Profetas do Inferno

Adriano Godoy
Quiquiriqui
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4 min readAug 9, 2019
Florianópolis, 2016. Fotografia de Adriano Godoy

“Confira as dezessete mentiras ditas pelo presidente na manhã de hoje”, “Novo decreto vai destruir a sua vida”, “Ministro faz barbaridade maior ainda que aquela de meia hora atrás”: basta abrir qualquer rede social, a qualquer hora do dia, que o nome do coisa ruim vai estar lá brilhando em neon na sua cara. Ele se tornou onipresente junto com o pesadelo da autodestruição, do implodimento do país: cada dia uma coisa muito importante, que levou décadas sendo construída, é sumariamente eliminada com uma caneta Bic e uma frase sem sentido nem concordância verbal.

E todos os meus contatos replicam cada uma delas: no Facebook, no Instagram, no Twitter, no Whatsapp. A mesma notícia compartilhada cinco, dez, quinze vezes pelos meus contatos que colocam o mesmo link, o mesmo texto, nas quatro redes sociais ao mesmo tempo. Isso porque eles são contatos entre si e curtem uns as notícias dos outros. As minhas redes sociais se transformaram em uma praça pública lotada daqueles idosos que seguram uma plaquinha alertando que o fim está próximo.

Tenho uma parcela de culpa, confesso. A verdade é que fui assim por muito tempo. Comecei lá entre 2004 e 2005 quando acessava o site do Mídia Independente e saia propagandeando as notícias em caps lock: você viu o que o Lula tá fazendo no Haiti??? E a última do Alckmin/Serra?? Replicava isso todos os dias, ritualisticamente, nas comunidades do Orkut e nas listas de email Yahoo da família e da escola. Era solenemente ignorado por todos e certa vez um conhecido me apelidou de profeta da bad. Porém segui na tarefa quixotesca firmemente até que junho de 2013 pensei, agora vai, finalmente a verdade da internet chegou às ruas, a informação veio à tona contra a monopolização da mídia burguesa.

Sim, só que não. Todo mundo sabe o tobogã em looping pro inferno que o país se jogou a partir dali, não preciso relembrar porque se você tá me lendo é bem provável que não para de pensar nisso há seis anos. Eu tô incluso nessa. Sigo com pensamento fixo na corrente de problemas criados e sem ver nenhum caminho que a contorne ou a supere. Tô rodopiando no mesmo tobogã só que decidi parar de narrar o percurso em voz alta (às vezes solto uns gritos).

Não é alienação: sigo lendo o noticiário com aflição, de cabo a rabo, e normalmente já li aquela notícia escabrosa quando aparece compartilhada por vinte e oito pessoas na timeline do Facebook e enviada por mais três pelo Whatsapp. Tá aí a informação! Li a notícia só que eu sinceramente não sei o que fazer com ela. O que entendi é que não adianta em nada eu ser o vigésimo nono a compartilhar aquilo.

No ranking de coisas mais exaustivamente compartilhadas na minha bolha está a Eliane Brum e ontem veio a ideia de doente de Brasil. Sim, li e me identifiquei, e identifiquei todos a minha volta: estamos doentes de Brasil. O que fazer? Não sei. Ninguém sabe. É uma epidemia mundial sem prazo de validade.

A imbecilidade humana e sua capacidade de autodestruição é sem limites, basta abrir um livro de história. Só que os mesmos livros vão mostrar que pra combater isso é necessária uma organização ampla, efetiva, com ações propositivas contra a barbárie. Nenhum tirano foi derrotado pelo tiozinho da praça batendo o sininho e gritando que o fim está próximo.

Tanta informação, tanto banho de realidade, isso tudo ainda mata a criatividade. Acho que nunca estive tão pessimista, tão sem rumo, enxergando apenas a sequência de curvas dentro desse tobogã pro inferno. A minha bolha também está ficcionada com o que será se as coisas continuarem assim e estamos pensando pouco em como poderiam ser. Deixamos de pensar em outros mundos possíveis para pensar nas consequências desse mundo como o único possível.

Como consequência há um imperativo, não dito só que sentido por todos, que está proibido manifestar felicidade e de falar amenidades. Ao me sentir culpado de postar uma bobagem qualquer na timeline — entre uma notícia de genocídio e uma imagem de chacina — amigas já me confessaram sentir o mesmo. A função de profeta do inferno é a única aceita na nossa bolha, o resto é alienação. Somos como aquelas viúvas obrigadas a cobrirem o rosto com véu preto e proibidas de sorrirem, só que por quatro anos.

Fugindo um pouco das notícias, tirando esse véu preto do rosto, buscando inspiração no passado, andei lendo uma coletânea de crônicas políticas do Rubem Braga. Começam bem trágicas, quando ele era correspondente da segunda guerra mundial e depois passam por um longo período aguerridas em discursos inflamados contra a ditadura Vargas. Só que a medida que ele envelhece o tom militante vai caindo. Após o golpe militar ele se coloca prontamente contra, mas depois volta a falar da vida, do cotidiano. Uma leitora enfurecida escreve para o jornal o acusando de falar pouco sobre política, e ele responde em tom exausto que segue com os mesmos princípios políticos de toda a vida, um esquerda democrata, e que evidentemente era contra tudo aquilo. E se justifica dizendo que “às vezes o Brasil cansa”, que o jornal todo já estava falando daqueles temas, e a função dele ali era justamente a de trazer um respiro, de mostrar que a vida pode valer a pena, e que nem só de política institucional vive o homem.

Acho que está nos faltando esse respiro e que ele só vai vir quando furarmos esse tobogã para ver o lado de fora, para sentirmos o ar que passa por ali. Quem sabe assim ficamos motivados a frear a descida ou a escalar de volta, já que o fim não está próximo porque ele não existe e a queda pode ser infinita.

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