O Senhor das Pombas

Raphael Concli
Quiquiriqui
Published in
7 min readJan 10, 2019

Um homem enche um copinho plástico com a água que desce pela sarjeta até a boca de lobo em frente ao restaurante. Bebe. Através do copo, nota-se o tom escuro, asfáltico do líquido.

Outro lhe observa da esquina oposta, debaixo do viaduto onde vive. Está habituado à miséria, sua e dos outros. Mas hoje sentiu raiva. Mal conhece o rapaz que bebe, só sabe que é um dos andarilhos da região, quase sempre bêbado. Água lhe faria bem. Talvez não aquela. Troco para cachaça barata até consegue vez por outra, isso quando não lhe dão de graça.

Uma revolta, que há muito aprendeu a conter, retorna. Mal se lembrava do sentimento. Olha a marmita seca que ainda tem a seu dispor, os grãos de arroz curvados pelo calor, em parte avermelhados pelo caldo do frango que já sugaram e neles secou. Os retalhos de carne que sobram na coxa ainda garantem uma refeição. Em outras mãos já seriam lixo. Não quer mais comer. Deu-se o luxo de perder o apetite ao ver o outro homem engolir a água escura.

As pombas darão conta da quentinha se ele não quiser. E rápido chegam. Se atirasse o arroz na calçada elas gostariam mais. Talvez até a coxa comeriam. Será? Seriam pombas, canibais? Deixa-se levar pelo devaneio de pombas comendo outra ave. Imagina um encontro duma pomba e um frango, primos da cidade e do campo. Nunca comeu pomba. Como será? Há tantas por aí, mais que os gatos dos quais se diz que vem o churrasquinho.

Pensa numa pomba assada, passada na farofa, com aquele cheiro que sente aos domingos, fumegante. Olha para o amontoado de aves, foca numa delas. Não as cinza-azuladas, daquele verde e rosa metálicos no pescoço que lembram as manchas de gasolina da rua. Mira numa rajada de marrom e branco, lembra uma pequena galinha. Dá risada, estende as mãos em sua direção e grita, bum!, como se pudesse transformá-la num galeto.

E assim acontece.

Feito um milho de pipoca, a ave estoura tornando-se uma pomba assada, com aquele cheiro, o dos domingos. As outras voam em desespero com o barulho estalado para logo voltarem a seu arroz, indiferentes ao destino da companheira.

Está mesmo diante de um pequeno galeto. Caído no chão, a poeira e cabelos na calçada começam a colar em sua pele crocante e dourada. Sem mais pensar, atira-se a ave e come-a com fúria, espantando de vez as outras ao redor. Pega com as mãos o resto de arroz da marmita, finalizando-o enquanto devora a pomba. Chega a queimar a língua de quente que ela estava. Em um minuto, só há os ossos a chupar.

Descobriu assim o poder. De início, incrédulo, relutou até tentar o mesmo movimento de novo diante de outra ave. Esperou ter fome, e antes que ela crescesse demais, testou o truque com a pomba que passava em frente a seu dormitório. Bum! Mais um galeto. Testou com mais duas, três, já não mais esperando a fome chegar. Com todas deu certo. Foi visto apenas por outros miseráveis dos arredores que, espantados, começaram a apontar a cena.

Era hora de alimentar os seus.

Junta os assados numa caixa e leva-os aos muitos que habitam a região do viaduto e da praça ao lado. É um domingo frio. Chega envolto em sua manta de bidim, como as que se espalham entre as barracas feitas de aglomerados de papelão e madeira. Um rebuliço se forma em torno do homem que distribui franguinhos.

A palavra logo se espalha. O santo dos galetos passa a ser seguido por hordas de mendigos. Nas padarias de rua, quando passa, aqueles que sabem de seu milagre dão-lhe pães. Senhoras devotas querem provar da carne de pomba feita por aquelas mãos. Ele reluta. Quer dar apenas aos pobres enquanto for capaz. Uma vez cede e faz despencar na cabeça das velhas um trio de aves assadas do fio de um poste, apenas para que não duvidem. Elas pegam o alimento do chão aos prantos.

Um exército de caçadores de pombas circunda seu líder. Homens, mulheres e crianças, com redes, paus, pedras e bodoques aprisionam toda pomba que encontram e levam ao milagreiro.

Os animais começam a rarear na paisagem. Os velhos das praças são os primeiros a reclamar. Nos calçadões comerciais, o povo lembra de quando esbarrava nas aves abusadas, ouvia o grugru dos bandos que limpavam a rua dos restos de comida ao fim do horário de almoço. Isso estava se acabando. Agora pelas ruas se vêem ossinhos, muitos deles. Os cães gostam. Mas fica cheiro, é feio.

Famílias temem quando a horda de caçadores chega, atirando redes em estátuas, dando estilingadas nos pássaros. Moleques saltam aos berros na revoada, pegando as que conseguem, dão risada quando veem os galetinhos se formarem em suas mãos. Precisam limpá-las da gordura antes de voltarem a vender balas.

Os seguidores protegem seu santo, que não lhes nega os poderes. A habilidade faz parte dele, pode usá-la a qualquer momento, o quanto quiser. Notou apenas que se sente cansado depois de muitas transformações. Agora são dezenas de pombas por dia. Nunca reclama. Come junto dos seus e sempre do mesmo tanto.

Mas eles querem mais. Um menino chega com uma gaiolinha, roubada de um boteco. O passarinho colorido deve dar um franguinho mais gostoso, diferente. Talvez até doce, a criança imaginou.

Não. Assim não faremos, jamais roubaremos, diz-lhe o homem. Manda a criança devolver o pássaro e se desculpar. Se te culparem, diga que o pegou a mando meu, mas me arrependi.

O gesto deixou a todos uma questão, porém. Seria ele capaz de usar seu poder com outros animais? As pombas eram boas, mas estavam saciados. E começavam mesmo a rarear. Precisavam lhe trazer outro bicho de forma que ele aceitasse, talvez um gato ou cão de rua.

A polêmica da espécie a escolher foi grande, mas corria em segredo do santo. Havia quem se recusasse a levar cachorros, temendo pelos seus próprios. Gatos são difíceis de pegar. Ratos também, e são sujos. Uma galinha foi o meio-termo. Sendo também ave, devia ser maior a chance de dar certo.

Conseguiram uma e, assegurando ao homem que por meios legítimos, e revelaram sua demanda. Ele precisava saber se era capaz de fazer mais, por si mesmo e pelos outros. Andava cada vez mais cansado.

Dão-lhe a galinha viva como se fosse uma oferenda. Estende as mãos com as palmas viradas para o animal, no gesto que se tornou característico. A ave começa a fumegar. De dentro de seu corpo sai uma fumaça branca para espanto das pessoas e do próprio animal, que move a cabeça muito inquieto. O cheiro é de queimado, com um fundo distante de carne. Ele mantém a posição das mãos, se esforça, a fumaça aumenta. Ainda vivo, o animal começa começa a pegar fogo.

Alguns correm para apagar. São detidos. Outros se agarram ao santo, que suando, corpo rígido, ainda tenta a transformação. Não pare, meu senhor, não pare!

Ele não sabe se quer parar. O cheiro de carne agora é mais presente, mas ainda sufocado pelo queimado. O fogo se espalha rápido pelo corpo pequeno do animal, torra suas penas laranjas que se desmancham feito papel. O bico e as patas resistirão mais. A ave emite um som incômodo, alto, já não anda mais.

Para! Chega! Uma mulher se solta, joga a manta úmida de suas costas sobre o animal que não se sabe se ainda vive. Apaga o fogo. É logo retirada aos chutes.

Parem! Parem com isso! Ele é quem grita agora, paralisado na posição do ritual, esgotado. Desprende-se, salta no meio da multidão para que deixem a mulher. A massa cede. O santo descobre a galinha, e o povo ela se atira, abrindo seu corpo, um pouco assado por dentro, carbonizado por fora.

Alguns vibram, comem os pedaços semicrus em celebração. Outros ainda chocados, ficam em silêncio. Há quem lhe agradeça. Ele está exausto. Desaba no chão. É erguido, levado a praça para que descanse.

Ele acorda no meio da noite enquanto todos dormem. Ainda lhe doem os tendões dos braços. Pega seus poucos pertences. Fugirá. Passa antes ao lado do cativeiro de pombas, não há muitas. Transforma todas, aos poucos, para não concentrar o barulho dos estouros. Terminado Terminado o serviço, sobra o som de pele quente crepitando no lugar do arrulhar. Enrola-se na manta para seguir adiante, mas é visto. O mesmo homem da água da sarjeta. Desde aquele primeiro galeto, passou a seguir o senhor das pombas. Viu tudo.

Senhor vai embora, então?

Ele não responde. Olha para o outro alguns segundos em silêncio. O homem tem um copo na mão, o mesmo copo daquele dia, com água igualmente escura. Atira-a no rosto do milagreiro e vai dormir.

Os rumores sobre sua partida são muitos. De que foi comido, virou pomba, voou puxado por elas, abriu restaurantes pelo mundo. Ninguém sabe. Na praça onde se estabeleceu com os seguidores, lhe fizeram uma estátua, um homem com uma ave assada nas mãos oferecida a quem passa. Vive coberta de pombas, cercada de pessoas que lhes atiram pão ou lhes estendem os braços com as palmas das mãos viradas para elas.

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Imagem: Paulo Yamawake
Texto: Raphael Concli

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