Dois pra lá, dois pra cá

Quiquiriqui
Quiquiriqui
Published in
3 min readFeb 27, 2018

O casal dançava bem juntinho, no meio do saguão da universidade, sem se importar com quem passava. E passava muita gente, afinal é esse o objetivo oficial do saguão. O casal não se importava com isso, e ignorando a tudo e a todos, seguia dançando com o olhar fixo um no outro. Parecia não haver outro mundo para além daqueles dois corpos em movimento ritmado: dois pra lá, dois pra cá.

Tinha tudo para ser poético, mas não era. Com o som caótico da multidão que passava no calor da hora do almoço, o casal tentava seguir determinados passos sem sucesso. O mesmo erro se repetia, sempre no mesmo movimento, e o casal melancolicamente recomeçava tudo de novo. O homem, a quem se acredita que cabe conduzir o tal forró, em uma incoerência monótona repetia os passos como se nada tivesse acontecido. A mulher, que se deixava conduzir, acreditava que seria diferente até o erro se repetir. Ela bufava e revirava os olhos a cada erro, mas recomeçava: dois pra lá, dois pra cá.

A mesma cena aconteceu inúmeras e repetidas vezes, bem na minha frente, enquanto almoçava num cantinho do tal saguão. No começo sentia pena, e torcia para que eles conseguissem finalmente concluir aquele passo. Até que eu percebi que não havia música. Como a dança pode preceder a música? Mesmo a coreografia, nada espontânea e altamente treinada, é elaborada a partir e para uma música específica. Já a dança deve acabar junto com a música. O casal não dançava, o casal não coreografava. Eles seguiam uma sequência de passos genéricos, previamente determinados, e que poderiam ser aplicados para qualquer música: dois pra lá, dois pra cá

O casal confiava tanto na técnica, que não se importava com a ausência de música. Como dois burocratas, haviam transformado o meio em um fim. Foi quando entendi a explicação para o nome do Forró Universitário: é tanta teoria que a parte de dançar acaba ficando de lado. Conseguir cumprir a meta de passos é mais importante que se divertir. Garanto que a técnica para dançar foi inventada por alguém que, assim como eu, não sabia nem por onde começar. Imagino o sujeito no fundo do salão, invejando um casal que dançava bem, e anotando em um caderninho para praticar depois: dois pra lá, dois pra cá.

Um casal em harmonia não tem tempo de contar quantos passos deixou de dar. Os tios com gravata amarrada na testa e óculos em forma de coração fazendo a dancinha do robô são muito mais felizes que a sobrinha formada que dança a valsa com o namorado. Por sorte ou por azar, dependendo do ponto de vista, a malemolência e gingado de um casal não cabem em um manual e nem em uma vídeo-aula. O alto número de visualizações de vídeos de dança no youtube é apenas um indicativo do alto número de miseráveis falhas em conseguir acompanhar, sozinho no meio da sala de casa, o dois pra lá e o dois pra cá.

No mesmo canto do saguão, eu havia terminado a minha tapioca e, sabe-se lá porque,ainda estava metido a terapeuta de casal à distância. Em segundo plano ao casal quase dançante, no outro canto do saguão, observei o similar casal batata-frita, tão comum de se ver por aí: olhares vagos, ou olhares no celular, dividindo a mesma porção de comida, em silêncio, e apenas de corpo presente: um pegava duas batatas pra lá enquanto o outro pegava duas batatas pra cá.

O casal batata-frita não sabe improvisar, e costuma frequentar os mesmos lugares e pedir os mesmos alimentos. Infelizmente, o que a maioria das pessoas não entende é que as vezes duas pessoas formam apenas uma dupla. Não estou dizendo que danças e batatas-fritas não valem a pena, e insistir em ambos às vezes é a melhor escolha a ser feita, mas é preciso saber a hora de parar. A ausência de música ou de sal são bons indicativos de que está na hora de um ir pra lá e outro pra cá.

Texto de Adriano Godoy com Ilustração de Petúnia Pomposa

--

--