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Ser Sozinho

Com colaboração de Walker

Victor Gabriel M. Ramos
Walker
Published in
6 min readJan 23, 2020

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Eu gosto de ser sozinho a maior parte do tempo. É quando eu fico em paz, só eu e meus pensamentos. As pessoas costumam ser tempestuosas, desequilibradas, e quando eu fico muito tempo junto a elas acabo me desequilibrando também. Eu prefiro me manter no meu mundo, lá as coisas fazem sentido, lá tudo me explica e eu não tenho a necessidade de me explicar a ninguém. Ah, como isso me causa enfado, há coisas que eu não preciso compreender e há momentos que eu simplesmente não quero ser compreendido, só quero estar em paz. Há quem me chame de insensível por eu não me compadecer por isso ou por aquilo, por eu não chorar, por eu não manifestar grande alegria ou angustia, mas não é por falta de sentimento, minha sensibilidade não é dramática e até o meu drama é matéria-prima.

Pessoas são complicadas. Dito isso, eu e você somos pessoas, e como tal não escapamos de sermos nós mesmos complicados. Como cebolas, temos camadas exteriores que vão cobrindo uma às outras até aquilo que você vê quando olha no espelho. A Alma, se é que existe, não se deixa transparecer até mesmo por uma questão de sanidade: se pudéssemos ver as coisas como elas realmente são, quantos de nós seriam capazes de manter a razão? Pessoas são complicadas e só o deixam de ser quando se prendem a alguma superestrutura mítica que explique sua própria razão de ser, que dê um sentido a este universo caótico e desprovido de significado. Mas, ei, quem disse que nossa opinião importa? Se você acha que este Universo é precário, você deveria ver os outros.

Nada tem fim por si mesmo, nem esse texto, nem o copo de café que você tomou minutos atrás, nem a última festa que você frequentou, nem você mesmo. Daí provem o sentido de minhas frases, se tudo não tem fim por si mesmo, porque nos ater a esse momento? Tudo é genérico em certa medida e entender isso é o que permite transcender a noção da experiência pela experiência, para pensar a experiência pelo seu sentido. Mas peço-lhe, não confunda minha sentença com metafisica, não se trata de uma essencialidade imaterial que se manifesta através de cada evento, uma “razão velada”, uma “vontade oculta”, de “destino”, trata-se de compreender o elo entre todas experiências, o ponto em comum que permeia a vida, a própria noção da natureza humana. Quero dizer, nós não somos completas singularidades, ao conversarmos com qualquer um em qualquer lugar logo percebemos semelhanças, tanto nas experiências quanto nas personalidades dos sujeitos, isso porque todos estamos à mercê das mesmas questões, dos mesmos maus, das mesmas alegrias… enfim, da mesma natureza. Contudo, por mais contraditório que pareça, ainda estamos absolutamente sozinhos. Por mais que possamos conversar e achar semelhanças entre nossas experiências, a dor do outro ainda é só dele, assim como a nossa dor é apenas nossa. Não há o que possamos fazer em relação a isso, estamos sempre limitados a sermos somente nós mesmos.

Já pensara uma vez durante uma caminhada, em um lugar cotidiano, onde me acostumei a agitação das pessoas passando ao tomar os seus caminhos, completamente aguerridas em “vencer o dia”, absolutamente perdidas entre pensamentos, papeis, políticas, verdades arquitetadas e sentimentos perniciosos. Naquele momento me encontrava no mesmo lugar, no entanto, aqueles corredores, praças e bosques estavam vazios, eu caminhava sozinho, sem compromisso com o horário, sem me preocupar com etiqueta (um termo por si só antiquado). Em meu devaneio sentia como se nada mais importasse, não tinha obrigações para cumprir, lugares para ir, não havia algo que devesse fazer, de fato poderia escolher… como uma coisa que caminha sobre a terra, como qualquer outro animal, que se entrega ao mundo sem mapas, sem artifícios, respondendo a cada estimulo com intensidade. Eu podia perceber o sol na pele, a suave brisa de primavera no rosto, o ar entrando em meus pulmões, o cheiro do ipê roxo, o canto dos pássaros, que outrora estava abafado pelo ruído dos carros. Como poucas vezes na vida, não me sentia incompleto, não estava cego, estava integrado e em paz. O que eu faria se fosse o ultimo homem na terra? bom, eu estaria em paz.

Na ciência, segundo estes estudos recentes, a solidão pode matar, se não te enlouquecer antes (link). Em um planeta com sete bilhões de pessoas, a solidão patológica está em franco crescimento. “Entre 2004 e 2014, o número anual de divórcios [no Brasil] aumentou 250%. Entre 1991 e 2019, a quantidade de pessoas que moram sozinhas subiu 340%” (link). Como disse Sartre, se você se sente sozinho quando está sozinho então você está em má companhia. Filósofos são conhecidos por serem solitários, ainda que nem todos eles façam elogio ao status solitário. Mas verdade é que a solidão, em doses calculadas, pode ser útil de diversas formas, mesmo que seja para tornar você uma companhia melhor. Nietzsche vai dizer que se for para roubar sua solidão sem oferecer companhia verdadeira então é melhor nem tentar; ele fala amiúde de uma solidão virtuosa que todo filósofo precisa enfrentar ao menos uma vez na vida e que ele associa com a própria busca da verdade. Também, com a figura do Zaratustra, ele dirá que o filósofo pode se isolar na montanha para encontrar a verdade oculta, mas que depois vai descer para compartilhar suas descobertas com o povo (ainda que o povo o cace e o destrua por isso); mais ainda, ele dirá que mesmo sabendo disso, o verdadeiro filósofo sempre escolherá o mesmo destino, pois seu ser é cheio de amor por suas escolhas, donde deriva sua autenticidade.

Somos limitados, sentimos, pensamos e sonhamos de forma limitada e nesse limite que o sentido é. Todos nossos atos respondem a nossa natureza e nossas necessidades intrínsecas: alimentação, socialização, fé, cultura, sexo… tudo isso compõe e permite a experiência humana, de modo que um ser sem tais características seria outra coisa. Ser humano é ser uma coisa que sente, é entender pelo corpo, de modo que nada que se faça ou invente foge dos seus sentidos.

A imortalidade, tal como a entendemos, só é alcançável através da entrega completa do espírito pela arte; tal como Harry Haller acreditou, sabemos hoje que apesar da precariedade, é possível burlar as leis da entropia do universo. Talvez tudo isso seja mesmo um teste e a natureza esteja apenas tomando consciência de si mesma — o universo sendo uma seara de universos a serem descobertos e nós somente a primeira aparição de inteligência; talvez a imortalidade não esteja nas aparências e na estrutura molecular, mas no espírito superior; talvez a eternidade como a entendemos não passe de um tédio esperando por uma punchline: “desculpa pelo transtorno”.

É da natureza humana, também, não durar para sempre, tudo que conhecemos, pensamos e sentimos tem fim no fluxo da história. Nós somos aquilo que é por um instante e logo deixa de ser, somos aquilo que sabemos que somos quando já deixamos de ser. Por essa razão é que compartilhamos nossas experiências, é uma forma de romper a solidão mesmo que momentaneamente, é a nossa forma de propagar nossas existências através das gerações, e talvez seja a o único sentido plausível da própria existência, e de seu fim. A morte faz parte da vida, o fim faz parte da vida. A morte é poesia, o poeta compõe seus versos cristalizando um momento, uma percepção que logo finda, é um retrato no tempo e no espaço, na própria consciência do sujeito, é a reflexão na morte de alguma coisa. Talvez por isso ser poeta é uma coisa que se faça sozinho — mas não para si mesmo. Talvez por isso ser seja uma coisa que se faça sozinho.

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