Cicatrizes

Adriano Godoy
Quiquiriqui
Published in
4 min readApr 8, 2019
Colagem de telas de Francis Smith, André Deymonaz e Vincent Van Gogh

O sol brilhante no céu plenamente azul, as casinhas que parecem de maquete, a grama verde repleta de ovelhas e vacas pastando, os campos infindáveis de tulipas de todas as cores e em seu esplendor: é primavera na Holanda. Resolvi cruzar o país até o litoral de bicicleta e me sentia uma personagem daquelas tantas pinturas impressionistas e pós-impressionistas, que durante o inverno enjoei de ver nos museus, e estava leve em vários sentidos, incluindo o físico, porque pela primeira vez em meses não usava o meu pesado casaco de frio. Em meio a esse êxtase de pedalar na orla da praia, entre dunas de areia e sentindo o vento no rosto, o mesmo vento fez com que meu chapéu quase saísse da cabeça e, em um reflexo, joguei a cabeça para trás para o segurar com a mão direita. Em questões de segundos, ao voltar a cabeça para frente, percebi que não só a bicicleta entrou na contramão como, em sentido inverso, vinha uma senhorinha também em sua bicicleta. O reflexo seguinte foi frear e jogar a bicicleta para o lado direito só que o reflexo dela foi se jogar da bicicleta para o seu lado esquerdo, que no caso era bem na minha frente.

Não sei bem como foi o choque, mas no que olhei para baixo havia muito sangue no asfalto. A senhorinha gemia e falava muitas palavras em holandês. Eu só repetia “I am so sorry” e “I don’t speak dutch”, só que nessas situações de choque as pessoas só conseguem falar sua língua materna, como um instinto primitivo que Freud certamente explica, e a comunicação não se estabelecia. Continuava a procurar por ferimentos na senhorinha até que um médico surgiu, da roda de curiosos que se formou na ciclovia, a examinou constatando que não havia ossos quebrados e pediu para me examinar também: “I’m fine”, disse, e ouvi um “but there is blood all over your face”. O sangue era meu, rasguei o lábio inferior de lado a lado e lambuzei todo o rosto. Foi quando percebi que minha barba tava encharcada e que o sangue pingava por ela até o asfalto. Tudo acabou com a senhorinha conseguindo se levantar, pedindo o meu telefone e afirmando, séria e em inglês perfeito, que nos veríamos no tribunal. Em questão de segundos fui transportado de uma tela do Van Gogh para um filme do Tarantino.

Foi o terceiro acidente de bicicleta na minha vida. Tenho uma cicatriz no cotovelo esquerdo e uma no lado direito do quadril dos meus primeiros acidentes, ambos por volta dos anos 2000, e no mesmo percurso entre minha casa e a escola. Coisa boba, perdi o controle sem motivo e me ralei no asfalto, só que sempre usei como troféu: sou ciclista há mais de vinte anos e só cai duas vezes.

Sou simpático a cicatrizes e sempre que as vejo tenho ímpeto de perguntar a história: como aconteceu, quando, quem envolveu, como foi depois? Ao mesmo tempo, evito ao máximo fazer isso porque morro de medo de soar aquele chato que pergunta significado de tatuagem. Mas se houver uma mínima intimidade com este alguém, vou querer saber, sim, as razões daquela cicatriz no queixo ou na testa, por menores que sejam.

Com anos de experiência, aprendi que as histórias mais sem graça são aquelas envolvendo cicatrizes no joelho. Pessoas caem de joelho, principalmente na infância, e normalmente porque estava correndo. Ponto. Só que não custa tentar porque a pergunta sobre a cicatriz também serve para conhecer mais como a pessoa se vê no mundo, como narra sua própria trajetória. Os intensos e exagerados contarão uma epopéia em que a sua cicatriz vai parecer uma marca de guerra como de Ulisses retornando a Ítaca ou de Scar contra Mufasa. Aqueles que buscam sentido na vida, que buscam um motivo para existência, vão significar tanto a cicatriz como um destino ou um marco tal qual o próprio Harry Potter. Aqueles com ego muito inflado vão menosprezar, dizer que não significa nada e que não lembram, afinal não podem manifestar fraqueza e erros do passado, e agem tal qual socialites que negam até a morte que fizeram cirurgias plásticas.

Eu não sei bem em qual me encaixo, e me vejo em todas elas, dependendo do interlocutor, claro. Gosto de acreditar que as cicatrizes tem seu fascínio porque elas não são muito visíveis. As minhas, a primeira está bem disfarçada embaixo dos pelos do braço, a segunda foi tão esticada pela pele que está desaparecendo. Hoje, um dia depois do acidente, a minha boca, que não é pequena, alcançou o dobro do tamanho com o inchaço, e sua cor é roxa, mas se ficar alguma cicatriz visível, algo entre o Scarface e o Coringa, vou usar a deixa para contar da primavera holandesa e ainda recomendar esse textinho aqui. Espero, também, que sem uma reedição envolvendo tribunais.

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