Fio branco

Adriano Godoy
Quiquiriqui
Published in
4 min readJul 11, 2019
Riga, 2019. Fotografia de Adriano Godoy

Se alguém me perguntasse aos vinte como eu me imaginava aos trinta, garanto que nunca teria respondido “viajando sozinho pelos países bálticos e descobrindo meu primeiro pêlo branco”, só que a vida é aleatória e imprevisível. E ainda bem que é assim. Lá estava eu após escovar os dentes para dormir, olhei pro espelho e algo brilhou na minha cara. Coloquei os óculos de volta, cheguei meu rosto mais perto, e ali estava ele, um longo fio branco na divisa entre o bigode e a barba, no lado esquerdo do rosto. Já tinha me confundido antes, pensei que era mais um fio loiro e aleatório, só que não. Não tem como negar que se trata de meu primeiro e longo fio branco de barba, na divisa do bigode, encontrado quatro dias antes de completar trinta anos enquanto me hospedo sozinho em um hotelzinho letão.

Depois de ter assumido minha calvície, aos vinte e cinco, o que repetia para os outros, e para mim mesmo, é que não tinha como lutar contra a genética e que só me sentiria velho mesmo quando minha barba ficasse branca. Esse dia chegou. Ele veio aos poucos, não tem como negar, você começa falando “ah os jovens” em tom de brincadeira, e quando se dá conta há um abismo entre você e eles. É curioso como temos total consciência da grande diferença temporal que separa as crianças de dez dos jovens de vinte, e como essa consciência falta entre a mesma diferença entre vinte e trinta. Acho que é porque a fase de vida “adulta” é feito o purgatório: temos definido muito bem o que é ser velho e o que é ser jovem, como o que é o paraíso e o inferno, aí o que sobra, o que ninguém sabe definir muito bem do que se trata, chamamos de “ser adulto”, o purgatório em vida. Ninguém te avisa quando começa porque é de repente que você percebe que tá lá preenchendo tabela do imposto de renda e que tem um sobrinho. Imagino que ninguém te avisa quando acaba também ou avisam e você não acredita. A quantidade de fios brancos acho que é um ótimo sinal disso.

Sou péssimo em previsões e planejamentos, não consigo ter certeza sobre o que almoçarei amanhã e raras vezes me lembro do que almocei ontem, mas aos dez anos de idade, olhando para minha mãe com trinta anos e três filhos, na mesma idade me imaginava de carro, chegando em casa depois de um longo dia de trabalho e com as mangas da camisa dobrada brincando com minha prole e esposa no chão de madeira da sala. Já por volta dos vinte anos de idade, tendo consciência do meu lugar no mundo, a realidade me impunha imaginar aos trinta chegando de bicicleta e de camiseta em uma chácara cheia de plantas e redes, em que morava sozinho. Acertei a parte da camiseta e do sozinho, mas não a do hotelzinho na Letônia, sem rede nem plantas.

Não estou reclamando, pelo contrário, estou realizado da oportunidade e da experiência totalmente aleatória de estar hospedado em um país que não tinha nenhuma informação até um mês atrás, inclusive estava me achando muito jovem pela aventura. Só que achar um fio branco perto do bigode mexe com a gente. Não sei lidar com aniversários, nunca entendi muito bem o sentido de parabenizar alguém por estar mais perto da morte e mais de uma vez já respondi “pra você também” quando ouvi um feliz aniversário. Por isso tento ignorar, finjo que nada acontece, torço para que ninguém se lembre. Um fio branco perto do bigode não ajuda nada nessa proposta.

Convenhamos, a estética do careca de barba branca só fica bem em estátuas de fidalgos e bustos de sábios profetas, cargos que não tenho pretensão de alcançar. Aliás, até isso já tá fora de moda, e com razão esses bustos estão cada vez mais indo para museus ou sendo abandonados em porões. Nunca pensei sobre isso, acho que esperava um fio branco por volta dos quarenta, mas como já disse, sou péssimo em previsões. Se pudesse escolher um lugar para ele seria no topo da cabeça porque como já a raspo semanalmente não faria diferença. Talvez nem o notaria. Mas a barba? A barba é minha identificação suprema, é a única estética que assumi e mantenho desde os dezoito, é parte da minha personalidade, é o meu ser no mundo. Um fio branco questiona tudo isso: quem sou? De onde vim? Para onde vou? Há vida pós barba branca?

Ainda olhando para o espelho, inconformado, usei a ponta das unhas para arrancar aquele fio, com toda força, para jogar na privada e dar descarga. Pelo menos essa semana vou fingir que minha adultice ficou no esgoto letão. Acontece que minha barba cresce em proporção contrária ao meu cabelo e semana que vem vou ter que lidar com isso de novo. Aos quarenta me imagino só de bigode.

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