Quando a nêmesis me procurar diga que não estou

Ou de como é cheia de dores e prazeres a busca de um sentido para a vida

VV 4 L K E R
Walker
5 min readAug 11, 2019

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Homem Vitruviano — Leonardo da Vinci, circa 1490

Faço trinta e cinco anos em dois meses. Diria que seriam em quatro se fizesse diferença, mas entre 2020 e 2019 já não há mais diferença do que entre 2018 e 2022 e por isso eu me pergunto se realmente é ser jovem que eu preciso ser. De pergunta em pergunta eu chego à questão de governança e se o povo sabe o que ele escolheu para ele. Em tempos de respostas instantâneas e tanta animosidade nas redes, a gentileza ainda reina isolada.

Com esta quantidade de anos vividos eu poderia muito bem assumir minha posição sênior e admitir meus erros, que não são poucos. “Uma lista de trinta e cinco humilhações e vergonhas que passei”, por exemplo. Ou “Trinta e cinco vezes que descobri minha pequeneza” ou “Trinta e cinco vezes que fui imbecil”. Não que este número seja exaustivo, não é, mas é um bom número para começar. Mas eu deveria estar mais animado com esta data, os amigos que estão mortos merecem ao menos esta consideração.

Mas hoje em especial eu não encontro nenhum motivo para sorrir. Não importam quão exuberantes sejam as bases materiais, nem quanto eu tenha crescido de uns anos para cá, nem o quanto eu seja amado, hoje em especial me sinto faminto. Uma fome que não pode ser saciada por nenhuma comida nem bebida, por nenhum carinho nem nenhuma palavra amiga, esta fome é como a fome de que fala o Senhor na Eucaristia, a de quem só tem pão de comer mas não tem o pão da vida. Sem o pão da vida nenhum pão satisfaz.

Mas eu disfarço, ajo de acordo. Se até a Monalisa está caindo aos pedaços, quem sou eu para querer se manter intacto? Nem me preocupa a perda da força física ou da boa aparência. Acho que nem mesmo as memórias e as capacidades intelectuais importam — ver uma pessoa sofrer de Alzheimer uma vez que seja já coloca tudo em outra perspectiva em relação à nossa “superioridade intelectual”. O que me preocupa é, sim, o olhar sobre o mundo e sobre a vida. Um olhar gasto e cheio de obviedades, um olhar com uma beleza gasta que só cede cada dia mais ao cinismo é um olhar que eu tenho sobretudo que evitar. Envelhecer é acumular rancor ou aprender a ser leve?

Sim, velhice, isso mesmo. Uma coisa que eu nem sabia que eu queria, mas que aos poucos se torna a única esperança da vida. Não por apego à vida, muito pelo contrário, aqueles que se foram já não precisam mais aguentar as dores da vida, do corpo, do mundo e das pessoas que ama; sorte dos que morreram, sorte maior ainda dos que nem chegaram a nascer, já dizia o livro de Eclesiastes. Não, eu só almejo a velhice porque certas verdades demoram para amadurecer e porque certos impulsos só cedem quando o corpo já não tem a vitalidade de antes. Neste ponto eu poderei finalmente contemplar o que sempre desejei contemplar se não fosse tão cheio de impulsos e energia incontrolável.

Afinal, tudo tem sua hora. E a hora é somente aquela mesma e nenhuma outra. Saber as horas das coisas, sem querer acelerar ou retardar os acontecimentos é sabedoria, não em palavras como eu aqui faço parecer mas como atos, quando aplicamos estas ideias ao desenrolar da vida. E que vida. Nunca pensei que passaria pelo que estou passando, estes inglórios dias de solidão, por exemplo. Estive dois dias seguidos dentro de casa, no começo da semana e outros dois no final, em um isolamento que nunca considerei saudável mas que vem se tornando habitual na minha vida à medida em que tenho a escolha de não fazê-la assim.

ShahJahan on the PeacockThrone by Govardhan — 1635

Hoje eu até saí, bicicleta, uma hora e meia no total, mas só para ir na casa de outra pessoa e continuar a fazer o que faço aqui. Não me sinto preso, no entanto, senão na prisão de minhas próprias escolhas; o que me mantém nisto é uma espécie de esperança de que o sofrimento é duro hoje mas que amanhã poderá frutificar (quando eu finalmente souber utilizar as coisas que aprendi ao longo dos dias).

Sem exageros. Tenho vivido como um menino doente que não pode sair na rua brincar com as crianças, e que por causa deste tipo de vida acaba fazendo amigos imaginários. Mas sem amigos imaginários além daqueles nos muitos podcasts que ouço diariamente e que me fazem sentir como se estivesse na vida deles; ou como os personagens das séries que assisto ou dos livros que leio. Alguns deles já são mais reais do que a maioria dos passantes que encontro na rua quando vou trabalhar. Num país com tanto espaço vazio eu esvaziei o meu próprio espaço e me restringi à uma casa com janelas fechadas permanentemente. Escrevo isso como bilhete na garrafa que deixo flutuando eternamente no oceano — e nada disso é culpa de ninguém.

Talvez eu esteja mesmo isolado, mas apenas na minha “arrogância e desprezo pelos menos aculturados”. Longe dos amigos e das áreas de socialização, eu passo os dias preenchendo as planilhas mentais com os acontecimentos do dia. Hoje li sobre a morte do pai do Knausgard, vi um filme excelente sobre os ataques na Noruega na ilha de Utoya (assuntos que eu correlacionei de propósito e filme que descobri por sorte) e ouvi um podcast de Geopolítica. Ontem, eu assisti o documentário sobre mudanças climáticas do Leonardo Di Caprio, Gelo em Chamas . Também, joguei umas oito horas de jogos eletrônicos. As costas doem, bem como o pescoço e a única pessoa de carne e osso que eu vejo e converso em dias assim é minha esposa, na saída e chegada dela do trabalho. Hoje, aliás, comecei a ler Trainspotting do Irvine Welsh e um outro, de contos, do Chuck Palahniuk. E com isso, só aumenta minha lista de livros para ler este ano.

Porque falo estas coisas, afinal? Se cultura fosse boa não começava com estas duas letras, certo? E como tal, cada um tem o seu, cada um diferente do outro, e que a ninguém satisfaz e a ninguém sobrepõe. Concordo, e só as menciono de passagem, mas não sem um certo prazer e sem uma certa insolência. Não posso evitar, é mais forte do que eu. Os dias se passam, e quando o juiz supremo ou o nêmesis me perguntar o que fiz dos meus dias e do dom da vida que me foi concedido direi que não fiz mal a ninguém e que maratonei várias séries, li vários livros (nem todos até o fim) e assisti vários filmes. Idolatrei a humanidade e sua forma de viver, em todas as formas, enfim. Sem esperar por algum perdão ou algum condescendência é mais ou menos isso que direi. E ainda vou emendar um e “não me arrependo de nada”, o que este texto, se descoberto, certamente irá desmentir.

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