O Rosto

Quiquiriqui
Quiquiriqui
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6 min readMar 15, 2018

“Pai, joga fora aquela arma.”

Esse não era um assunto frequente. Na verdade, nunca era discutido. O fato do pai manter um revólver em casa era ignorado ou, nas raras vezes que surgia, tratado como lembrança de seus tempos como praticante de tiro. Uma relíquia do passado, de algo que nunca mais fez ou fará.

A arma sequer ficava exposta, nem era guardada em algum lugar especial. Deixava-se esquecer em seu velho coldre em algum armário de tralhas e lembranças. Até onde se sabia, apesar dos muitos anos sem uso, era para funcionar se acionada.

Ele sempre se divertiu com as histórias de atirador, dos campeonatos, da fabricação artesanal de balas da qual o pai sempre falava — uma vez o pai até fez um esquema numas folhas só pra ilustrar como moldava o chumbo na produção de munição artesanal. Respeitava o passado do pai e confiava que o objeto era, sobretudo, uma peça de recordação.

O rapaz nunca teve qualquer obsessão pelo revólver, nem contra, nem a favor, mesmo sabendo desde criança de sua existência. Como adulto, tinha até se tornado uma pessoa decididamente favorável ao desarmamento, embora nunca discutisse o assunto com os pais. Não era necessário.

Daí que foi estranho o rapaz dizer aquilo aparentemente do nada. Não houve qualquer introdução ao assunto. Disse apenas pro pai se livrar daquilo.

Todos estranharam. A mãe, que nunca gostou muito de ter aquilo em casa, aproveitou pra reafirmar sua posição, há muito guardada. O rapaz não tinha muito a dizer. Não se estendeu em grandes argumentações, estatísticas, nada. Não era uma proposta, nem um debate. Era um pedido.

O pai não entendeu. Ou não quis entender. O pedido contrariava algo já estabelecido, confortável, uma coisa em que não se precisava mexer. Não que ele tivesse qualquer apego nostálgico ao objeto. Era um homem desapegado de coisas, o que poderia parecer estranho pra quem o visse contar com tantos detalhes histórias de décadas atrás, dos tempos do clube de tiro quando abatiam pombos por esporte.

A contragosto, disse que ia pensar, ainda que visivelmente contrariado com a ideia e irritado com a falta de justificativa dada pelo filho.

Como se um tabu tivesse se instaurado na casa, o assunto não voltou nos próximos dias. E quando o pai decidiu enfim pegar o velho revólver em mãos — não para de desfazer de uma vez dele, mas para enfim pensar no assunto — não o encontrou no armário. Era um homem organizado, deixava suas coisas arrumadas e fáceis de encontrar.

Naquela hora, o filho não já não estava em casa, tampouco a esposa. Haviam saído pela manhã para seus afazeres, como de costume, nada de diferente do usual. Seria uma conversa ruim de puxar quando voltassem.

Horas depois a esposa voltava do mercado. A imensidão de sacolas e a urgência de guardar as carnes e as demais coisas de geladeira impedia qualquer outra pauta. Sendo um homem organizado, guardaria todas as compras com a esposa e todas as sacolas que tivessem condições de serem guardadas. Só interrompeu a tarefa para atender ao telefone.

Teriam de guardar as frutas depois. Era um chamado para que fossem reconhecer um corpo.

No caminho para o Instituto Médico Legal estavam tão abalados que não disseram nada, nem sobre as muitas hipóteses que ardiam na cabeça de ambos, todas tentando explicar a situação de alguma forma. Chamados pelo legista, se aproximaram do corpo sob o pano. A mãe não conseguiu ir adiante. O pai seguiu em frente, indo ao encontro do médico que removeria a cobertura, revelando o cadáver do filho. Reconhece o rapaz de imediato ao olhar para seu rosto. E nesse momento, cai na risada.

Não soa como um riso de descontrole ou desespero. É uma gargalhada solta mesmo, daquelas boas de ouvir, poderia ser usada em qualquer sitcom. As lágrimas em seu rosto são do próprio riso, inclusive.

O corpo do filho está intacto, mas o rombo na lateral da cabeça não deixava dúvidas sobre como havia cometido o suicídio. O rosto do rapaz, porém, havia paralisado numa expressão estranha após o tiro, e o legista não a havia alterado ao receber o corpo. Sabia que era algo anormal, que não se imaginaria num cadáver, mesmo para ele, tecnicamente habituado com as mais variadas formas de destruição da anatomia humana. Não chega a ser uma expressão de dor, a do rapaz. É uma cara meio de monstro, mas daqueles monstros que fazemos em careta para crianças, em caretas bem feitas, das que causam susto e riso. Era mesmo uma expressão engraçada, apesar das circunstâncias.

A polícia já estava de posse da arma e pedaços da história já se espalhavam, como se podia notar pelas equipes de televisão na porta do IML. Repórteres aguardavam os pais, em busca de algum registro ou depoimento a ser encaixado nas conveniências narrativas dos programas.

Seria fácil sair se recusando a falar qualquer coisa — era o pai de um filho que havia acabado de se suicidar. Sair rindo, não. Mas talvez tenha sido pior a escolha de tentar conter o riso. Se tivesse saído às gargalhadas, ainda poderia ter dado a impressão de um estado de descontrole e choque. Ao invés disso, abraçado a uma mulher em prantos, passou um homem com um estranho sorriso contido no rosto.

A imagem contaminaria sua vida. Um número incontrolável de referências se tornariam um gatilho para aquela lembrança. Morte, filhos, crianças, jovens, caretas, máscaras, armas, tiros. E seu próprio rosto, com traços tão parecidos com os do filho, como sempre diziam. A mesma cara angulosa, afinando-se na direção do queixo reto, o nariz pronunciado, estreito e quadrado. Mal conseguia se lembrar do rapaz sem que aquela expressão bizarra e estática saltasse em sua mente e disparasse as risadas.

As investigações não viram razão qualquer para incriminar o pai pela posse da arma, que afinal era legal. Tampouco havia qualquer laudo psíquico a respeito da saúde do filho que justificasse a eliminação do revólver.

De vez em quando, sozinho, imitava a expressão diante do espelho. Nas primeiras vezes com um imenso constrangimento pelo ridículo da situação. Com o tempo, já não precisava beber nada para realizar seu pequeno ritual, que lhe provocava um surto de gargalhadas histéricas e, eventualmente, choro e berros. A semelhança com o filho, somada ao necessário treino e condicionamento dos músculos da face e do movimento do maxilar, produzia uma expressão muitíssimo parecida com a original, vista no cadáver. Era bastante difícil conseguir o isolamento necessário pra isso.

A separação da esposa não demoraria a acontecer. Não era possível continuarem juntos vivendo aquela situação de maneiras tão diferentes. Ela preferiu deixar a casa. Ele entendeu.

A partida dela lhe fez entender que precisava enfrentar aquela obsessão de algum modo. A mulher agora somava-se a tantos outros que o haviam abandonado por suas atitudes. Não sabia a quem recorrer.

Pensou no legista. Ligou para o médico — que lembrou rapidamente daquele pai — e pediu para que pudesse ver outros corpos. Qualquer coisa que fosse, de preferência ao vivo. Se não fosse possível, ao menos que o funcionário lhe enviasse imagens. Especialmente de rostos. Que fosse um curador de rostos de cadáveres. Espantado e culpado por não ter desfeito a expressão do cadáver, o legista concordou. Fotografava em segredo os corpos e remetia semanalmente as melhores imagens. Como as condições de iluminação da sala onde trabalhava eram ruins, passou a editar cuidadosamente em seu celular as fotos, mandando até versões diferentes da mesma imagem. Descobriu-se bastante bom nesse ofício. Mesmo assim, nenhuma expressão era tão divertida quanto a do rapaz, nem mesmo com filtros.

O próprio legista sabia ser muito improvável que outra expressão superasse aquela. Isso não o impediria de continuar buscando e desenvolvendo suas habilidades na edição de imagens. Ainda relutava em moldar os rostos dos cadáveres que chegassem, mas uma ideia lhe surgiu. Propôs ao pai ajudá-lo a produzir modelos variados em resina do próprio rosto.

Sem dificuldade o pai conseguiu um revólver novo, de modelo bastante similar ao que possuía. A cada semana encontrava o médico para preparar os moldes de sua própria cabeça com as mais diversas expressões, nas quais dispararia diversas vezes até encontrar uma engraçada o bastante.

Em casa, guardava a arma exatamente no mesmo lugar que a anterior, no mesmo coldre, que o filho havia deixado no armário.

Era um homem organizado.

Texto: Raphael Concli
Imagem: Raphael Concli feat. Leonardo da Vinci

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