma senhora falante, expansiva, algo autoritária e bisbilhoteira. Sem ser perguntada, oferecia seus julgamentos sobre miudezas da vida alheia, mas com o cuidado de serem observações com um sentido administrativo.

A senhora havia recentemente se tornado síndica do prédio numa eleição sem candidatos. Estava disposta a organizar o lugar, acabar com a palhaçada de jogarem vasos de plantas velhas no jardim comum entre outras questões sérias da vida em condomínio. Provavelmente conseguiria cumprir seus planos, se não pelo poder, ao menos pelo cansaço que suas longas considerações causavam em moradores e funcionários.

Nunca houve conflitos entre ela e a senhora, pelo contrário. Tratavam-se bem nas conversas de corredor, embora uma sensação de julgamento mútuo sempre pairasse no ar. Talvez isso explicasse o fato de ambas espiarem pelo olho mágico antes de sair de casa. O andar alto em que moravam produzia esperas e viagens longas pelo elevador, aumentando as chances de se trombarem.

Estava certa de que a pintura de sua porta atrairia comentários da senhora.

* * *

Passados dias, eis que um oito aparece na porta da velha. Os modelos dos números eram parecidos, de modo que seria pouco provável identificar particularidades. Mas ao ver aquele 182 completo, nada lhe tirava da cabeça que aquele 8 era o seu. A síndica o havia pegado e esperado um tempo bom o bastante pra não gerar desconfianças.

Não podia mais adiar seus planos. Comprou a tinta e os pincéis, fez o molde para os números e um modelo de como ficaria sua porta. Sabia que o cachorrinho da velha latiria muito enquanto ela fizesse o serviço e que os passeios que davam eram curtos demais pra que terminasse a pintura e entrasse sem ser flagrada. Faria o trabalho aos poucos.

Numa tarde de sábado, aproveitou a saída da senhora e desenhou a ampla faixa preta que atravessaria a porta de cima a baixo do lado direito e desenhou o primeiro 1. Fez as marcações e aplicou a tinta. Aquilo parecia tornar o lugar completamente outro, como as casas criativas que invejava dos bairros distantes.

A cada passagem do elevador, um desconforto lhe tomava o estômago, temendo que a vizinha estivesse por chegar. Deixaria a segunda demão de tinta e o resto dos números para outra hora. Mas havia enfim começado uma nova relação com aquele lugar. Entrou, serviu-se de uma dose de bebida, botou uma música alta e dançou sozinha em meio a caixas ainda não desfeitas da mudança de meses atrás.

No noite seguinte, animada para buscar o delivery de comida na portaria, topou a vizinha, que saía para o passeio diário com o cachorro. Apenas um “oi” dito de cada lado. Fez questão de abrir a porta do elevador para a senhora.

(18)

Agachou-se para brincar com o bicho

(14)

É um animal sempre dócil, fonte infinita de conversa. Abanou o rabo, e antes que se deitasse, tomou um leve puxão na coleira

(11)

Nada se disse

(7)

Oi, garoto. Que lindo. Que lindo

(3)

Sorrisos amarelos

(Térreo)

Até logo. Despediram-se.

A comida lhe desceu mal, garantindo a noite de sono ruim. Saiu atrasada e irritada para uma segunda-feira de trabalho que rendeu pouco, traria cansaço para o resto da semana. Não tocou na porta nos dias seguintes, evitando olhar a caixa com as tintas e pincéis.

Na sexta, chegou tarde. Embora tivesse bebido bem, estava determinada a dar cabo do projeto no dia seguinte. Um pouco zonza, escorregou no tapete de boas vindas enquanto acendia a luz da entrada e procurava a chave no bolso. Algo bateu na porta, próximo ao chão. Ao lado do tapete arrastado, estava um 8 de metal, daqueles com as bordas cafonas de plástico dourado.

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